Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

19 de março de 2019

VENENO REMÉDIO


Foi numa noite de domingo, em alguma das antológicas edições do projeto Palcomeu, promovida por iniciativa do parceiro Maurício Ribeiro na acolhedora então residência dele e da sua amada Camila no bairro Santa Inês.  Em meio a uns bebericos da saborosa cerveja Artesana, então produzida pela arte do próprio em consórcio com Edson Fernando e Paulim Sartori, músicos igualmente versados nos respectivos instrumentos e no ofício de produzir tal adorada beberagem, que recebi a incumbência de letrar duas de suas criações para que se tornassem canções, e, por consequência, nossas primeiras parcerias.
Uma delas tinha uma melodia divertida, um clima de roda de samba, ainda que não fosse propriamente um. Era uma aventura sincopada por vezes subvertida por umas notas mais longas que pareciam aquele último fio de uma conversa que se estende anormalmente depois de emissões mais curtas de opinião. Ela insinuava uma prosa bem prosaica, ainda que melodiosa, e de luneta na torre de observação eu antevia os desafios da prosódia, um mar enorme pela frente até chegar a alguma terra firme.
Sem maiores indicações por parte do parceiro, dei uma custada pra saber sobre o que falar. Mas uma antiga ambição e a coincidência de torcermos os dois pelo mesmo clube (o Cruzeiro, de tantas páginas heroicas imortais, mas que na época andava perigando um pouco – felizmente não caiu) acabaram me levando ao mote. Na minha atividade de letrista eu sempre penso em temas que os compositores que admiro trataram e sobre os quais um dia quero versar. Um deles, claro, tinha que ser o futebol. Eu sou um fã confesso e absoluto do choro 1x0 de Pixinguinha e Benedito Lacerda, que depois veio a ser arrematado com uma letra insuperável do genial Nelson Angelo. Sou meramente o escalador subindo as encostas desses gigantes, mas eu queria cumprir a tarefa sendo minimamente diferente, e pensei assim de falar de um ângulo meio inusitado sobre o assunto: o de um torcedor atribulado vendo na tevê o jogo de seu time em péssimo desempenho desportivo. Parceria é sobretudo sintonia, e creio que em matéria de tom de humor eu e o Maurício compartilhamos um bocado. Exaltar clubes, jogadores, e até partidas, muita gente já fez. Falar do fracasso parecia um rumo diferente, e divertido, a tomar. Talvez um diabinho uniformizado, sentado no meu ombro esquerdo, com voz de Aldir Blanc e parentesco com José Trajano, tenha me soprado umas ideias: “bandeira de uma figa/ torresmo de barriga/
traz lá mais outro Sonrisal”, provavelmente é coisa dele.
Assim, fui praticamente descrevendo as agruras de um torcedor fanático que vê seu time em maus lençóis o tempo todo, sofrendo, comendo, torcendo, numa orgia emocional em pleno Purgatório. Exagerei, certamente, criando uma espécie de “tipo ideal” de um modo de torcer que provavelmente é adotado em diferentes intensidades por muitos apreciadores do ludopédio. Imaginei esse “eu lírico” desatinado reclamando com seu entorno e prioritariamente com a própria televisão. Eu mesmo faço isso e provavelmente me acharia ridículo se pudesse me olhar de fora da situação. Fui preenchendo a forma com a verborragia futebolística de praxe, até chegar no B que funciona meio como refrão mais pela letra, porque musicalmente é mais uma ponte dentro da estrutura AABA’ + AABA’ + A’’. Essa passagem chamava algum tipo de contraparte da letra, como se a voz do bom senso quisesse intervir, recomendando cuidado ao torcedor sobressaltado. Me veio então de súbito a figura do Sócrates, o “doutor”, rebatendo a caracterização do “eu lírico” como um “doente”. De quebra isso me deu o lance capital da pelada toda, que foi o verso do título “Veneno remédio”, com a emenda de primeira “o ludopédio, panaceia”, ou seja, consegui homenagear o livro do mestre Zé Miguel Wisnik – verdadeiro tratado sobre a paradoxal relação entre o Brasil e o Futebol que havia lido pouco antes – e achar rimas internas consequentes e difíceis sem comprometer a prosódia. E aí, curiosamente, penei para achar ‘capital’, mas que resolve e de algum modo captura o linguajar de locutores mais velhos. Finalmente o último “A” precisava da ideia de retorno ao começo, porém não por completo, já que a melodia acabava diferente. Voltamos ao cenário inicial, mas no final da partida o desespero leva o fanático a abandonar sua análise exigente pelo apelo ao sobrenatural – tão presente no imaginário futebolístico nacional. Foram alguns anos até a canção finalmente chegar a sua forma definitiva e gravada, com muito esmero por esse timaço escalado junto com o próprio Maurício, com Edson Fernando, Ygor Rajão e a querida Juliana Perdigão que cantou tão magnificamente quanto eu tinha imaginado. Enfim, tai, e que a bola continue rolando e a gente se inspirando com o futebol e a vida para compor. Esse certamente é o meu veneno remédio.



Veneno remédio (Mauricio Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)

Foi mais um domingo bem sem graça
Vendo jogo na tevê e esse meu time que não sai nem falta faz
Não passa essa retranca nem tabela
Lá vai mais outro chute de donzela

Outra bola fora logo agora
que demora do volante, tão distante que não marca o lateral
Que falta faz um meia cerebral
Um atacante com tiro fatal

A pressão vai mal, tome cuidado que tá fraco o coração, doutor já receitou
Veneno remédio, o ludopédio panaceia capital, a droga da paixão

Ó meu bem cuidado com essa taça
que perigo que desgraça, ninguém pensa com a cabeça pra atacar
assim meu coração atribulado
não güenta ver mais pênalti anulado
bandeira de uma figa, torresmo de barriga
traz lá mais outro Sonrisal

Lançamento errado pro ponteiro
o desespero só aumenta e nem cerveja alivia a aflição
se formos pra segunda divisão
meu plano não tem cobertura não

Soco do goleiro pra escanteio
que proposta defensiva, lance feio, o zagueiro é um animal
eu tomo dose de contra-indicado
afasta esse ameaça aqui do lado

A pressão vai mal, tome cuidado que tá fraco o coração, doutor já receitou
Veneno remédio, o ludopédio panacéia capital, a droga da paixão

Pelamordedeus, falta de raça,
E outro trago de cachaça, só assim pra tolerar essa pelada
Impedimento bem na hora errada
Eu grito e minha veia tá saltada
bandeira de uma figa, torresmo de barriga
traz lá mais outro Sonrisal

Foi mais um domingo um sofrimento
Vendo jogo na tevê e esse momento do meu time não dá pé
Não sobe posição nessa tabela
A bola espirra e bate na canela
Apela pra qualquer pajé

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