Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

9 de julho de 2019

À MUSA

Em fevereiro de 2018 tive a satisfação de assistir na Casa Idea ao show de lançamento de um de seus discos e conhecer o cantor, compositor, violonista e arranjador Benji Kaplan, vindo de Nova Iorque para o Brasil e BH - à época ele concedeu entrevista à rádio UFMG Educativa, que pode ser ouvida aqui.  A "ponte aérea" tem o dedo de nosso agora parceiro partilhado, Makely Ka, que topou por lá com o nosso caro "novaiorquine" e já havia composto com ele pérolas como "Baião para Gershwin" e "Fuga de Alcatraz". Naquele dia, foi ainda o mesmo Makely que nos apresentou formalmente e ensejou, de certo modo, o que viria a ser essa primeira parceria minha e do Benji. Preciso dizer ainda que nesta mesma noite ele contou com a participação de sua parceira de vida e música Rita Figueiredo, e que os dois formam um duo estupendo, como se pode conferir ouvindo o disco de ambos aqui. Digo isso também para explicar que Benji Kaplan, não bastasse ser admirador, estudioso e influenciado pela música popular brasileira, digo sem medo de errar, tornou-se seu partícipe, esposando o conhecimento de seus estilos e ritmos com melodias intrincadas, harmonias sofisticadas e desafio de forma que exige letras que se equiparem a tal lapidação musical. 
A ideia de fazer uma letra para uma música dessas era encrenca - da boa! Às vezes a proposição acontece numa conversa e fica assim num limbo por um tempo, em "banho maria", como dizemos aqui. Mas não foi o caso! Benji logo me manda uma...  a belíssima "Folhas ao vento" (Leaves in the wind) que figurava em versão instrumental justamente no disco que viera lançar, Chorando sete cores. Como sempre, quando se inicia uma parceria nova, fico cheio de dedos e quero me entender, sobretudo quanto aos métodos e prazos, porque é importante um entendimento cristalino sobre essas coisas. Para mim é a base sem a qual não pode surgir o entrosamento necessário. Depois é tentar decifrar uma intenção, ouvindo a música e falando sobre ela com o parceiro. O Benji me deixou à vontade, mas eu estava era preocupado com a incumbência. Tanto que me esmerei uns meses até que, no final de maio, tinha uma primeira versão completa.
Comecei pelo título anterior, e obviamente a música remetia ao movimento das folhas bailando ao vento. Como na área área externa do apartamento em que moro, vizinha de uma casa com um pomar enorme, caem muitas folhas, esse mote inicial me deu os primeiros versos, coincidindo com a chegada do outono por aqui. Isso poderia levar a qualquer lugar. Mas eu já estava aflito com o cenário político brasileiro. Por outro lado, o lirismo extremo da música sugeria um tema romântico. Pensei no outono como estação de transição, e fui esboçando uma história de separação de espera da pessoa amada, mas também me esquentando a pestana a tensão política. Pintou a ideia de fazer uma letra como aquelas do tempo da censura - tendo especialmente as de Aldir Blanc e Chico Buarque como referências. É quase como se cada estrofe respondesse a um estado de espírito diferente, o outono e as folhas preludiando o inverno, e a espera incerta do ente amado, a princípio levada com certa ironia e autocontrole, vai se tornando mais angustiante, frustrante, justamente quando a canção muda o percurso melódico e o lamento da perda se converte em apelo ao retorno. Incrível a forma como o material da experiência pessoal se imiscui nas letras mesmo subconscientemente. Realmente eu estava dormindo muito mal. Nos meus rascunhos guardei versos como "Eu tenho pouco sono/Não durmo nem no escuro/ Me cubro de lembranças" que se aplicaria ao tema musical inicial, mas acabou convertido oportunamente na parte em que o "eu lírico", insone, procura inutilmente sua amada na cama. Essa súplica se coloca a partir da sensação de aprisionamento e o anseio por libertação. O retorno ao veio melódico central, ainda que com variação, me sugeriu o alento, a primavera que sucederia o inverno, o céu aberto. Nisso tudo há o retorno assumido, deslavado, de metáforas recorrentes dos anos de chumbo. Também entrego claramente meu ofício de historiador, em referências que não são difíceis de sacar, e que ao final amarram o sentido subentendido de quem vem a ser a musa à qual a letra se endereça. E quando a melodia caminha para o encerramento, se a volta do mote inicial sugere um retorno ao primeiro estado emocional, não é bem isso, já que a mudança enseja uma conclusão e a grande lição da História é justamente essa: tudo muda.


*Imagem: Atena e as Musas - Hendrick van Balen the Elder (1573–1632)




À musa - música de Benji Kaplan; letra de Luiz Henrique Garcia


No tempo do outono
As folhas vão ao vento
e lento no meu passo
amasso
as que pisar

Não sei se você volta após a estação
apressada
de metrô
na blusa de tricô
que eu te dei nas férias

Passadas em Atenas
Mas lágrimas apenas
em plena idade média vem,
no alvorecer
perscruto você
seu braço, cadê
o nosso lençol
não sei mais dormir
desliga esse sol
me afasta essa mira
me tira do calabouço já

Ó musa da minha lira
Divago no meu canto
E vejo de soslaio a cor da Primavera de Paris
Na barricada desse lar
vigio até você entrar
no dia em que o céu se abrir

No tempo do outono
As folhas vão ao vento
E o tempo há de mudar



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