Foi-se João.
Um revolucionário sutil.
A simplicidade complexa em pessoa.
O violão que decifrou a batida transcendental do coração do Brasil.
E agora, João?
Só nos cabe cuidar para que sua lembrança continue tocando essa batida. Ensinando pra nós e pro mundo o que é que o Brasil tem.
Um revolucionário sutil.
A simplicidade complexa em pessoa.
O violão que decifrou a batida transcendental do coração do Brasil.
E agora, João?
Só nos cabe cuidar para que sua lembrança continue tocando essa batida. Ensinando pra nós e pro mundo o que é que o Brasil tem.
Foram as primeiras palavras que escrevi quando a notícia me chegou. Pretenderam ser justas e sintéticas, como a própria música de João Gilberto é. Mas sinto que é preciso deixar um pouco mais de caldo. Até porque, quem sabe, alguém ainda possa descobrir João, seu canto, seu violão, sua síntese mais que perfeita do Brasil. Resolvi então reunir aqui contribuições de dois parceiros que já colaboraram outras vezes aqui no blog e que expressão boa parte do mais que eu poderia dizer, Rafael Senra e Pablo Castro. O primeiro contrastando conjunturas entre o efervescer da bossa nova e a atualidade, o segundo num verdadeiro mergulho diacrônico mostrando que João Gilberto é ponto nodal na história de nossa música popular. Fica ainda aberta a porta, para agregar nos comentários o que mais os leitores acharem por bem incluir.
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Achei bonito ler o depoimento da Gal Costa em que ela diz que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. A música popular de hoje não traz nada do DNA do pai da bossa nova: é urgente, agressiva, com um registro de canto quase histérico, repleto de vibratos caricatos que trazem o pior de tradições musicais estrangeiras, completamente alheias à nosso ecossistema musical.
Vez ou outra, músicas que ele imortalizou aparecem repaginadas em aberturas de novelas, ou cantadas por subcantores em programas de auditório. Na nossa cultura mainstream, é assim que o legado de João sobrevive.
O Brasil de agora é diametralmente distante do idealismo bossanovista. Nos tornamos o oposto de tudo que foi sonhado naqueles tempos. O Rio de Janeiro do barquinho e do violão tornou-se o Rio da propina e das milícias. A modernidade de JK (época em que João foi trilha sonora obrigatória) deu lugar a um retorno da precariedade medieval travestida de progresso. Temos uma população que perdeu a CLT e está prestes a perder o direito a se aposentar.
Continuo achando que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. Mas os que não a aprenderam são os que tomaram o poder. A delicadeza não quer o poder: as flores que perfumam o jardim nunca tentariam toma-lo para si. Os que amam a beleza e a verdade estão de luto.
Continuo achando que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. Mas os que não a aprenderam são os que tomaram o poder. A delicadeza não quer o poder: as flores que perfumam o jardim nunca tentariam toma-lo para si. Os que amam a beleza e a verdade estão de luto.
Por Rafael Senra
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Ninguém é obrigado a gostar desse ou daquele artista, mas o bom da arte é que nem tudo se resume a gosto pessoal. Cada campo artístico tem uma história, um desenrolar dos acontecimentos, um diálogo diacrônico e mutuamente estimulante entre artistas, crítica e público.
E há fatos históricos inexoráveis, que apresentam revelações, invenções de tal modo inesperadas que provocam abalos sísmicos nas sensibilidades gerais.
Por que João Gilberto é o maior divisor de águas da música popular brasileira ? Nada do que se elenca aqui é questão de gosto :
1- até 1958, inexistia um canto popular que não fosse adornado, impostado, cheio de voltinhas ,vibratos, glissandos. Simplesmente ninguém nunca tinha ouvido um canto despojado disso tudo. Nem aqui nem alhures. Quem introduziu esse tipo de canto nos Estados Unidos foi Chet Baker e quem introduziu isso no Brasil foi João Gilberto. É muito difícil para nós outros imaginar o impacto da ouvir pela primeira vez um tipo de canto que se tornaria hegemônico, um canto mais despido de volteios e gracejos . Mesmo no caso de cantores mais potentes, com grande projeção de voz ,a influência de João Gilberto foi decisiva, pela forma direta com que o canto passou a ser emitido . Não existiria Gil, Elis e mesmo Milton sem antes ter surgido João .
2- até 1958 , não havia um violão que incorporasse uma estilização sintética das células rítmicas brasileiras, notadamente o samba, mas também o baião, a valsa, a marchinha. Nossos ritmos só existiam enquanto conjunto de peças percussivas exuberantes e explosivos como uma escola de samba. João inventou uma maneira de incorporar as funções básicas desses ritmos, simplificadas , e estilizadas num mínimo denominador comum, e que poderia ser transformado num grão de som. Além disso, João criou uma palheta de inversões de acordes no violão que mantinham um equilíbrio entre as notas e as funções harmônicas, dispondo do baixo, das terças e das dissonâncias (sétima, nonas e décima-terceiras), abrindo mão muitas vezes da quinta e mesmo da tônica, por serem redundantes.
3- até 1958, não havia um intérprete capaz de dar credibilidade a melodias e letras mais leves, que apenas começavam a ser compostas naquela época, por compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça ,Vinícius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros. Até então, o samba-canção, que dominava a música nacional, era praticamente sinônimo de derramamento sentimental, dor de cotuvelo, fossas profundas ou piegas declarações de amor eterno , dramático.
4- Depois da grande era inicial do samba, na década de 30, não havia cantor algum que usasse a divisão melódica como meio de improvisação rítmica, e muito menos que utilizasse esse jogo de divisões melódicas como filigranas da aproximação do canto à fala, fazendo das consoantes instrumentos percussivos que inevitavelmente apresentavam as palavras como objetos palpáveis, quase tateáveis pelo ouvido. As letras portanto passavam a se incorporar mais organicamente à experiência de fruição do ouvinte , o que , também vale ressaltar, até essa época era uma impossibilidade técnica que só se viabilizou pela invenção da gravação em canais separados e pelo advento de determinados microfones que permitiam o canto próximo sem que ele tampasse todos os instrumentos do acompanhamento .Tudo isso era inédito.
Para além dessas evidentes inovações revolucionárias, João sintetizava não só um estilo, mas um repertório que atravessava e articulava tudo aquilo que era considerado antigo com o que era evidentemente novo. O principal intérprete do moderníssimo e consagradíssimo Tom Jobim era também aquele capaz de descobrir um compositor como Jaime Silva, autor de O Pato. "Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”."
Por fim, para aqueles que ainda não entenderam João, porque vieram bem depois que suas descobertas já haviam sido incorporadas de maneira difusa por toda uma brilhante geração posterior de compositores e intérpretes : à primeira audição. aquilo que podemos chamar de "cor" na música, os aspectos mais imediatos da sonoridade de timbre, de região de emissão da voz, de volume e gesto , tudo pode até parecer enfadonho, porque nesses aspectos João sempre foi a mesma coisa - claro, depois de seu período inicial, quando era um perfeito cover de Orlando Silva, com os Garotos da Lua, em princípios dos anos 50.
Mas quando você mergulha nesse ambiente que sua música enseja, esse lugar calmo e contido onde sua voz ecoa, você consegue perceber as nuances e sutilezas, de um estilo que recusa qualquer fio de exagero, e que faz o encontro insuspeito entre tudo aquilo que era , de forma nata, brasileiro. Como se tivesse extraindo a essência do que é o Brasil.
O bom de tudo é que , graças à fonografia, não perdemos João, ganhamos para a vida inteira. Resta agora continuar espalhando os frutos-sementes que sua obra deixa para a eternidade.
E há fatos históricos inexoráveis, que apresentam revelações, invenções de tal modo inesperadas que provocam abalos sísmicos nas sensibilidades gerais.
Por que João Gilberto é o maior divisor de águas da música popular brasileira ? Nada do que se elenca aqui é questão de gosto :
1- até 1958, inexistia um canto popular que não fosse adornado, impostado, cheio de voltinhas ,vibratos, glissandos. Simplesmente ninguém nunca tinha ouvido um canto despojado disso tudo. Nem aqui nem alhures. Quem introduziu esse tipo de canto nos Estados Unidos foi Chet Baker e quem introduziu isso no Brasil foi João Gilberto. É muito difícil para nós outros imaginar o impacto da ouvir pela primeira vez um tipo de canto que se tornaria hegemônico, um canto mais despido de volteios e gracejos . Mesmo no caso de cantores mais potentes, com grande projeção de voz ,a influência de João Gilberto foi decisiva, pela forma direta com que o canto passou a ser emitido . Não existiria Gil, Elis e mesmo Milton sem antes ter surgido João .
2- até 1958 , não havia um violão que incorporasse uma estilização sintética das células rítmicas brasileiras, notadamente o samba, mas também o baião, a valsa, a marchinha. Nossos ritmos só existiam enquanto conjunto de peças percussivas exuberantes e explosivos como uma escola de samba. João inventou uma maneira de incorporar as funções básicas desses ritmos, simplificadas , e estilizadas num mínimo denominador comum, e que poderia ser transformado num grão de som. Além disso, João criou uma palheta de inversões de acordes no violão que mantinham um equilíbrio entre as notas e as funções harmônicas, dispondo do baixo, das terças e das dissonâncias (sétima, nonas e décima-terceiras), abrindo mão muitas vezes da quinta e mesmo da tônica, por serem redundantes.
3- até 1958, não havia um intérprete capaz de dar credibilidade a melodias e letras mais leves, que apenas começavam a ser compostas naquela época, por compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça ,Vinícius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros. Até então, o samba-canção, que dominava a música nacional, era praticamente sinônimo de derramamento sentimental, dor de cotuvelo, fossas profundas ou piegas declarações de amor eterno , dramático.
4- Depois da grande era inicial do samba, na década de 30, não havia cantor algum que usasse a divisão melódica como meio de improvisação rítmica, e muito menos que utilizasse esse jogo de divisões melódicas como filigranas da aproximação do canto à fala, fazendo das consoantes instrumentos percussivos que inevitavelmente apresentavam as palavras como objetos palpáveis, quase tateáveis pelo ouvido. As letras portanto passavam a se incorporar mais organicamente à experiência de fruição do ouvinte , o que , também vale ressaltar, até essa época era uma impossibilidade técnica que só se viabilizou pela invenção da gravação em canais separados e pelo advento de determinados microfones que permitiam o canto próximo sem que ele tampasse todos os instrumentos do acompanhamento .Tudo isso era inédito.
Para além dessas evidentes inovações revolucionárias, João sintetizava não só um estilo, mas um repertório que atravessava e articulava tudo aquilo que era considerado antigo com o que era evidentemente novo. O principal intérprete do moderníssimo e consagradíssimo Tom Jobim era também aquele capaz de descobrir um compositor como Jaime Silva, autor de O Pato. "Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”."
Por fim, para aqueles que ainda não entenderam João, porque vieram bem depois que suas descobertas já haviam sido incorporadas de maneira difusa por toda uma brilhante geração posterior de compositores e intérpretes : à primeira audição. aquilo que podemos chamar de "cor" na música, os aspectos mais imediatos da sonoridade de timbre, de região de emissão da voz, de volume e gesto , tudo pode até parecer enfadonho, porque nesses aspectos João sempre foi a mesma coisa - claro, depois de seu período inicial, quando era um perfeito cover de Orlando Silva, com os Garotos da Lua, em princípios dos anos 50.
Mas quando você mergulha nesse ambiente que sua música enseja, esse lugar calmo e contido onde sua voz ecoa, você consegue perceber as nuances e sutilezas, de um estilo que recusa qualquer fio de exagero, e que faz o encontro insuspeito entre tudo aquilo que era , de forma nata, brasileiro. Como se tivesse extraindo a essência do que é o Brasil.
O bom de tudo é que , graças à fonografia, não perdemos João, ganhamos para a vida inteira. Resta agora continuar espalhando os frutos-sementes que sua obra deixa para a eternidade.
Por Pablo Castro
Outros materiais:
Link para o ótimo texto de Bráulio Tavares enfocando a genialidade de João Gilberto
Link para texto do poeta Augusto de Campos que sairia em seu livro Balanço da Bossa.
Link para o doc especial da Rádio Batuta do IMS "Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto.
Link para o programa A bossa antes da bossa, com Ruy Castro.
Playlist organizada pelo Pablo Castro, pra ouvir enquanto se lê sobre João.
Registro em filme da gravação do disco Brasil, em 1981.
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