Estou querendo tanto falar dessa canção que vou até compartilhar link do Spotify - esse bandidinho que não credita os autores, e do qual os letristas são vítimas preferenciais. Deixo claro que isento qualquer parceiro meu de responsabilidade aí, isso é um defeito da plataforma, e que vem sendo criticado por todos. Entendo, obviamente, a necessidade de quem vive de música de colocar, mesmo a contragosto, seu trabalho para circular em todos os meios possíveis.
Bom, mas vamos ao mais importante. Essa eu recebi na mesma ocasião da música que veio a se tornar Veneno remédio, só que com uma curiosa e lacônica indicação. O título estava embutido no nome do arquivo MP3 que o Maurício Ribeiro, autor da música, me mandou. Um título assim, "às cegas" e "à seco", pode ser a fagulha para a criação, mas pode também bloquear tudo. A melodia tinha lirismo mas também era meio soturna. Como na anterior eu considerei que acertei a mão sem maiores indicações, resolvi ir em frente. Lancei mão de um recurso que tenho usado com alguma frequência, buscar algum texto previamente elaborado que não virou nada, do qual eu possa extrair alguma coisa. Encontrei então esse refugo intitulado "Soslaio", de onde pincei versos como "ferpa no assoalho", "ruga de uma velha", "pulga atrás da orelha", ou palavras como "caramujo" e o "soslaio" do título.
O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil. Uma grande influência de Paul em meu trabalho é a condição compartilhada de romancista frustrado - e é realmente puxado o exercício de sintetizar ideias que poderiam se desenvolver por longas páginas nos poucos versos e duração de uma canção. Emergiu um retrato muito áspero, cru mesmo, algo naturalista, elencando os sinais e gestos de decrepitude da protagonista. Ocorreu num certo momento, obviamente na cadeia das reiteradas rimas em "iz/is", que ela poderia ter sido atriz, ou na sua senilidade se comportasse como tal. Um eco distante, quem sabe, da Miss Havisham de Grandes Esperanças, meu romance preferido de Dickens, certa feita interpretada de modo marcante por Anne Bancroft (a icônica Mrs Robinson de A primeira noite de um homem). Talvez possamos ver a velha também como professora, por sugestão de "breu" e "giz".
Este é o tipo de letra que, depois de encontrado o mote, se escreve praticamente por embalo. Aqui e ali algumas jogadas, como a sequência de rimas internas nos 2ºs versos. A forma da música AABAAB'A' propõe estrofes - A - bem definidas entremeadas por pontes - B,B' - que só tem em comum o verso introdutório - repetição que busquei enfatizar com a parelha "se insinua então/se está nua então". Na estrofe final uma variação sugerida pelo Maurício que adotamos - bisa "desdobrando" o primeiro verso, e uma repetição até o gran finale em que a letra sugere para o arranjo a diminuição de andamento e o "desmanchar" no destino final da personagem e da gravação.
Não tínhamos ideia, naqueles idos, que viveríamos pra ver uma "deforma" da Previdência que agravaria as expectativas de um final de vida decente para boa parte das pessoas no Brasil. Não que haja algo de premonitório, mas de algum modo a canção agora inevitavelmente será ouvida e interpretada neste contexto. Claro, preferencialmente é um exame duro sobre a velhice, mas quem sabe não seja fatalista, por um triz.
O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil. Uma grande influência de Paul em meu trabalho é a condição compartilhada de romancista frustrado - e é realmente puxado o exercício de sintetizar ideias que poderiam se desenvolver por longas páginas nos poucos versos e duração de uma canção. Emergiu um retrato muito áspero, cru mesmo, algo naturalista, elencando os sinais e gestos de decrepitude da protagonista. Ocorreu num certo momento, obviamente na cadeia das reiteradas rimas em "iz/is", que ela poderia ter sido atriz, ou na sua senilidade se comportasse como tal. Um eco distante, quem sabe, da Miss Havisham de Grandes Esperanças, meu romance preferido de Dickens, certa feita interpretada de modo marcante por Anne Bancroft (a icônica Mrs Robinson de A primeira noite de um homem). Talvez possamos ver a velha também como professora, por sugestão de "breu" e "giz".
Este é o tipo de letra que, depois de encontrado o mote, se escreve praticamente por embalo. Aqui e ali algumas jogadas, como a sequência de rimas internas nos 2ºs versos. A forma da música AABAAB'A' propõe estrofes - A - bem definidas entremeadas por pontes - B,B' - que só tem em comum o verso introdutório - repetição que busquei enfatizar com a parelha "se insinua então/se está nua então". Na estrofe final uma variação sugerida pelo Maurício que adotamos - bisa "desdobrando" o primeiro verso, e uma repetição até o gran finale em que a letra sugere para o arranjo a diminuição de andamento e o "desmanchar" no destino final da personagem e da gravação.
Não tínhamos ideia, naqueles idos, que viveríamos pra ver uma "deforma" da Previdência que agravaria as expectativas de um final de vida decente para boa parte das pessoas no Brasil. Não que haja algo de premonitório, mas de algum modo a canção agora inevitavelmente será ouvida e interpretada neste contexto. Claro, preferencialmente é um exame duro sobre a velhice, mas quem sabe não seja fatalista, por um triz.
Às cegas (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)
Risco que correu por um triz
Malograda cicatriz
Pulga atrás d’orelha
Ruga d’uma velha
Caule que perdeu a raiz
Madrugada infeliz
Ferpa no assoalho
Retorcido galho
Se insinua então de soslaio
Vento no outono
Da pele,
Da vista,
Às cegas,
Penetra
No quarto
abissal
Vida que encenou nossa atriz
Malfadada imperatriz
Queda da cadeira
Boca de caveira
Ignora o odor do nariz
Encarquilha nos covis
Feito bicho sujo
Lento caramujo
Se está nua então, só decai
teia que se trai
areia que se esvai
a veia sobressalta
Balbucio que se desdiz
Maldizeres infantis
O risco que correu
A vida por um triz
Acaba nesse breu
Desmancha feito um giz
O risco que correu
A vida por um triz
Acaba nesse breu
Desmancha feito um giz
https://open.spotify.com/track/1fNM0XuIMTEzCTta4FFJSO
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