Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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7 de julho de 2019

Jamais chegará a saudade de João

Foi-se João.
Um revolucionário sutil.
A simplicidade complexa em pessoa.
O violão que decifrou a batida transcendental do coração do Brasil.
E agora, João?
Só nos cabe cuidar para que sua lembrança continue tocando essa batida. Ensinando pra nós e pro mundo o que é que o Brasil tem. 

Foram as primeiras palavras que escrevi quando a notícia me chegou. Pretenderam ser justas e sintéticas, como a própria música de João Gilberto é. Mas sinto que é preciso deixar um pouco mais de caldo. Até porque, quem sabe, alguém ainda possa descobrir João, seu canto, seu violão, sua síntese mais que perfeita do Brasil. Resolvi então reunir aqui contribuições de dois parceiros que já colaboraram outras vezes aqui no blog e que expressão boa parte do mais que eu poderia dizer, Rafael Senra e Pablo Castro. O primeiro contrastando conjunturas entre o efervescer da bossa nova e a atualidade, o segundo num verdadeiro mergulho diacrônico mostrando que João Gilberto é ponto nodal na história de nossa música popular. Fica ainda aberta a porta, para agregar nos comentários o que mais os leitores acharem por bem incluir. 

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Achei bonito ler o depoimento da Gal Costa em que ela diz que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. A música popular de hoje não traz nada do DNA do pai da bossa nova: é urgente, agressiva, com um registro de canto quase histérico, repleto de vibratos caricatos que trazem o pior de tradições musicais estrangeiras, completamente alheias à nosso ecossistema musical.
Vez ou outra, músicas que ele imortalizou aparecem repaginadas em aberturas de novelas, ou cantadas por subcantores em programas de auditório. Na nossa cultura mainstream, é assim que o legado de João sobrevive.
O Brasil de agora é diametralmente distante do idealismo bossanovista. Nos tornamos o oposto de tudo que foi sonhado naqueles tempos. O Rio de Janeiro do barquinho e do violão tornou-se o Rio da propina e das milícias. A modernidade de JK (época em que João foi trilha sonora obrigatória) deu lugar a um retorno da precariedade medieval travestida de progresso. Temos uma população que perdeu a CLT e está prestes a perder o direito a se aposentar.
Continuo achando que João Gilberto ensinou a delicadeza para o Brasil. Mas os que não a aprenderam são os que tomaram o poder. A delicadeza não quer o poder: as flores que perfumam o jardim nunca tentariam toma-lo para si. Os que amam a beleza e a verdade estão de luto.

 Por Rafael Senra

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Ninguém é obrigado a gostar desse ou daquele artista, mas o bom da arte é que nem tudo se resume a gosto pessoal. Cada campo artístico tem uma história, um desenrolar dos acontecimentos, um diálogo diacrônico e mutuamente estimulante entre artistas, crítica e público.
E há fatos históricos inexoráveis, que apresentam revelações, invenções de tal modo inesperadas que provocam abalos sísmicos nas sensibilidades gerais.
Por que João Gilberto é o maior divisor de águas da música popular brasileira ? Nada do que se elenca aqui é questão de gosto :
1- até 1958, inexistia um canto popular que não fosse adornado, impostado, cheio de voltinhas ,vibratos, glissandos. Simplesmente ninguém nunca tinha ouvido um canto despojado disso tudo. Nem aqui nem alhures. Quem introduziu esse tipo de canto nos Estados Unidos foi Chet Baker e quem introduziu isso no Brasil foi João Gilberto. É muito difícil para nós outros imaginar o impacto da ouvir pela primeira vez um tipo de canto que se tornaria hegemônico, um canto mais despido de volteios e gracejos . Mesmo no caso de cantores mais potentes, com grande projeção de voz ,a influência de João Gilberto foi decisiva, pela forma direta com que o canto passou a ser emitido . Não existiria Gil, Elis e mesmo Milton sem antes ter surgido João .
2- até 1958 , não havia um violão que incorporasse uma estilização sintética das células rítmicas brasileiras, notadamente o samba, mas também o baião, a valsa, a marchinha. Nossos ritmos só existiam enquanto conjunto de peças percussivas exuberantes e explosivos como uma escola de samba. João inventou uma maneira de incorporar as funções básicas desses ritmos, simplificadas , e estilizadas num mínimo denominador comum, e que poderia ser transformado num grão de som. Além disso, João criou uma palheta de inversões de acordes no violão que mantinham um equilíbrio entre as notas e as funções harmônicas, dispondo do baixo, das terças e das dissonâncias (sétima, nonas e décima-terceiras), abrindo mão muitas vezes da quinta e mesmo da tônica, por serem redundantes.
3- até 1958, não havia um intérprete capaz de dar credibilidade a melodias e letras mais leves, que apenas começavam a ser compostas naquela época, por compositores como Tom Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça ,Vinícius de Morais, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, entre outros. Até então, o samba-canção, que dominava a música nacional, era praticamente sinônimo de derramamento sentimental, dor de cotuvelo, fossas profundas ou piegas declarações de amor eterno , dramático.
4- Depois da grande era inicial do samba, na década de 30, não havia cantor algum que usasse a divisão melódica como meio de improvisação rítmica, e muito menos que utilizasse esse jogo de divisões melódicas como filigranas da aproximação do canto à fala, fazendo das consoantes instrumentos percussivos que inevitavelmente apresentavam as palavras como objetos palpáveis, quase tateáveis pelo ouvido. As letras portanto passavam a se incorporar mais organicamente à experiência de fruição do ouvinte , o que , também vale ressaltar, até essa época era uma impossibilidade técnica que só se viabilizou pela invenção da gravação em canais separados e pelo advento de determinados microfones que permitiam o canto próximo sem que ele tampasse todos os instrumentos do acompanhamento .Tudo isso era inédito.
Para além dessas evidentes inovações revolucionárias, João sintetizava não só um estilo, mas um repertório que atravessava e articulava tudo aquilo que era considerado antigo com o que era evidentemente novo. O principal intérprete do moderníssimo e consagradíssimo Tom Jobim era também aquele capaz de descobrir um compositor como Jaime Silva, autor de O Pato. "Jaime Silva (1921-1973) era um mulato alto, elegante e simpático”, segundo Ruy Castro no livro “Chega de saudade”. Alagoano de nascimento, mas morando no Rio desde menino, era sapateiro do serviço de intendência do exército, além de pandeirista e eventual compositor, nas horas vagas. Costumava namorar sua futura esposa, Maria, no ‘Campo de Santana’, Zona Centro do Rio de Janeiro, onde observando patos e marrecos se esbaldarem no laguinho local prometia, contemplativo: “ainda vou fazer uma música com esses patinhos…”."
Por fim, para aqueles que ainda não entenderam João, porque vieram bem depois que suas descobertas já haviam sido incorporadas de maneira difusa por toda uma brilhante geração posterior de compositores e intérpretes : à primeira audição. aquilo que podemos chamar de "cor" na música, os aspectos mais imediatos da sonoridade de timbre, de região de emissão da voz, de volume e gesto , tudo pode até parecer enfadonho, porque nesses aspectos João sempre foi a mesma coisa - claro, depois de seu período inicial, quando era um perfeito cover de Orlando Silva, com os Garotos da Lua, em princípios dos anos 50.
Mas quando você mergulha nesse ambiente que sua música enseja, esse lugar calmo e contido onde sua voz ecoa, você consegue perceber as nuances e sutilezas, de um estilo que recusa qualquer fio de exagero, e que faz o encontro insuspeito entre tudo aquilo que era , de forma nata, brasileiro. Como se tivesse extraindo a essência do que é o Brasil.
O bom de tudo é que , graças à fonografia, não perdemos João, ganhamos para a vida inteira. Resta agora continuar espalhando os frutos-sementes que sua obra deixa para a eternidade.

Por Pablo Castro

Outros materiais:

Link para o ótimo texto de Bráulio Tavares enfocando a genialidade de João Gilberto
Link para texto do poeta Augusto de Campos que sairia em seu livro Balanço da Bossa.
Link para o doc especial da Rádio Batuta do IMS "Tim tim por tim tim: a música de João Gilberto.
Link para o programa A bossa antes da bossa, com Ruy Castro.
Playlist organizada pelo Pablo Castro, pra ouvir enquanto se lê sobre João.

Registro em filme da gravação do disco Brasil, em 1981.


30 de maio de 2015

Violão Ibérico, trabalho de excelente qualidade contanto a história do instrumento que cruzou o Atlântico e tem um papel fundamental na história da música popular no Brasil, onde também foram escritas algumas das mais marcantes páginas de sua própria trajetória no tempo. Além do livro foram produzidos vídeos inestimáveis, apresentando o depoimento de alguns dos músicos que já deixaram a marca de suas notas, dedos e criação definitivamente impressos quando se trata desse assunto. Separei, a título de amostra, três vídeos de três "casos sérios" da banda de cá do Oceano:
Guinga, João Bosco e Toninho Horta. Acompanha a descrição disponibilizada via You Tube.




"Estão todos na contramão." Guinga fala sobre o estilo de tocar e as influências de diversos craques, como João Gilberto, Nelson Cavaquinho, Toninho Horta e Raphael Rabello. E também da forma como alguns destes e outros tantos mestres marcaram a sua carreira. "Eu odeio partitura!"



"Depois de falar sobre sua história com o violão, Toninho Horta toca Meu canário vizinho azul, destacando detalhes do processo de composição da música."



"João Bosco fala sobre o processo de composição da música O Ronco da Cuíca, fruto de sua parceria com Aldir Blanc, enquanto toca o samba neste vídeo exclusivo".






27 de maio de 2012

Gilnial!

Uma conjunção cósmica orquestrada por estrelas que passaram bem perto da minha casa fez cair literalmente do céu um par de convites para o espetacular show "Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo" de Gilberto Gil. Já estava tomado de grande ansidade em presenciá-lo depois de ler o que havia escrito meu parceiro Pablo Castro, texto que reproduzo abaixo:
"Extraordinário, magnífico, sensacional o show do monstro Gilberto Gil ontem no Palácio das Artes. Provou, mais uma vez, que é um dos maiores criadores de música popular do século XX com sua imensa versatilidade, seu domínio de cada dimensão da canção, sua performance serena e intensa, seu radar cósmico, político, afetivo e filosófico. Uma banda de formação rara ( violoncelo - Morelembaum, violino, 2 violões, Gil e seu filho Bem, um percuterista e um programador) com a mais fina escolha de repertório que já vi numa apresentação do mestre, com pérolas como Futurível, Viramundo, Domingo no Parque, Máquina de Ritmo, Oriente, Não Tenho Medo da Morte, e sem nem um chavão, que alegria! Aos 70 anos exibe frescor na única inédita do show, Eu Descobri. Só pela imensa obra que deixa, Gilberto Gil já seria uma das personalidades mais influentes da cultura brasileira de todos os tempos, mas ainda teve a chance de dar outra dimensão ao Ministério da Cultura, infelizmente regredida ao que vemos hoje. Viva GIL!!!! 70 anos de um mestre!"
O que poderia acrescentar? Não precisa muito... Uma banda com entrosamento absoluto (menção honrosa para o 'percuterista' Gustavo di Dalva, impressionante!), arranjos preciosos, repertório surpreendente (o próprio comenta aqui), Gil cantando e tocando muito como sempre e o público absolutamente embevecido. Preferências atendidas? Expresso 2222 [eu e o João Bosco], Domingo no Parque, Oriente... Versões sensacionais? Juazeiro...Up from the skies...Panis et Circensis... Passagens pelos mestres? Jobim, João, Caymmi, Luiz Gonzaga... Emoções particulares? De sobra... Gil não poderia ter escolhido melhor o nome, pois ele próprio encarna-o - é um conjunto de cordas e uma máquina de ritmo sintetizados num brasileiro ímpar.




Como sempre ocorre nessas ocasiões, súbitos elos se formam, encadeando momentos diferentes. Lembranças dissipadas se condensam. Ouvindo o violão de Gil, lembrei-me que outro dia havia comentado de uma entrevista dada por ele pouco antes do retorno do exílio londrino. [As experiências e a volta de Gilberto Gil. Veja, 19/01/1972, p.67].
No Brasil, eu era um fazedor de músicas e tocava violão incidentalmente. (...) Eu me assustei, ao chegar na Inglaterra, com o nível, a qualidade, o acabamento da música que se fazia aqui. O meu nível não era nada, comparado com o da praça. Hoje, eu sou um instrumentista.
Seu relato ajuda a iluminar (junto à audição do disco que breve lançaria, Expresso 2222) os efeitos do período sobre sua música e especialmente seu jeito de tocar. Tratei do mesmo em minha tese para pensar o problema da interculturalidade, uma vez que Gil 

"(...) fala da necessidade de voltar ao Brasil, ainda que provisoriamente, para “retomar o contato com a coisa local”, pois a vida fora trouxera um “alargamento de visão” e uma “curiosidade enorme em torno das coisas brasileiras”, as quais reconhece não conhecer tão bem quanto pensava. Vivendo fora, havia passado por um “processo de absorção” da “música pop que não sofre a força da gravidade”, ou seja, não se prende ao tradicional / regional (representado pelo elemento terra). Em seu projeto de retorno, faz menção de “ir ao morro falar com os sambistas”, “ir a algumas cidades do nordeste encontrar violeiros repentistas” (GARCIA, 2007, p.85)
Mas enfim, como tuda essa conversa começou por causa das estrelas, só poderia terminar assim...



3 de janeiro de 2012

Grandes encontros e histórias de compositores: afro-sambas

Instigado pelo Marcelo Gloor, vou tratar do grande encontro de Vinícius com Baden Powell. Lembro com nitidez o momento exato em que descobri, numa das entrevistas do Pasquim, revisitadas durante a pesquisa do doutorado, um detalhe que escapa de muitos relatos (inclusive dos protagonistas!) sobre a história dessa reunião espetacular. Segundo Baden [O Pasquim, n°35, 09-15/02/1970, p.15], Berimbau foi composta por volta de 1960, e só posteriormente incorporada por Vinícius no conjunto dos “afro-sambas”, que seriam reunidos no LP Os Afrosambas (Forma, 1966).




Outra pista apareceu numa fala de Edu Lobo em mesa de debate promovida no n° 4 da Revista Civilização Brasileira, em 1965:
“(...) Mas nossa música não parou aí. Surgiram variações da bossa nova original, que só atestam sua riqueza. Até que surgiu Baden Powell que introduziu o elemento afro, no caso, o samba negro, com batida (‘Berimbau’ é um exemplo) e com influência de Villa-Lobos (...)”

Muito poderia ser dito a partir desse trecho, inclusive sobre o sentido que tinha então o termo "afro", certamente diferente do atual. Mas interessa aqui é constatar que os afro-sambas não podem ser interpretados como mero desenvolvimento dentro da bossa nacionalista de meados dos anos 1960, pois rompem com alguns de seus padrões, especialmente na sua concepção rítmica e execução violonística. Por outro lado não podem ser percebidos como projeto de ruptura total, uma vez que não foram criados ou recebidos assim no contexto de sua produção e recepção inicial. Por fim, vale ressaltar que as discussões sobre o nacional e o popular daquele momento foram acirradas e geraram muitos desdobramentos historica e esteticamente relevantes para a música popular brasileira. Os afro-sambas são prova disso e mereceram inúmeras regravações, dentre tantas maravilhosas destaco o disco primoroso de Mônica Salmaso e Paulo Bellinati:

30 de outubro de 2011

Quando Mingus encontra o samba


Graças à magistral parceria de Guinga e Aldir Blanc, Mingus encontra o samba. Essa versão instrumental tem a assinatura do Marcus Tardelli, violonista de mão cheia discípulo do Guinga.

14 de junho de 2011

A história do instrumento mais popular da MPB

De viola a violão
Livro de pesquisadora carioca revela detalhes sobre a história do instrumento mais popular da MPB, da sua chegada ao Brasil até as primeiras décadas do XX
Alice Melo
13/6/2011
Um trecho do texto publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional:
Quando chegou ao Brasil, ele se chamava viola. O tempo passou, seu corpo aumentou, ganhou as seis cordas. O violão, como ficou conhecido, já foi visto como instrumento de malandro, mas, durante a década de 1920, passou a ser reivindicado como um elemento inerente à identidade nacional, sentimento que se reforçou no fim dos anos 1950, com a bossa nova. “É preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede”, já dizia Lima Barreto pela voz do personagem Policarpo Quaresma, em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, publicado pela primeira vez em 1911.