Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

29 de outubro de 2019

No estúdio com Thiakov - Hey Jude


Produzindo os Beatles- Hey Jude (Lennon/McCartney)


Depois de tanto terem explorado diversos campos harmônicos, cadências exóticas, ritmos de outras culturas, melodias que desafiam os ouvidos acostumados com a tranquilidade da meia-idade musical dos Beatles (entre 64 e 66), o conjunto retornaria aos signos tonais mais reconhecidos pela humanidade pós-J.S Bach e seu Cravo bem Temperado, uma escolha estética que priorizaria a emoção da interpretação em detrimento do cerebralismo celebrado por eles, em certa dose, e principalmente pelos seus contemporâneos do emergente rock-progressivo. Desde a temática da letra  até a finalização da gravação, toda a canção está imbuída de sentimentos fortes, porém observados de um ponto de vista simplista e assim executados de maneira estoica.


Hey Jude veio a tornar-se a maior música pop a tocar nas rádios, desde então, e chegar ao primeiro lugar nas paradas (19 semanas no total e 9 no topo). Com seus mais de 7 minutos divididos em: 3 minutos de canção e mais de 4 de nanana (um mantra pós-viagem indiana, um capítulo à parte que mudou radicalmente a cabeça e o penteado dos garotos de Liverpool), a música inicialmente sofreu tentativas de corte de tempo pelas rádios, porém sucedeu tornar-se hit e ser enfiada goela abaixo dos DJs que insistiam em querer ficar somente com a primeira parte. O assunto era delicado e assim foi tratado por Paul. Era sobre a recente separação de John e Cynthia Lennon e dos sentimentos do protagonista, o filho do casal, Julian – o Jude. Foi um jeito encontrado pelo “tio” Macca para consolar o garoto frustrado com o divórcio dos pais. Olha Jude, não leve a mal, pegue uma canção e a faça melhor, se alguma hora você sentir a dor, olha Jude, desacelere, não carregue o mundo nos ombros. Enquanto escreviam a letra Paul conta que Lennon ficou por diversas vezes emocionado e nem se importou com a repetição da palavra “ombros” na música, coisa que evitavam.


É incrível o casamento da harmonia com as palavras. A primeira parte da canção é uma aula de harmonia para principiantes, enquanto o nanana já é para intermediários, com uma introdução ao modalismo. Na teoria básica de harmonia tonal temos fundamentalmente três sensações possíveis, que são as três funções principais: repouso (tônica), afastamento (sub-dominante) e tensão (dominante), e toda expansão harmônica se dá a partir desses três acordes. São o I, IV e V, sendo que, se estamos em Dó Maior, são: I-Dó, IV-Fá e V-Sol, mas como Hey Jude é em Fá Maior, transpomos as mesmas relações e temos: I-Fá, IV-Si bemol e V-Dó. Analisando a letra em conjunto com essas sensações tonais, chegamos em um assombroso esqueleto estético de arrepiar qualquer cancioneiro. Começa somente com o chamado de Paul com um “Hey” e já vem o acorde de repouso, a tônica em “Jude”, don´t make it “bad” – tensão com o V grau, take a sad song – ainda tensão, and make it “better” – repouso no I, “remember” – afastamento com o IV, to let her into your “heart” – repouso, then you can “start” – tensão, to make it “better” – repouso, “Hey Jude” – repouso, don´t be “afraid” – tensão, you are made go out and “get her” – repouso, the “minute” – afastamento, you let her under your “skin” – repouso, then you can “begin” – tensão, to make it “better” – repouso. No intermezzo, Paul expande a letra e a harmonia mas sem sair do campo tonal. O único momento onde a cor dos acordes muda é no final, o nanana, onde com apenas um acorde a mais – o Mi bemol, a música passa a ser modal, um mixolídio emocionante depois de minutos perfeitamente tonais, e sobretudo turbinada pelo naipe de metais que aparece só pra dar mais força a esse imenso CODA (um final diferente de todo o resto). 
 
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]


Após tamanhas loucuras composicionais experimentalistas, os Beatles estavam de volta num campo onde, aí sim, eram especialistas: a emoção bruta, gutural, simples e radical. Foi assim que ganharam o mundo em hits orgânicos numa roupagem que ainda não se tinha visto anteriormente. O piano é quase infantil, um jeito de tocar que tornou-se assinatura do quarteto e também da posterior carreira solo de cada um, que é tocar na mão direita o tempo forte respondido com o contratempo na mão esquerda ´- vide I am the walrus, Golden Slumbers, Imagine, Maybe I´m amazed, etc., mas é esse piano infantil que faz um truque que virou outra assinatura deles: na ponte que vai para a parte B, Paul canta “then you can start to make it better” e o piano faz uma caída melódica com a 8ª-7ª maior-7ª menor (que gera tensão) e isso foi ouvido por diversas vezes em gravações posteriores – vide Balada do louco dos Mutantes, que reconhece todas essas assinaturas e as homenageia com maestria e criatividade. Lennon toca um violão simples com os acordes básicos e uma batida desdobrada em colcheias, mas com uma pegada bem forte, priorizando o contratempo na subida da palheta, fazendo o violão ficar estridente e rascante. Num dos vídeos da gravação em estúdio observei que o violão fora microfonado com um mic dinâmico mirado na boca do instrumento a curta distância e passei a utilizar-me dessa técnica não muito comum. George Harrison, além de dividir o coro com John, toca o baixo, na verdade uma guitarra barítono, apenas com as notas fundamentais dos acordes ou raramente umas inversões e faz um ligeiro overdub de guitarra elétrica dobrando ou imitando o nananana nas entradas e saídas da parte B. E, finalmente, Ringo toca uma bateria aparentemente super humilde porém com detalhes ocultos a um observador menos atento. A caixa e os tontons da bateria estão cobertas com um pano grosso que deixa o som abafado e seco, mais ou menos como bater com a baqueta numa almofada, e o prato de condução é tocado na cúpula, parecendo um sino, e o mais interessante é que o baterista inverte a tradicional batida que os ouvidos já tanto se acostumaram: ao invés de tocar o bumbo nos tempos 1-3-e(do 3), ele toca 1-e(do 1)-3, fazendo parecer estar ao contrário do esperado.


No último verso, Lennon parece novamente não se conter e faz a segunda voz da estrofe, costurando a melodia líder de Paul, ora tecendo os graves, ora atravessando para os agudos. Tudo vai ao mesmo tempo calmo como uma balada, mas também tenso devido à temática da letra em si e ao espírito da época, quando a relação pessoal entre os membros do grupo não ia muito bem. Por esses motivos eles parecem tocar todos os instrumentos com muita força e energia, coisa que se repetiria em uma próxima balada, Don´t let me down. O gran finale se dá com um apogeu redundante da palavra “better” que vai crescendo do grave para o agudo sempre com um semitom abaixo das notas do arpejo maior da tríade de Fá maior, sendo Mi-Fá, Sol#-Lá, Si-Dó, se repetindo por duas oitavas, culminando num Fá, um super-Fá, introduzindo o mantra mixolídio que diz nananana, Hey Jude, transformando seu nome em totem, em símbolo de força e resiliência e nanana é uma maneira de dizer nananão, deixa disso Jude, vai tudo ficar melhor, melhor, melhor....


OBS 1: É impressionante os gritos desesperados e rockes que McCartney dá durante o final, entrecortando o mantra com urros. Vale a pena se atentar a cada um.


OBS2:  Aos 5´36” rola o famoso chamado de Lennon que no Brasil se popularizou como “Pega o cavaquinho” mas na verdade era “’pain won´t come back Jude”.


OBS3:  Uma escolha estética da época fazia com que os pandeiros e pandeirolas aparecessem muitas vezes, nas mixagens, com o volume mais alto do que o da bateria. Este é um caso de pandeiro solista.


OBS4: Já ouvi e li por diversas vezes que Ringo não era um bom baterista, do que discordo veementemente. Nessa canção ele espera por um bom tempo, até a parte B para entrar com a bateria. Essa simples escolha já o torna um esteta do instrumento e o fato de ele distinguir tão bem o momento para entrar e tocar já o coloca no panteão das baquetas do rock, pois simplicidade não é sinônimo de inocência ou despreparo, muito ao contrário. Sua paciência em sentar-se na bateria e tocar um pandeiro na primeira parte acentua a sensação de quebra da primeira para a segunda. O mesmo se dá com os outros instrumentos que vão chegando de um a um, se aproximando lentamente do interlocutor e também do personagem protagonista, num gradual abraço até um cafuné carinhoso e coletivo, motivando-o a sair desse estado de tristeza e gerando nele força e alegria de viver. 


OBS5: Reforço o refinamento estético do drummer enfatizando um momento que dura menos de um segundo mas que para mim é absolutamente contundente: no fim do apogeu do better better, no momento em que toda a banda para de tocar e ouve-se o grito de Paul ahhhhhh, imediatamente antes do nananana, Ringo toca um chimbal, apenas um, criando uma tensão incomensurável. Outros bateristas provavelmente fariam uma virada nos tontons e caixa e ele escolhe a simplicidade de uma nota para introduzir uma atmosfera iminente. E na minha opinião ele é o melhor nas viradas de rock. Ele é o Bach dos “drum fill”, fazendo as melhores melodias possíveis nos tambores – vide A day in the life, Strawberry Fields Forever e muitas outras. Vale pontuar o fato de ele ser canhoto e acentuar numa bateria para destros, com a mão esquerda.


OBS6: O nanana parece-me claramente uma influência advinda do Gospel e se fosse nananana, oh lord, estaria ainda sim muito bem contextualizada esteticamente. Essa sim é a igreja do rock e se os quatro cabeludos forem futuramente canonizados a mim não será nenhuma surpresa.