Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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29 de outubro de 2019

No estúdio com Thiakov - Hey Jude


Produzindo os Beatles- Hey Jude (Lennon/McCartney)


Depois de tanto terem explorado diversos campos harmônicos, cadências exóticas, ritmos de outras culturas, melodias que desafiam os ouvidos acostumados com a tranquilidade da meia-idade musical dos Beatles (entre 64 e 66), o conjunto retornaria aos signos tonais mais reconhecidos pela humanidade pós-J.S Bach e seu Cravo bem Temperado, uma escolha estética que priorizaria a emoção da interpretação em detrimento do cerebralismo celebrado por eles, em certa dose, e principalmente pelos seus contemporâneos do emergente rock-progressivo. Desde a temática da letra  até a finalização da gravação, toda a canção está imbuída de sentimentos fortes, porém observados de um ponto de vista simplista e assim executados de maneira estoica.


Hey Jude veio a tornar-se a maior música pop a tocar nas rádios, desde então, e chegar ao primeiro lugar nas paradas (19 semanas no total e 9 no topo). Com seus mais de 7 minutos divididos em: 3 minutos de canção e mais de 4 de nanana (um mantra pós-viagem indiana, um capítulo à parte que mudou radicalmente a cabeça e o penteado dos garotos de Liverpool), a música inicialmente sofreu tentativas de corte de tempo pelas rádios, porém sucedeu tornar-se hit e ser enfiada goela abaixo dos DJs que insistiam em querer ficar somente com a primeira parte. O assunto era delicado e assim foi tratado por Paul. Era sobre a recente separação de John e Cynthia Lennon e dos sentimentos do protagonista, o filho do casal, Julian – o Jude. Foi um jeito encontrado pelo “tio” Macca para consolar o garoto frustrado com o divórcio dos pais. Olha Jude, não leve a mal, pegue uma canção e a faça melhor, se alguma hora você sentir a dor, olha Jude, desacelere, não carregue o mundo nos ombros. Enquanto escreviam a letra Paul conta que Lennon ficou por diversas vezes emocionado e nem se importou com a repetição da palavra “ombros” na música, coisa que evitavam.


É incrível o casamento da harmonia com as palavras. A primeira parte da canção é uma aula de harmonia para principiantes, enquanto o nanana já é para intermediários, com uma introdução ao modalismo. Na teoria básica de harmonia tonal temos fundamentalmente três sensações possíveis, que são as três funções principais: repouso (tônica), afastamento (sub-dominante) e tensão (dominante), e toda expansão harmônica se dá a partir desses três acordes. São o I, IV e V, sendo que, se estamos em Dó Maior, são: I-Dó, IV-Fá e V-Sol, mas como Hey Jude é em Fá Maior, transpomos as mesmas relações e temos: I-Fá, IV-Si bemol e V-Dó. Analisando a letra em conjunto com essas sensações tonais, chegamos em um assombroso esqueleto estético de arrepiar qualquer cancioneiro. Começa somente com o chamado de Paul com um “Hey” e já vem o acorde de repouso, a tônica em “Jude”, don´t make it “bad” – tensão com o V grau, take a sad song – ainda tensão, and make it “better” – repouso no I, “remember” – afastamento com o IV, to let her into your “heart” – repouso, then you can “start” – tensão, to make it “better” – repouso, “Hey Jude” – repouso, don´t be “afraid” – tensão, you are made go out and “get her” – repouso, the “minute” – afastamento, you let her under your “skin” – repouso, then you can “begin” – tensão, to make it “better” – repouso. No intermezzo, Paul expande a letra e a harmonia mas sem sair do campo tonal. O único momento onde a cor dos acordes muda é no final, o nanana, onde com apenas um acorde a mais – o Mi bemol, a música passa a ser modal, um mixolídio emocionante depois de minutos perfeitamente tonais, e sobretudo turbinada pelo naipe de metais que aparece só pra dar mais força a esse imenso CODA (um final diferente de todo o resto). 
 
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]


Após tamanhas loucuras composicionais experimentalistas, os Beatles estavam de volta num campo onde, aí sim, eram especialistas: a emoção bruta, gutural, simples e radical. Foi assim que ganharam o mundo em hits orgânicos numa roupagem que ainda não se tinha visto anteriormente. O piano é quase infantil, um jeito de tocar que tornou-se assinatura do quarteto e também da posterior carreira solo de cada um, que é tocar na mão direita o tempo forte respondido com o contratempo na mão esquerda ´- vide I am the walrus, Golden Slumbers, Imagine, Maybe I´m amazed, etc., mas é esse piano infantil que faz um truque que virou outra assinatura deles: na ponte que vai para a parte B, Paul canta “then you can start to make it better” e o piano faz uma caída melódica com a 8ª-7ª maior-7ª menor (que gera tensão) e isso foi ouvido por diversas vezes em gravações posteriores – vide Balada do louco dos Mutantes, que reconhece todas essas assinaturas e as homenageia com maestria e criatividade. Lennon toca um violão simples com os acordes básicos e uma batida desdobrada em colcheias, mas com uma pegada bem forte, priorizando o contratempo na subida da palheta, fazendo o violão ficar estridente e rascante. Num dos vídeos da gravação em estúdio observei que o violão fora microfonado com um mic dinâmico mirado na boca do instrumento a curta distância e passei a utilizar-me dessa técnica não muito comum. George Harrison, além de dividir o coro com John, toca o baixo, na verdade uma guitarra barítono, apenas com as notas fundamentais dos acordes ou raramente umas inversões e faz um ligeiro overdub de guitarra elétrica dobrando ou imitando o nananana nas entradas e saídas da parte B. E, finalmente, Ringo toca uma bateria aparentemente super humilde porém com detalhes ocultos a um observador menos atento. A caixa e os tontons da bateria estão cobertas com um pano grosso que deixa o som abafado e seco, mais ou menos como bater com a baqueta numa almofada, e o prato de condução é tocado na cúpula, parecendo um sino, e o mais interessante é que o baterista inverte a tradicional batida que os ouvidos já tanto se acostumaram: ao invés de tocar o bumbo nos tempos 1-3-e(do 3), ele toca 1-e(do 1)-3, fazendo parecer estar ao contrário do esperado.


No último verso, Lennon parece novamente não se conter e faz a segunda voz da estrofe, costurando a melodia líder de Paul, ora tecendo os graves, ora atravessando para os agudos. Tudo vai ao mesmo tempo calmo como uma balada, mas também tenso devido à temática da letra em si e ao espírito da época, quando a relação pessoal entre os membros do grupo não ia muito bem. Por esses motivos eles parecem tocar todos os instrumentos com muita força e energia, coisa que se repetiria em uma próxima balada, Don´t let me down. O gran finale se dá com um apogeu redundante da palavra “better” que vai crescendo do grave para o agudo sempre com um semitom abaixo das notas do arpejo maior da tríade de Fá maior, sendo Mi-Fá, Sol#-Lá, Si-Dó, se repetindo por duas oitavas, culminando num Fá, um super-Fá, introduzindo o mantra mixolídio que diz nananana, Hey Jude, transformando seu nome em totem, em símbolo de força e resiliência e nanana é uma maneira de dizer nananão, deixa disso Jude, vai tudo ficar melhor, melhor, melhor....


OBS 1: É impressionante os gritos desesperados e rockes que McCartney dá durante o final, entrecortando o mantra com urros. Vale a pena se atentar a cada um.


OBS2:  Aos 5´36” rola o famoso chamado de Lennon que no Brasil se popularizou como “Pega o cavaquinho” mas na verdade era “’pain won´t come back Jude”.


OBS3:  Uma escolha estética da época fazia com que os pandeiros e pandeirolas aparecessem muitas vezes, nas mixagens, com o volume mais alto do que o da bateria. Este é um caso de pandeiro solista.


OBS4: Já ouvi e li por diversas vezes que Ringo não era um bom baterista, do que discordo veementemente. Nessa canção ele espera por um bom tempo, até a parte B para entrar com a bateria. Essa simples escolha já o torna um esteta do instrumento e o fato de ele distinguir tão bem o momento para entrar e tocar já o coloca no panteão das baquetas do rock, pois simplicidade não é sinônimo de inocência ou despreparo, muito ao contrário. Sua paciência em sentar-se na bateria e tocar um pandeiro na primeira parte acentua a sensação de quebra da primeira para a segunda. O mesmo se dá com os outros instrumentos que vão chegando de um a um, se aproximando lentamente do interlocutor e também do personagem protagonista, num gradual abraço até um cafuné carinhoso e coletivo, motivando-o a sair desse estado de tristeza e gerando nele força e alegria de viver. 


OBS5: Reforço o refinamento estético do drummer enfatizando um momento que dura menos de um segundo mas que para mim é absolutamente contundente: no fim do apogeu do better better, no momento em que toda a banda para de tocar e ouve-se o grito de Paul ahhhhhh, imediatamente antes do nananana, Ringo toca um chimbal, apenas um, criando uma tensão incomensurável. Outros bateristas provavelmente fariam uma virada nos tontons e caixa e ele escolhe a simplicidade de uma nota para introduzir uma atmosfera iminente. E na minha opinião ele é o melhor nas viradas de rock. Ele é o Bach dos “drum fill”, fazendo as melhores melodias possíveis nos tambores – vide A day in the life, Strawberry Fields Forever e muitas outras. Vale pontuar o fato de ele ser canhoto e acentuar numa bateria para destros, com a mão esquerda.


OBS6: O nanana parece-me claramente uma influência advinda do Gospel e se fosse nananana, oh lord, estaria ainda sim muito bem contextualizada esteticamente. Essa sim é a igreja do rock e se os quatro cabeludos forem futuramente canonizados a mim não será nenhuma surpresa.


25 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - A day in the life

Produzindo os Beatles - A day in the life

Quase que Lennon ficou de fora como compositor do disco Sgt Peppers. Andava dreamy, divagando em sua própria mente, experimentando viagens aprofundadas. Não fosse pela insistência da equipe e sua inspiração potencial, acabaria por deixar o álbum nas mãos do emergente líder McCartney. Talvez por isso mesmo buscou idéias em coisas mundanas e fugazes como jornais, anúncios de tevê, cartazes e desenhos infantis de seu filho. Sagaz como de costume conseguiu arrancar leite dessas pedras brutas que nos bombardeiam todos os dias e passam desapercebidas mas não para um criador.
"Espalhe o microfone em cima do piano, meio baixo, mantendo-o dentro, as maracas, saca? Fada de ameixa, fada de ameixa". Com estas palavras John introduz o que se tornaria a balada mais intensa desse novo álbum. "Dá pra por aquele eco do Elvis?". Emerick, o jovem engenheiro de gravação, afogou Lennon nesse delay de fita.
O primeiro take foi simples, com o quarteto em uma formação bem inusitada: George nos bongôs, Richard nas maracas, John no violão de aço e Paul no piano. Tocaram a incompleta música até o fim que havia, deixando uma longa parte sem vocais, com o roadie Mal Evans contando os compassos em voz alta e com um despertador na mão (que acabaram por vazar nos mics e são ouvidos na versão final).
Dias se passaram até voltarem à gravação, o que era comum depois de Strawberry Fields, e logo que escolheram os melhores takes de voz foram pra sessão de overdub. Sem as peles de resposta dos tambores e com microfones posicionados dentro dos toms, com extrema compressão (aparelho que reduz a dinâmica), Ringo experimentou como nunca e assim, numa evolução da supracitada Strawberry, fez uma construção de bateria baseada em viradas e ataques de prato. A parte que restava incompleta carecia de algo forte e intenso. John sugeriu que fosse um som que começasse pequeno e fosse crescendo até uma explosão. Paul embarcou na onda e evoluiu a ideia para uma orquestra em crescendo. O produtor olhou para o quarteto e disse: miguxos, jamais receberão aprovação da EMI pra alugarem uma full orchestra pra gravar alguns compassos de doideira em uma música. Ringo, como bom enxadrista, deu xeque-mate: alugamos meia orquestra e gravamos duas vezes.
A tumultuada sessão de gravação da orquestra, ou melhor, o happening começou já dando sinais da loucura que viria pela frente. Entram pela porta principal do estúdio 2 do Abbey Road, em seus psychedelic suits, Mick Jagger, Keith Richards, Marianne Faithful e muitos outros convidados para uma suposta festa. Os músicos da orquestra já bem incomodados por terem que usar nariz de palhaço, aguentar o som de balões explodindo (também audíveis no disco) e o cheiro de erva no ar simplesmente não entendiam as instruções do paciente Martin a convencê-los de que não era nada demais...apenas tocar da nota mais grave de seu instrumento até a mais aguda, finalizando em um Mi. Alguns achavam que era realmente uma piada e uns ofendidos acabaram por deixar o estúdio. Depois de muita conversa para acalmá-los, alguns rabiscos na partitura e no take final regidos por um dançante McCartney, contrariados, fizeram um take. Como o orçamento era curto, o produtor mentiu que não ficou bom para que eles tocassem a segunda vez. Bingo. O efeito devastador foi atingido.
A segunda parte veio de uma esquecida canção do Paul que encaixou-se lindamente à primeira parte de John.
Tudo parecia perfeito mas ainda faltava o gran finale, o fim dessa saga. Pra essa sessão foram utilizados os quatro pianos presentes nessa sala mais um harmonium executado por George Martin, todos eles tocando o mesmo e único acorde. No melhor take ouve-se, carregado por um olhar matador de Macca, uma ligeira mexida na cadeira do Ringo, e com um par de fones aprecia-se o famoso "nhec" que encerra esta canção que fecha o álbum mais conceitual dos Beatles até então.
Eis "A day in the life". I'd love to turn you on.

obs 1: sim, quando o Paul canta "found my way upstairs and had a smoke and went into a dream", está falando de maconha

obs 2: sim, "I'd love to turn you on" é sobre maconha

obs 3: sim, "well I just had to laugh", é risada de maconha


Por Thiakov






 A day in the life (Lennon/McCartney)

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph.

He blew his mind out in a car
He didn’t notice that the lights had changed
A crowd of people stood and stared
They’d seen his face before
Nobody was really sure
If he was from the House of Lords.

I saw a film today oh boy
The English army had just won the war
A crowd of people turned away
But I just had to look
Having read the book
I’d love to turn you on.

Woke up, fell out of bed,
Dragged a comb across my head
Found my way downstairs and drank a cup,
And looking up I noticed I was late.
Found my coat and grabbed my hat
Made the bus in seconds flat
Found my way upstairs and had a smoke,
Somebody spoke and I went into a dream.

I read the news today oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall.
I’d love to turn you on
 

13 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - Strawberry fields forever




Produzindo os Beatles - Strawberry fields forever

"Eu tenho uma", disse Lennon ao ouvir o afável produtor George Martin evocar o questionamento tradicional ao início das sessões. Paul ainda balbuciou algo como "eu também" mas o zerinho na fila já tinha se autoproclamado. "É uma balada, fala sobre minha adolescência".

O refrão vinha na ordem natural, depois da estrofe como mandava o figurino, pois ainda não tinha sido alterado pelo produtor para introduzir a letra da canção. Como eu, ele deve ter gostado muito dessa música e querido ouvir de prontidão as palavras-chave daquela que se chamava "Strawberry fields forever".

Falava sobre o antigo orfanato nas imediações do bairro da tia do Lennon, onde ele ia vez ou outra desfrutar um fim de tarde quiçá em companhia de alguém. Falava de um jeito desconexo eu acho que eu sei quero dizer um sim desconcordo nada tão mal sempre sei algumas vezes penso que sou eu deixa eu te levar que eu estou indo aos campos de morango nada é real. Fala de um jeito doidão mas com muito amor pela saudade, uma especialidade do compositor em questão.


O primeiro acorde não é a tônica, o tom, mas o mais distante que é a dominante, o irresoluto e problemático acorde, seguido pelo sexto grau, irmão do tom, o quarto grau (agora sim trazendo de vez a cara azul do lá maior) and then...and then vem o refrão. Gigantemente enigmático, sem falar das baboseiras sentimentalóides dos ié-ié-iés, chamando você, ouvinte, a passear sem volta pelas ondas lisérgicas dessa paisagem desconhecida. O primeiro take era realmente de uma balada pouco diferente das do Revolver e anteriores mas algo dizia que ela não se resolveria aí. Um sampleador bizarro, conhecido por mellotron - que era composto de fitas k7 com instrumentos gravados em loopings - forjou as notas introdutórias. E assim, com uma guitarra desconstuída em arpejos, uma bateria certeiramente vacilante, sem usar o chimbal pra marcar os tempos, fazendo quase que somente viradas e um baixo cabeção só com as notas fundamentais dos acordes, começa "strawberry fields" - que viria a se tornar uma das canções mais arrojadas jamais feitas pelo mundo pop até então.


Ao fim de algumas tentativas John decide que está insatisfeito e como sempre, sem saber como dizer isso, recorre a imagens e figuras mentais pra comunicar ao produtor que desejava mais ação, mais energia, mais massa sonora, mais tudo! George deve ter se deparado com um ou dois cigarros antes de chamar para a próxima sessão um naipe de metais, cellos, e regravar num tom acima do primeiro, mais rápido que a primeira tocada e cheio de sons energizantes de metais. Todos tocaram euforicamente e um final apocalíptico se deu. I buried Paul. Paul estava morto, mas isso não atrapalhou a nova canção e não vem ao caso. John Lennon, já bem sem jeito, retorna ao seu estado introspectivo e prenuncia um novo atestado de falência. "Sorry Martin, mas ainda não estou satisfeito com a segunda versão. Na verdade gostei do início da primeira e a segunda parte desta mais rápida. Dá pra utilizar as duas?". E assim se encerrou mais um dia de trabalho. Os campos de morango pareciam ser verdadeiramente para sempre. Nenhuma música antes havia tomado tanto tempo no estúdio.


Armado com gilletes e fitas adesivas, como um cirurgião cardíaco, George Martin cortou e picotou e colou e descolou num passe de mestre, daqueles do Ronaldinho Gaúcho nos tempos do galo, e juntou na fita as duas versões usando para as passagens uma harpa indiana. Nem se percebe a mudança de uma tomada para a outra, ou somente ouvidos treinados conseguem percebê-la.

Voilá!

Nada melhor que o primeiro fracasso dos beatles no número um das paradas há anos. Com vocês, "Strawberry fields forever":




obs 1: let me take you down cause i'm going... neste momento o pitch do mellotron, junto com a guitarra slide fazem um escorregador pra baixo, taking you down

obs 2: let me take you down cause i'm going... vai do acorde de Lá maior pra Mi menor, cadência advinda do modo mixolídio, com uma cor muito peculiar de empréstimo modal, uma vez q a tônica não tem a sétima menor e assim boiamos rapidamente em dois modos, sem falar no terceiro acorde que é distante apesar de ser somente o dominante do segundo grau. Ou seja, uma boiada atrás da outra. Quando ele se alterna com o quarto grau, Lennon deixa claro que não deseja um chão tonal pra se brincar.

obs 3: fica fácil perceber a mudança de take (do lento pro rápido) pois apenas no primeiro há o baixo do Paul. E são dois, um de cada lado(fucking stereo). Imagino q o macca tenha deixado pra fazer o baixo da segunda depois, como de costume à altura e gostado sem grave ou tido preguiça pra fazer depois do corte final. Não há mais guitarra também, nem mellotron. O que toca o barco são uns bumbos graves tocados com a mão, maracas e pandeiro.

obs 4:
no meio da música ouve-se um chimbal ao contrário com umas peças de bateria ao fundo.

Por Thiakov



Notas do editor:

1. Publiquei em 2011 o artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV, tratando basicamente desta canção e sua "irmã gêmea" de single Penny Lane. O resumo, acompanhado de um trecho do trabalho, está nessa postagem anterior [aqui]. Destaquei, em outra ocasião, mais um trecho do artigo, tratando das capas do compacto e também do álbum Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise estava mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. O que é mais interessante no artigo, do ponto de vista metodológico, é que utilizei muitos registros de estúdio anteriores à versão final, que conhecia do tempo em que a circulação desse material ocorria através dos chamados "discos piratas", mas quando da escrita já estava amplamente disponível na internet.

2. Em outra atividade de pesquisa, estudei as apropriações in loco e via internet de lugares de Liverpool associados aos Beatles. Parte deste trabalho, já publicada em eventos, pode ser encontrada na minha página do portal Academia [aqui]. Estive em Liverpool em 2015 - vale dizer, com apoio do CNPq num momento em que ainda havia valorização da pesquisa acadêmica no Brasil, mas já iniciando a fase de cortes - e por dois dias cumpri uma agenda apertada que envolveu visitas a museus e trabalhos de campo, como os que ficaram registrados na página de facebook dedicada ao projeto [aqui] , que posteriormente sincronizei como página deste mesmo blog.

































21 de abril de 2019

No estúdio com Thiakov - Yes, it is

Novo texto da coluna No estúdio com Thiakov. Degustem!


Produzindo os Beatles
Yes it is (Lennon/McCartney)
Passei alguns dias um pouco angustiado por ter ouvido os saudosos Anthology e outras versões inacabadas da música "Yes it is" sem muito entender porque a inicial agressividade da banda como um todo (que sempre começava a vasculhar e pré-lapidar as canções de uma maneira muito root, tosca, quase infantil) havia parcialmente se dissolvido. Peraí, vou dar uma digredida leve aqui: depois de me aprofundar por anos nas gravações bootleg concluí que eles tocam todas, todas as músicas iguais antes de tocarem diferentemente...kkkk
Voltando ao Yes it is, o que foi acontecendo com essa balada que foi classificada pelo próprio autor como um auto-plágio de This Boy que não deu muito certo?
Cheguei ao Segóvia. Isso mesmo, o guitarrista flamenco espanhol. E ao Ramirez, o luthier que fez o violão em homenagem ao guitarrista.
Depois de lutar com meus fones de ouvido, queimar uma brenfa e ficar refletindo, tive um dejavan e wow! John Lennon encosta seu Gibson folk de aço para o lado e pega um (sabe-se lá como) RAMIREZ pra tocar com a pontinha dos dedos a base singela do que viria a se tornar a bela canção. O timbre de nylon tocado com as mãos desnudas trouxe um lirismo doce e suave que tanto me emocionava sem que eu soubesse o porquê, e algum anjo, creio que o anjo George Martin, deve tê-lo instruído a tocar alguns acordes com sétima maior e quartinhas, amaciando mais ainda o terreno.
Cheguei à pedra filosofal desta canção. Claro que as duas guitarras do Harrison tocadas com um pedal de volume (que faz a nota não ter ataque e soar apenas ao fim) complementam e muito o astral suave da balada mas sem dúvida "Yes it is" para mim simboliza o momento exato de quebra estética do reino do yeah-yeah-yeah para o reino do bigode-LSD. A partir daí, como descreveu o engenheiro de som dos Beatles Geoff Emerick, a voz de Lennon se tornou cada vez mais e mais onírica, sonâmbula, nebulosa...e nunca mais voltou até quem sabe com uma dose da "shes so heavy".




Obs: não posso deixar de mencionar um aspecto energético desta música. Sempre senti que tinha, como outras, o astral do pôr-do-sol, a energia prânica do lusco-fusco. Acertei. Descobri que a gravaram entre 17 e 19h.

Obs 2: nem falei sobre os vocais.... mas nem precisa falar muito a não ser o prêmio de honra ao mérito para George Harrison devido aos saltos gigantes na melodia. Ponto pra ele.


Por Thiakov

6 de abril de 2019

No estúdio com Thiakov - She Loves You

Inaugurando hoje essa coluna (bissexta, eventual, na periodicidade que pintar) "No estúdio com Thiakov". Artista de múltiplos talentos, cantautor, instrumentista, produtor, poeta, agitador cultural - saca o currículo e o som dele - e eis aí um cara que está literalmente em casa dentro do estúdio. Compartilhamos o amor pelos Beatles e também já aprontamos algumas parcerias musicais que por enquanto estão no casulo, mas qualquer hora podem bater asas por aí.


Produzindo os Beatles
She Loves You (Lennoy/McCartney)

Vieram me dizer que os Beatles, quando em vias de yeah-yeah-yeah, eram simplórios, ingênuos, prosélitos. Antes de sequer mencionar a turnê alemã em hamburgo pós-guerra, nas ruas mais barra-pesadas que tinha por lá, já refutei dizendo, eram velhos, letrados, iniciados, não duvide que já havia suficiente refinamento estético que tornou-se ainda mais puro com o tempo e os LSDs. A minha primeira fonte argumentativa foi "She loves you" e como essa música já deixava abertas as portas do futuro harmônico-quântico do grupo. Então, vamos lá.
She loves you começa com o refrão. Por si só já é um atrevimento. Um susto de bateria no surdo do Ringo e refrão. O refrão é cantado todo em uníssono exceto a última nota (yeah!) que vem com uma abertura na sexta maior, algo bem inédito numa harmonia pop da época, não nos gospels americanos, mas certamente no pop-rock britânico. Saindo dele ouvimos um riff blues-rock com terça menor e quarta aumentada de passagem, deixando claro que não era pra ser tão bonitinho assim.
Quando John e Paul cantam "she said she loves you" - toda a música é interpretada em um uníssono que se quebra por ora em duetos contrapontísticos - George ataca a melodia já conhecida do "yeah yeah yeah", desta vez na guitarra, em oitavas, duas vezes seguidas e então vem um acorde surpresa, o quarto grau menor, triste, de empréstimo da harmonia homônima, precedendo a reintrusão do riff blues do Harrison.
O refrão só torna a ocorrer quando já se ouviu duas estrofes e o desdobramento final se dá com um coda altivo, repetindo a última frase "with a love like that", parando no fatídico quarto grau menor afim de seguir rumo à explosão final com uma fermata pré-estabelecida e um apogeu na palavra "Glad!" e por fim "yeah yeah yeah" com guitarra solo, vocais e sextas maiores. Número um nas paradas.

Um yeah inconteste. Pré-lacração, pós-elvis.
obs: logo vou fazer um textão sobre a sessão de gravação dessa mesma música, sessão essa que foi o divisor de águas dos estúdios abbey road e da relação do quarteto com a fama.

Por Thiakov