Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de março de 2020

Dependência cultural, ainda

Meu parceiro Pablo Castro, costumeiro colunista convidado neste blog, produziu nos últimos dias dois textos com sua habitual contundência e bastante conhecimento de causa, sobre as relações desiguais na dinâmica do intercâmbio cultural através de meios massivos e a política de fomento à Cultura no Brasil. Embora o estopim de tais reflexões tenha sido a recente publicação do edital provido pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura em Belo Horizonte, optei por reunir os textos subsequentes à primeira postagem que ele fez, por serem mais abrangentes e menos dependentes dessa contextualização específica. Aponto ainda que o tema é de relevância maior num momento em que o atual governo federal, em seu ímpeto destrutivo, procura de todos os modos aparelhar e dirigir o fomento à cultura no Brasil de acordo com os interesses de grupos de extremistas religiosos e conservadores, fora ocupar-se dos costumeiros desvios criminosos, pretendendo, para tal fim, extinguir fundos públicos, inclusive alguns dos mais importantes no fomento à Cultura [aqui].
Cumpre frisar que aqui temos a proposta de um debate crítico que abrange o passado, o presente e o futuro da criação cultural, em especial a devotada à música popular, em nossa cidade, estado e país. É bom que ele não seja feito em termos estritamente acadêmicos, e igualmente não seja feito no registro do senso comum. No lugar de editor, é lógico que eu posso salientar que guardo aqui e ali minhas discordâncias ou que recorreria a outros termos e conceitos. Mas tirando uma ou outra ponderação que farei ao final, em notas numeradas (retomando algumas observações que já fiz nos comentários das postagens originais destes textos do Pablo no facebook), concordo com a espinha dorsal do que está dito a seguir.


O Que É Dependência Cultural e Por Que Seu Combate Deveria Ser Prioridade Máxima do Investimento em Cultura num País Periférico ? 

Oriundo de décadas passadas, e praticamente varrido da universidade brasileira depois dos anos 70, o conceito de Dependência Cultural se refere à subordinação sistemática de uma cultura nacional ou local à Cultura Metropolitana, seja ela nacional ou mundial . É o correlato na Cultura da questão da dependência econômica macro-societal [1] .
Indícios de Dependência Cultural são a falta de sinergia artística em dada cena cultural, a fragmentação das obras e dos artistas, a profunda padronização, a partir de padrões externos, de suas formas culturais, a desvalorização simbólica das expressões locais e/ou nacionais , tornadas marginais diante dos padrões da Indústria Cultural , a ausência de perspectiva histórica na avaliação e na oferta de Cultura nacional e/ou local, a falta de presença midiática da produção cultural local e/ou nacional, e, por fim, a absoluta inviabilidade prática de autores de viver de sua produção artística [2].
Nesse ponto, é bom observar que o conceito de dependência cultural não se refere a um "atraso", mas sim a uma relação de subordinação sistemática das expressões culturais de um recorte local ou nacional com relação aos centros irradiadores de cultura - leia-se Indústria Cultural.
Se tomarmos esses indícios como algo a ser levado em conta num diagnóstico sério de uma determinada cena local , em país subdesenvolvido e dependente, as secretarias de Cultura de um estado como Minas Gerais e uma capital como Belo Horizonte deveriam se dedicar , de maneira prioritária, a combater essa dependência.
Hoje, em Belo Horizonte, na área de música popular, historicamente responsável pelos maiores feitos em termos de distinção de identidade do estado e da capital, consubstanciados sobretudo no mundialmente consagrado Clube da Esquina, apenas um número ínfimo de artistas mineiros poderiam se apresentar no palco mais clássico da cidade, o Palácio das Artes, com um número de pessoas interessadas. Desde o Clube da Esquina, tivemos o surgimento de um grande número de cantores e compositores de alto nível, reconhecidos em searas específicas em outros lugares do país e do mundo ; mesmo assim, nenhum deles consegue se apresentar no maior palco da cidade. Posso citar aqui , de cabeça : Celso Adolfo, Tadeu Franco, Paulinho Pedra Azul, Sérgio Santos, Titane, Marina Machado, Alda Rezende, Kristoff Silva, etc. , etc, etc. Alguns desses excelentes artistas largaram a carreira, outros a levaram na base do esforço pessoal, mas com dificuldades absolutamente extraordinárias de manter o ímpeto de construir uma obra.
É incontornável concluir que essa falta de continuidade histórica da música popular mineira não se deve a algum defeito desses artistas, mas se deve a uma razão estrutural : somos o estado do Sudeste, e talvez do Brasil, mais prejudicado e inviabilizado culturalmente pelo domínio avassalador do chamado eixo Rio-São Paulo, estabelecido sobretudo pelos militares pelo surgimento da rede nacional de Televisão , que destruiu nossa TV local, com programação exclusiva feita aqui, a antiga TV Itacolomi [o MIS-BH realizou exposição sobre o tema]. 
A despeito de ser o estado com a maior lei de incentivo à Cultura do Brasil, Minas segue sendo um túmulo de talentos. Pudera : todo o ecossistema de Cultura , desde os editais do Estado e do Município, até o rol dos produtores locais de shows e concertos, são condicionados a priorizar, de todas as maneiras possíveis, os artistas cariocas, paulistas, pernambucanos, baianos, pra não falar nos "internacionais", em detrimento dos artistas locais. Ser daqui desvaloriza um artista como um defeito de nascença.
Vejo artistas medianos da dita cena "independente do país" virem aqui várias vezes por ano e receberem cachês 10 vezes maiores do que artistas locais com maior qualidade, originalidade e experiência. Isso nos editais públicos, não apenas em eventos privados.[3]
Uma cidade sem artistas saudáveis, que tenham condições mínimas de acessar a veiculação de seus trabalhos e a formação de um público, é uma cidade sem identidade. O que se depreende até mesmo na exuberância do Carnaval redivivo de BH : somos um carnaval cover, em que os nossos grandes talentos são levados a se tornarem antes de mais nada repetidores de obras consagradas, como que já conformados da impotência de fazer com que novas canções possam de alguma forma ser conhecidas do público local.
Com isso, os editais pautados em conceitos identitários e empacotados de fora, que não se preocupam com a identidade coletiva de um lugar, mas com as identidades fragmentadas a priori em termos de cor, raça, gênero , o que se alcança na verdade é uma acentuação da dependência e do subdesenvolvimento cultural e uma homogeneização ainda maior , nadando a favor da corrente da dominação da Indústria Cultural, tanto a nacional, configurada no eixo RJ-SP, quanto na mundial .


Por Que Políticas Públicas Multiculturalistas São Um Atraso Num País Sincrético ?

Ao analisar a forma como os ditames multiculturalistas foram introduzidos nas políticas públicas de Cultura no Brasil, fica patente que o subproduto dessa imposição é um ataque ao sincretismo e à permeabilidade cultural que se deu na cultura nacional em séculos de miscigenação e misturas culturais que fizeram do país o exemplo mais original , reconhecido por vários argutos observadores estrangeiros, de sincretismo cultural do planeta.
Resumidamente, a teoria multicultural parte do pressuposto que existem grupos culturais totalmente estanques, separados e apartados da sociedade oficial . Enquanto esse ponto de partida faz todo o sentido em países como a França, a Inglaterra , a Indonésia, a Bolívia, o Paraguai, a Alemanha e os Estados Unidos, no Brasil ele configura um retrocesso de séculos [4] . Mas mesmo nesses países, a ideologia multiculturalista , ou seja, os preceitos advindos de uma visão de culturas apartadas e impenetráveis, embora pareça progressista, na prática também aprofunda o apartamento cultural de populações que poderiam se integrar em vista de, no mínimo, lutar pelos seus interesses objetivos de classe.
Por outro lado, a imposição dessas políticas no âmbito da Cultura no Brasil é um retrocesso de séculos. Para isso, basta olhar para a nossa cultura e perguntar : Pixinguinha fazia música negra, ou música brasileira, resultado da combinação de uma harmonia européia com ritmos africanos ? O Clube da Esquina, liderado por um negro adotado por família branca, é música negra ou música branca ? Caetano Veloso faz música branca e Gilberto Gil faz música negra ? A Bossa nova era branca mesmo quando todos os seuis criadores citem um músico negro, Johnny Alf, como seu precursor ?
Mesmo na metrópole cultural do planeta, os Beatles, o maior fenômeno de vendagens da história, um quarteto inglês, fazia música branca ou música negra ? O jazz, talvez o maior fenômeno criativo de música no século XX, é música negra ou música branca ? Resposta, nenhum dos dois.
Toda a cultura humana do planeta nasce de processos sucessivos de hibridizações, sejam eles por imposições, mesclas, trocas, empréstimos e apropriações. Negar isso é negar a própria natureza da cultura humana.
Nada disso significa que não há opressões por trás desses processos, reconhecer a mistura não é advogar uma pretensa harmonia ou simetria onde ela não há . Por outro lado, afirmar o caráter híbrido das culturas humanas é crucial para perseguir o objetivo dessa harmonia. Afinal de contas, não é um mundo mais harmônico que queremos construir, nós da esquerda ? Defender a priori qualquer forma de purismo é rumar na direção oposta.
Mais do que isso, a ideia de combater as desigualdades na ponta, no âmbito das expressões estético-culturais, e não na raiz, na verdade não só não reduz as desigualdades, como também aponta para a perpetuação dessa separação , ao contrário do que se diz pretender atingir.
Quando um edital de cultura coloca como critério de pontuação geral a promoção de purismos politicamente orientados ele trata a cultura como um invólucro vazio que só pode ser tratado como um cabo de guerra, não como uma esfera criativa que possa resultar em originalidades. É precisamente por isso que esse tipo de política gerará sempre uma maior homogeneização, não o contrário.
Sobretudo a naturalização dessa ideologia multiculturalista num país original, diverso , multifacetado e miscigenado como o Brasil, é um evidente retrocesso.
Por fim, analisar números e dados numa política de Cultura só faz sentido como pano de fundo para um cena cultural, onde haja sinergia, mútuas influências e cooperações artísticas, além de uma ideia de história cultural . Cultura não existe sem história, arte não existe sem história , e burocratas de órgãos de Cultura têm obrigação de conhecer essa história. Eles não estão lidando apenas com dinheiro.
Por Pablo Castro


Notas do editor:
[1] A consagração do conceito de globalização e o subsequente debate em torno de sua acepção propriamente cultural levaram à adoção de outros termos para tentar compreender o fluxo assimétrico das trocas culturais. Assim faço questão de frisar que os estudos acadêmicos dos anos 1980 em diante nunca desconheceram os desequilíbrios nas trocas culturais em diferentes recortes espaciais e temporais, foram simplesmente obrigados a estudá-las em novos termos para dar conta dessa outra dinâmica. Como já escrevi sobre isso em minha Tese e neste artigo dela derivado publicado na excelente revista argentina El Oído Pensante, “Só ponho bebop no meu samba...”: trocas culturais e formação de compositores na formulação da MPB nas décadas de 1960 - 70, convido o leitor a aprofundar-se por aqui

[2] Remeto a postagem anterior, Artistas da fome e o valor da bolacha

[3] Eu só gostaria de acrescentar que essa estrutura, que do jeito que está já soterra talentos, inclusive muitos que nascem e/ou vivem no epicentro do eixo mas são marginais até mesmo ali e em relação até ao que se denomina "cena alternativa".  

[4] Na verdade essa teoria não faz sentido em lugar nenhum. Cultura é troca. É mistura. Aquilo que se nos apresenta como particular de um dado grupo, em um dado momento, já pertenceu a outros, mudou de forma, deslocou-se no tempo e no espaço. Multiculturalismo é um tipo de conformismo da Cultura, com fundo falso.

 

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