Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

13 de dezembro de 2020

DEIXA ACONTECER

Aproveitando o embalo vou fazer mais uma postagem no estilo "contando as letras". Mais uma das minhas parcerias com o Daniel Guimarães, feita totalmente à distância mas bem antes desse impositivo momento que infla indesejavelmente o apelo aos recursos digitais de comunicação. Foi uma das primeiras que fizemos. No intuito de compensar a falta do contato pessoal trocávamos longas mensagens através da rede. Enquanto ainda buscávamos um entrosamento que certamente veio com o tempo, eu procurava relatar com certa minúcia o que vinha à minha cabeça à medida que ia escrevendo. Tenho aqui algumas "anotações" que vou compartilhar para dar um pouco essa sensação de bastidor, de making of. Expressão que me veio a calhar aqui agora porque além de uma sugestão de que a música tinha sido a princípio sobre um personagem errante, e numa outra versão sobre uma tempestade, ela me soou desde sempre cinematográfica. Relatei assim minhas impressões após o primeiro esboço que encaminhei ao parceiro:

Comecei com esse imperativo, “abra”, e de uma certa forma foi pintando uma ideia de conciliar de algum modo esses temas sugeridos, o errante e a tempestade. E a coisa foi surgindo meio num conceito cinematográfico, filme de faroeste. Ficou uma coisa mais icônica, representando a ruptura com uma situação prévia indesejada. De uma certa forma isso também foi inspirado por uma conversa com a minha filha de 16 hoje sobre a dificuldade dela sair da aula de teatro.



E quando chegou ao final eu tinha que arrumar companhia para o “deixa acontecer” me ocorreu que a ideia era mais um ato de amadurecimento que de rebeldia, saber deixar a mudança acontecer... pensei no lance do samurai. Curiosamente foi uma palavra que eu evitei propositadamente em “Ponto Oriental”, mas aqui acho que cabe, até pelo lance de Sete homens e um destino ser uma versão d’Os sete samurais do Kurosawa. 

Engraçado que certas conciliações aparentemente improváveis, ou aproveitamentos de frases casuais ou até nomes de arquivos, podem acabar dando muito certo. Quanto mais esse tipo de coisa funciona, mais eu tento. A forma é clássica e direta, verso e refrão.
Usei imperativos com a vogal aberta "a" para abrir as estrofes, procurando ainda fazer rimas cruzadas na "cabeça" e na "cauda" das estrofes ímpares e paresinterpolando rimas paralelas, de modo que o esquema é algo como A *BB* C (1-3) ou D (2-4), com uma desobediência na primeira estrofe, porque eu não quis mudar os versos espontâneos que deram a esporada inicial da cavalgada. Igualmente espontâneo foi o "deixa acontecer" do refrão, que é literalmente metanarrativo em relação à confecção da letra - ou seja, meu ouvido me soprou as palavras e eu simplesmente deixei acontecer, sem duvidar dele. Em certas situações a gente precisa ser um pouco menos aferrado, sentir o vento mesmo. A canção no fundo é sobre como lidar com a mudança e tocar em frente.

 

Deixa acontecer (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Abra
Atreva-se a partir
O horizonte em dois
O sol em cruz

Sela
O dorso do alazão
Um raio pela mão
O vento atrás

Alça
O voo do urubu
Abraça o tempo nu
Avista a luz

Vela
A sombra do caubói
Corte que ainda dói
Sem sangrar mais

Ultrapassa os temporais
Deixa acontecer
Na paz sagaz dos samurais
Deixa acontecer  

Deixa acontecer 


 

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