Há alguns meses, mais precisamente em maio deste ano, recebi do meu mais antigo parceiro costumeiro e contumaz, Pablo Castro, um convite instigante. A proposta era compor uma canção ao modo expresso, escrevendo a letra logo a seguir para a música que ele tinha praticamente acabado de compor. Achei ótima ideia e nos reunimos para pegar logo o touro à unha, como se diz. Era um roquenrou bem visceral, claro com alguns toques além do feijão com arroz que acrescentam à receita dos cavaleiros do após-calipso algo de brasileiro, uma síncope diferente, um batimento cardíaco mais apimentado. Recentemente inclusive me dei conta que a canção remetia um pouco ao "Punk da periferia" do Gil, ainda que isto, significativamente, não tenha vindo à baila de modo explícito na feitura da letra.
Para trabalhar desse modo eu costumo aproveitar alguma coisa esboçada, que a combinação de intuição e experiência me permite captar rapidamente se encaixa com o que a música incita. Sendo assim, recorrendo aos arquivos eu catei esse título, acompanhado de rascunhos sem maiores elaborações. Era mais a vontade de ter uma canção assim chamada, considerando a força e apelo da palavra e o fato de não haver nada de notório com esse título.
Em frente, então. Um ponto chave era um efeito meio beatlelesco de cruzar o coro vocal e a voz principal em uma mesma palavra como se os versos da sequência se encavalassem. Para ressaltar esse sobressalto, brincamos os sentidos possíveis da palavra olho, variando na função sintática como substantivo e verbo, e depois incorporamos óleo, praticamente homófona. Um tema forte, definido de cara, afinado com o título e com essa chave, era o dar a ver, o evidenciar. Mas, quase simultaneamente, veio o tempero, uma coisa irônica, crítica, uma verve muito nossa. Nesse caso, o esforço de trazer à tona o escondido não era resultante de uma atitude sistemática, organizada, mas de uma postura ambígua, de um jeito meio contraditório e maroto. Esses dois impulsos consegui sintetizar imediatamente no primeiro verso, "Ajo como suspeito pra disfarçar". Com a premência de produzir algo próximo do acabado em pouco tempo, o que fiz foi um experimento que não chega a ser escrita automática, mas em vários pontos soltava a caneta na trilha que a palavra anterior abria, mas "quebrava" a linearidade logo em seguida, num jogo que se retroalimenta indefinidamente. Neste caso acatei alguns pitacos do Pablo que eram muito dentro da proposta, como ir de "queda do muro" a "só pra escalar", ou um ajuste que enriquece um certo surrealismo como em "Venda, touro de ouro, PÓ DE brilhar" onde antes era "pode brilhar". Claro que a veia de historiador dá umas aparecidas nessas referências parcialmente criptografadas ao muro de Berlim e Wall Street, e a venda que remete ao véu que é uma imagem que Marx recorre constantemente para ilustrar o conceito de ideologia, a dialética essência x aparência e coisas assim em sua obra. Mas a letra também se desloca entre o público e o privado, enquanto oscila entre o escondido e o revelado.
Em termos formais eu busquei mais rimas internas e sons muito reiterados, como "uro, urro, urro, uro"; ou o "g" em "rasga, garganta, gravata, juGular". Fiz também a referência indireta ao último disco do Pablo, O riso e o juízo. E no refrão veio certeira a citação de um verso do nosso parceiro mútuo, Makely Ka, "rimo a torto e a direito", de Eu não, gravada no disco Autófago (2008). O "eu lírico" da canção aí se afirma em suas humanas contradições e conclui decisivamente, "o que está feito, feito está", a Catarse portanto se realiza, apesar da palavra não constar da letra, o que eu eu acho deveras significativo.
Catarse (música de Pablo Castro, letra de Luiz Henrique Garcia) – maio/25
Ajo como suspeito pra disfarçar
Cisco no canto do olho
Olho embaixo do pano, escancaro no ar
Do dedo-duro sussurro, a revolta do urro
Queda do muro
Só pra escalar
Venda, touro de ouro
Pó de brilhar
Canta, rasga a garganta
Dá uma gravata na jugular
Senta, cai de maduro, vai levantar
Rimo a torto e a direito
E desse jeito
O que está feito, feito está
Rio do meu juízo pra decolar
Guardo no canto do olho
Óleo espalha do furo, escuro no mar
Um tiro pela culatra, que nada idolatra
Mira na lata
Pra destravar
Fenda, teia de renda
traio no altar
Nasce, rompe a placenta,
Foge do ventre pra respirar
Conto, não é segredo vou revelar
Rimo a torto e a direito
E desse jeito
O que está feito, feito está
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