Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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12 de abril de 2017

Artistas da fome e o valor da bolacha

Comecei a ler ontem A sociedade sem relato, do antropólogo Néstor García Canclini, que vamos debater no grupo de pesquisa interdisciplinar sobre patrimônio cultural que coordeno junto com uma colega aqui na UFMG. O livro está longe de oferecer respostas fáceis e reconfortantes, mas tem a vantagem de começar por boas perguntas. Transcrevo alguns trechos da orelha e da contracapa para dar uma pista sobre o conteúdo da obra:

"O que fazer com a insignificância e com a discordância de relatos diante de um mundo que se mostra ingovernável, em que as grandes narrativas já não são mais possíveis e o modo de produção e interação social já não encontra uma teoria que o organize? (...) Na ausência de relatos totalizadores, o que fazer com aquilo para o que não encontramos respostas? (...) a arte, não mais circunscrita pelos limites estreitos e específicos do campo artístico, é, para Canclini, o lugar da iminência: esse momento preciso em que tudo é possível, em que os desacordos tornam-se visíveis e os sentidos são reconstruídos (...)".

Ainda vou ter que avançar mais na leitura para amadurecer uma apreciação menos superficial e decidir quais os meus acordos e discordâncias. Como o dilema arte x mercado entra na mira do livro eu me lembrei de algumas considerações escritas ano passado que acabei não publicando, refletindo sobre as condições da criação artística num contexto de diluição da valoração - ou indiferença ao valor, dependendo da mirada. Me perguntava então sobre o que ocorre quando o relativismo desavisado leva a comunidade de ouvintes a deixar o mercado falando sozinho na hora de dizer o que pode ser produzido, circulado e ouvido. Isso foi de encontro a algumas reflexões do parceiro Pablo Castro sobre o sentido ou não do músico popular insistir na produção de discos. Acabei portanto reunindo os dois escritos no intuito de polinizá-los mutuamente, ainda que no debate possamos ir alinhavando melhor as coisas:


Um caminho para responder, ainda que não seja simples, o que é a "qualidade" ou "valor": qualquer distinção que se atribui a partir de critérios que se elege em embates simbólicos que são dinâmicos e mudam, inclusive no tempo, embora alguns desses critérios possam ter maior durabilidade do que outros. Acontece que são diferentes agentes capazes de interferir nos debates, com recursos diversos e desiguais. Temos aí alternadamente o fã, o crítico de jornal, o programador de rádio, o produtor de gravadora, o músico de estúdio, o compositor profissional, o intérprete que trabalha em casas noturnas, o professor de música, o pesquisador acadêmico, e por aí vai. Se por exemplo aqueles que integram um circuito mercadológico elegem a vendagem como critério mor, eles tem consideráveis recursos para afirmá-lo. E uma grande mudança foi que agentes que tradicionalmente apostavam em identificar e avaliar critérios de ordem estética, criativa, etc., como críticos, pesquisadores acadêmicos, alguns produtores e gerentes de gravadora, e mesmo muitos músicos, agora hesitam em empregá-los. Assim, sobra ao mercado uma hegemonia tremenda para definir valor, sem maiores contestações. 

O que é notável é que num determinado momento, cerca de 60 anos atrás, a indústria fonográfica e os mass media estabeleceram relações "forçosas" com critérios estéticos objetivos, com a categoria dos críticos, com os debates entre pares, com as preferências de diferentes camadas do público. O que ocorreu é que depois a indústria e os meios descobriram como mudar o modus operandi de modo a basicamente dispensar essas relações, assumindo que a lógica de consumo mediaria sozinha a apreciação da música popular, particularmente a que se dá com maiores taxas de vendagem. Portanto, discutir qualidade é, entre outras coisas, discutir nosso hábito de ouvir e apreciar música, se temos ou não a disposição e o interesse em avaliar criticamente como e porque elaboramos nossas preferências. Se o único dado que informa nossas escolhas for a vendagem, a "embalagem", fatalmente nos vemos a consumir mais do mesmo. Ou seja, assegurar a diversidade e o "espaço de criatividade" na música depende de reconhecermos objetivamente suas qualidades, promover uma escuta atenta e exigente para elas. Está muito longe de ser uma proposta de elitização do gosto, é pelo contrário, a efetiva democratização do gosto.

O relativismo desavisado, como já comentei em muitas discussões como essa, significa no final o esvaziamento de sentido do próprio trabalho criativo nos termos que definem a valoração da produção musical. Consequentemente, perde-se capacidade de reivindicar a remuneração desse trabalho, por exemplo, que seja em outros termos que não os do mercado. É uma tremenda armadilha, em matéria de sobrevivência, pois em outras artes se o artista tem como assegurar essa validação ele pode fazer o trabalho que considera "de qualidade" e ser reconhecido e pago pelo público que valoriza essa qualidade. Se na música só resta o critério de mercado, qualquer artista que quiser questionar esse critério poderá se condenar a passar fome ou ser impedido de fazer dela sua profissão.

Luiz H. Garcia

Toda essa estória de fazer o Disco do Tênis com o Lô, ensaiar a banda, tirar os vocais, tratar com carinho cada passagem de um álbum com quase meio século de lançamento, me pôs a pensar sobre o valor da fonografia enquanto sustentáculo da arte musical.
De coisa de cem anos pra cá , foi possível que não só a partitura fosse escrita, mas o som gravado, e tal tecnologia permitiu que a música fosse encarada, ainda que em circunstâncias específicas, uma arte de registro para além do texto musical propriamente dito : a música enquanto performance e produção de som. Posteriormente a própria confecção dos discos tomou outra proporção, aliando uma série de artifícios de estúdio de modo a atingir efeitos praticamente impossíveis numa performance ao vivo.
Mais do que isso, uma coleção de discos se tornou uma janela para a vida sonora, como que um compêndio das possibilidades humanas em forma de arte musical. Passou a ser exequível um artista só fazer discos e nunca se apresentar ao vivo. Foi o caso do cantor e compositor Harry Nilsson, de quem os Beatles eram fãs confessos ; mas também dos próprios Beatles durante a confecção de seus álbums mais ousados, e de artistas brasileiros como Chico Buarque, que passou anos sem fazer um show mas produzindo intensamente canções, discos, livros e peças teatrais.
Tudo isso apenas para responder à provocação do amigo Rafael Mendonça, que outro dia questionava se algum artista independente ainda acalentava a ilusão de ganhar dinheiro com venda de discos ou fonogramas. É fato que, do ponto de vista pragmático, o artista fora-da-mídia pode chegar à conclusão certeira de que entregar de graça a música que faz seja uma das únicas formas de divulgar seu trabalho e daí conseguir fazer shows, a única forma realmente ainda eficaz de ter seu trabalho remunerado num mercado esquizofrênico e tomado por monopólios criminosos como é o caso da música do Brasil hoje.
Mas do ponto de vista da afirmação artística de nossos trabalhos musicais, continuo achando a produção de discos crucial para que nos entendamos como artistas, seres que buscam a perpetuação de uma obra para além de suas vidas performáticas. Acho a revalorização do vinil uma idéia bastante interessante, porque o próprio aspecto do vinil redunda numa valorização maior ao conteúdo fonográfico inscrito sob suas ranhuras.
E do ponto de vista dos mecanismos de financiamento à cultura, urge lembrar aos colegas a necessidade de que não abramos mão de ter discos financiados , com tudo que lhes é de direito : arranjadores, músicos contratados, projetos gráficos caprichados, acesso aos melhores equipamentos.
Ainda que 90% da população ouça música hoje de uma forma completamente diferente do que há 20 ou 30 anos, isso não justifica que os artífices deste campo de produção simbólica tenham que abrir mão de suas formas mais consagradas e artisticamente relevantes de produção sonora. É uma questão de perenidade e confiança na contribuição de cada um de nós para um campo que já definiu muito do que somos.
Pablo Castro

P.S.
Retorno brevemente ao livro de García Canclini para de algum modo alinhavar as reflexões, a partir de um quadro em que a tradição não assegura sua perpetuação e a arte pós-autônoma "trabalha nos rastros do ingovernável". Nesse tempo de erosão não se pode confiar em manter o passado por definição nem tampouco ter certeza de que a novidade irá irremediavelmente substituir o que há para melhor. É possível que o trabalho de apoderar-se de algo do passado que possa ter sentido no presente possa de algum modo ter uma relação espelhada com o desejo de capturar, nesse mesmo presente, algo que não é mais do que um vir a ser. Ele aposta que a arte pode ainda falar do que resta de enigma a partir do reconhecimentos das tensões não resolvidas que guardam o possível. Nós, de certa forma, também.

19 de junho de 2016

A origem de classe na música popular não é o seu ponto final

Decidi escrever esse texto, retomando um tema que recentemente esteve em pauta desde o final de maio de 2016 em função do hediondo estupro coletivo que ocupou as atenções e rendeu muitos debates internéticos, embora como de costume não tenha se desdobrado em nenhuma medida que ultrapasse a dimensão tópica do caso. Surgiu então um debate em torno do que consistiria a chamada "cultura do estupro" e inevitavelmente, pela centralidade que ocupa em nossa vida cultural, de como a música popular participaria dela. Nesse debate era inevitável que o funk, com suas letras e coreografias que aludem explicitamente ao sexo, com conteúdo sexista e uma recorrente objetificação dos corpos, captasse boa parte das atenções. Foi especialmente ressaltado, num oportuníssimo post de facebook da cantora, instrumentista e compositora Juliana Perdigão, feito com a mesma contundência consequente que imprime à sua música, o envolvimento direto de crianças nas produções de funk*. Mas o que me chamou mesmo a atenção foram comentários comparando o teor dessas letras (muito pouco, efetivamente, se fala sobre a música ou mesmo as coreografias) com as de outros tempos e gêneros, como se todas incorrem no mesmo tipo de pecado. Sou obrigado a discordar. Colocar Noel Rosa e Vinícius de Moraes, Beatles, Racionais, entre outros, incluir insinuações e duplos sentidos do tempo do onça, qualquer metáfora do ato sexual em si, sem qualquer avaliação de teor, sem qualquer conhecimento efetivo do contexto de sua produção e recepção, é algo que nenhum historiador sério pode aceitar. Aliás, fazer isso é opção pela ignorância e isso não nos levará mais perto de enfrentar a cultura do estupro. É também uma violência simbólica, contra a própria história da música popular.


Talvez estejamos num momento em que a sensualidade tornou-se tão explicita que a sutileza de letras como a de Morena Tropicana (Alceu Valença) e tantas outras não enseja uma recepção que aciona esses códigos hoje. Me parece que atualmente certos gêneros (pode ser rock, funk, sertanejo universitário, etc.) interpelam a sexualidade do ouvinte através de menções diretas e explícitas - não usam nem mesmo os duplos sentidos infames como faziam os antigos axés e pagodes. E nesse sentido eu considero um conceito formado e não um preconceito, inclusive sobre a dimensão de classe dessas expressões. O sertanejo universitário, por exemplo, tem entre seus performers gente de origem de classe média e até alta. Me incomoda sobremaneira ver pesquisadores, professores, gente com formação, cair num relativismo supostamente includente que se escusa de fazer qualquer crítica consequente. Sobre isso já me expressei anteriormente comentando um texto escrito pelo Hermano Vianna:
É muito cômodo um cara que tem acesso, que recebeu uma educação superior de primeira, relativizar tudo, enquanto essa massa emergente também poderia se beneficiar muito do contato com outras expressões que não são de seu universo próximo, digamos assim, e que não precisam ser impostas, mas sim oferecidas. Sim, o fã "inculto" não compara Ai, se eu te pego com Jobim, até porque provavelmente ouviu Jobim no máximo na trilha de novela, e não tem a oportunidade efetiva de conhecer sua obra. E sim, isso o empobrece como ser humano, claro. Penso sempre que uma posição que preconiza a democratização e o diálogo cultural precisa ir além do mero reconhecimento, do identificado, e propor que as pessoas possam entrar em contato com o que é diferente delas, o que pode transformá-las. [completo, aqui]

O sertanejo universitário em sua forma atual não vem de baixo. Professores universitários celebram o funk. Pagodeiros fazem show no Palácio das Artes cobrando ingresso de mil reais. João da Baiana ganhou um pandeiro de presente com dedicatória de um senador da República, que mostrava aos policiais para evitar ser preso. Enfim, em se tratando de música popular no Brasil a coisa se mistura e se rearranja de formas imprevisíveis, algumas vezes muito bonitas e outras horrorosas. Se há um viés de classe na rejeição ao funk, não sei bem onde ele funciona. Não é no Chalezinho e outras boates mauricinhas de BH, por exemplo. E quanto vcs acham que amealham os grandes nomes do funk em seus shows, hein? A afirmação "funk é cultura" é tão vazia quanto "machismo é cultura", por exemplo, porque afinal já sabemos perfeitamente que todo o jogo de representações e embate simbólico se dá no âmbito da cultura. A pergunta, afinal, é o que representa o funk culturalmente? Enfim, a origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Sendo assim, não podemos fugir à responsabilidade de fazer uma análise ética e estética de qualquer gênero que seja, ou, no fundo, de qualquer expressão. Sem parâmetro, caímos no vazio, ou , mais ainda, deixamos o MERCADO falando sozinho. Que tal?

Na verdade é muito mais polêmico atualmente ressaltar, sem paternalismo, o grau profundo de objetificação da mulher e do homem, a ausência de sutileza para se tratar do sexo e etc. (como já disse, pode ser no funk, no sertanejo universitário, no rock, não vem ao caso o gênero). E mais, sem nove horas, vamos ser bem francos, alguém, na história desse mundo, estuprou ao som de Vinícius de Moraes? ???? Obviamente o funk não é o centro do qual emana a misoginia, a violência, a pedofilia. Mas perder de vista o nível de articulação dele com essas coisas, na prática, me parece um grande equívoco. Não se trata também de um raciocínio 'adorniano' de superior x inferior, mas ao mesmo tempo sim é socialmente válido, relevante, reconhecer o bem que o apuro estético faz ao nosso corpo e nossa alma. O custo desse relativismo é muito alto, porque no fim vamos cair na política, não é? Queremos para nós e para os outros o que o ser humano tem de melhor ou não? Queremos preservar direitos ou não? Isso depende de uma defesa de valores e no limite é preciso dizer sim o que é ruim. Fazemos isso em casa e na sala de aula, todo santo dia. Se formos nós, professores, gente que teve por um ou outro caminho na vida acesso às coisas feitas com apuro, com alguma sutileza, se formos nós verdadeiros Pilatos que lavam as mãos diante da exposição das novas gerações a tanta coisa ruim (90% do funk incluído, 100% do sertanejo universitário, etc...) então fudeu. Pra mim não tem nada mais preconceituoso do que esse relativismo que no limite permite sem contraponto que o mercado dite as regras do que serão as expressões culturais mais penetrantes no dia a dia das crianças. 

A barbárie tem um antídoto, chama-se civilização - obviamente a melhor civilização comporta um debate intenso sobre como ela deva ser. O que muita gente não entende é que estabelecer parâmetros consensuais e razoáveis para exercemos todos a liberdade é a própria condição do exercício da liberdade em sociedade. Tudo que estamos vivendo hj tem a ver com essa dificuldade, é a exacerbação do individualismo sem freio que não aceita reconhecer qq limite onde quer que seja. Estamos em 2016, não em 1930 - mas parece que queremos regredir até sei lá quando. O relativismo que referenda um discurso qualquer sem verificar suas consequências práticas é intelectualmente irresponsável. 


*Links: normalmente eu incorporo o player na postagem mas nesse caso eu vou me poupar e também evitar repercutir uma coisa tão degradante. Mas se alguém tiver alguma dúvida da gravidade do assunto, basta clicar e assistir esses ou dezenas de outros: