Decidi escrever esse texto, retomando um tema que recentemente esteve em pauta desde o final de maio de 2016 em função do hediondo estupro coletivo que ocupou as atenções e rendeu muitos debates internéticos, embora como de costume não tenha se desdobrado em nenhuma medida que ultrapasse a dimensão tópica do caso. Surgiu então um debate em torno do que consistiria a chamada "cultura do estupro" e inevitavelmente, pela centralidade que ocupa em nossa vida cultural, de como a música popular participaria dela. Nesse debate era inevitável que o funk, com suas letras e coreografias que aludem explicitamente ao sexo, com conteúdo sexista e uma recorrente objetificação dos corpos, captasse boa parte das atenções. Foi especialmente ressaltado, num oportuníssimo post de facebook da cantora, instrumentista e compositora Juliana Perdigão, feito com a mesma contundência consequente que imprime à sua música, o envolvimento direto de crianças nas produções de funk*. Mas o que me chamou mesmo a atenção foram comentários comparando o teor dessas letras (muito pouco, efetivamente, se fala sobre a música ou mesmo as coreografias) com as de outros tempos e gêneros, como se todas incorrem no mesmo tipo de pecado. Sou
obrigado a discordar. Colocar Noel Rosa e Vinícius de Moraes, Beatles,
Racionais, entre outros, incluir insinuações e duplos sentidos do
tempo do onça, qualquer metáfora do ato sexual em si, sem qualquer
avaliação de teor, sem qualquer conhecimento efetivo do contexto de sua
produção e recepção, é algo que nenhum historiador sério pode aceitar.
Aliás, fazer isso é opção pela ignorância e isso não
nos levará mais perto de enfrentar a cultura do estupro. É também uma
violência simbólica, contra a própria história da música popular.
Talvez estejamos num momento em que a sensualidade tornou-se tão explicita que a sutileza de letras como a de Morena Tropicana (Alceu Valença) e tantas outras não enseja uma recepção que aciona esses códigos hoje. Me parece que atualmente certos gêneros (pode ser rock, funk, sertanejo universitário, etc.) interpelam a sexualidade do ouvinte através de menções diretas e explícitas - não usam nem mesmo os duplos sentidos infames como faziam os antigos axés e pagodes. E nesse sentido eu considero um conceito formado e não um preconceito, inclusive sobre a dimensão de classe dessas expressões. O sertanejo universitário, por exemplo, tem entre seus performers gente de origem de classe média e até alta. Me incomoda sobremaneira ver pesquisadores, professores, gente com formação, cair num relativismo supostamente includente que se escusa de fazer qualquer crítica consequente. Sobre isso já me expressei anteriormente comentando um texto escrito pelo Hermano Vianna:
É muito cômodo um cara que tem acesso, que recebeu uma educação superior de primeira, relativizar tudo, enquanto essa massa emergente também poderia se beneficiar muito do contato com outras expressões que não são de seu universo próximo, digamos assim, e que não precisam ser impostas, mas sim oferecidas. Sim, o fã "inculto" não compara Ai, se eu te pego com Jobim, até porque provavelmente ouviu Jobim no máximo na trilha de novela, e não tem a oportunidade efetiva de conhecer sua obra. E sim, isso o empobrece como ser humano, claro. Penso sempre que uma posição que preconiza a democratização e o diálogo cultural precisa ir além do mero reconhecimento, do identificado, e propor que as pessoas possam entrar em contato com o que é diferente delas, o que pode transformá-las. [completo, aqui]
O sertanejo universitário em sua forma atual não vem de baixo. Professores universitários celebram o funk. Pagodeiros fazem show no Palácio das Artes cobrando ingresso de mil reais. João da Baiana ganhou um pandeiro de presente com dedicatória de um senador da República, que mostrava aos policiais para evitar ser preso. Enfim, em se tratando de música popular no Brasil a coisa se mistura e se rearranja de formas imprevisíveis, algumas vezes muito bonitas e outras horrorosas. Se há um viés de classe na rejeição ao funk, não sei bem onde ele funciona. Não é no Chalezinho e outras boates mauricinhas de BH, por exemplo. E quanto vcs acham que amealham os grandes nomes do funk em seus shows, hein? A
afirmação "funk é cultura" é tão vazia quanto "machismo é cultura", por
exemplo, porque afinal já sabemos perfeitamente que todo o jogo de
representações e embate simbólico se dá no âmbito da cultura. A
pergunta, afinal, é o que representa o funk culturalmente? Enfim, a origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Sendo assim, não podemos fugir à responsabilidade de fazer uma análise ética e estética de qualquer gênero que seja, ou, no fundo, de qualquer expressão. Sem parâmetro, caímos no vazio, ou , mais ainda, deixamos o MERCADO falando sozinho. Que tal?
Na verdade é muito mais polêmico atualmente ressaltar, sem paternalismo, o grau profundo de objetificação da mulher e do homem, a ausência de sutileza para se tratar do sexo e etc. (como já disse, pode ser no funk, no sertanejo universitário, no rock, não vem ao caso o gênero). E mais, sem nove horas, vamos ser bem francos, alguém, na história desse mundo, estuprou ao som de Vinícius de Moraes? ???? Obviamente o funk não é o centro do qual emana a misoginia, a violência, a pedofilia. Mas perder de vista o nível de articulação dele com essas coisas, na prática, me parece um grande equívoco. Não se trata também de um raciocínio 'adorniano' de superior x inferior, mas ao mesmo tempo sim é socialmente válido, relevante, reconhecer o bem que o apuro estético faz ao nosso corpo e nossa alma. O custo desse relativismo é muito alto, porque no fim vamos cair na política, não é? Queremos para nós e para os outros o que o ser humano tem de melhor ou não? Queremos preservar direitos ou não? Isso depende de uma defesa de valores e no limite é preciso dizer sim o que é ruim. Fazemos isso em casa e na sala de aula, todo santo dia. Se formos nós, professores, gente que teve por um ou outro caminho na vida acesso às coisas feitas com apuro, com alguma sutileza, se formos nós verdadeiros Pilatos que lavam as mãos diante da exposição das novas gerações a tanta coisa ruim (90% do funk incluído, 100% do sertanejo universitário, etc...) então fudeu. Pra mim não tem nada mais preconceituoso do que esse relativismo que no limite permite sem contraponto que o mercado dite as regras do que serão as expressões culturais mais penetrantes no dia a dia das crianças.
A barbárie tem um antídoto, chama-se civilização - obviamente a melhor civilização comporta um debate intenso sobre como ela deva ser. O que muita gente não entende é que estabelecer parâmetros consensuais e razoáveis para exercemos todos a liberdade é a própria condição do exercício da liberdade em sociedade. Tudo que estamos vivendo hj tem a ver com essa dificuldade, é a exacerbação do individualismo sem freio que não aceita reconhecer qq limite onde quer que seja. Estamos em 2016, não em 1930 - mas parece que queremos regredir até sei lá quando. O relativismo que referenda um discurso qualquer sem verificar suas consequências práticas é intelectualmente irresponsável.
*Links: normalmente eu incorporo o player na postagem mas nesse caso eu vou me poupar e também evitar repercutir uma coisa tão degradante. Mas se alguém tiver alguma dúvida da gravidade do assunto, basta clicar e assistir esses ou dezenas de outros:
Fabiano Buchholz de Barros: Os vídeos são degradantes e eu convivo muito com esse som e estética, embora eu tenha um mecanismo de defesa mental que me impede de reconhecer alguns hits ou de saber deles com relativo atraso. A sexualização de crianças não é novidade trazida pelo funk, mas ele a levou a novas dimensões e colocou crianças como protagonistas. O que entristece um tanto é ver um conflito que aparece na infantilidade do nome artístico do MC (Pikachu) e o teor erótico do que canta. Tem outro teor que também me incomoda nessa cultura do Funk que é a valorização de um certo ideal de consumo e corpo, onde carrões e dinheiro sao associados ao acesso ao sexo e as mulheres, estas rebaixadas à categoria de quem espera o MC de sucesso. Mas há ligações com drogas e o tráfico que sao difíceis de delinear, mas que está lá. Outra coisa, se as classes populares normalmente emulam os padrões de comportamento e estético das classes dominantes, aqui há um efeito inverso com as classes mais abastadas emulando os padroes estetico e éticos desse nicho que é funk. Mas acho que nisso de certa forma sempre aconteceu, mas não sei se como no caso do funk.
ResponderExcluirPedro Marra: Massa a discussão, embora me pareça que o ideal seria deslocar o seu foco em alguns pontos. E se, por exemplo, no trecho "Sendo assim, não podemos fugir à responsabilidade de fazer uma análise ética e estética de qualquer gênero que seja, ou, no fundo, de qualquer expressão" trocássemos a idéia de gênero pela de composição? Outro ponto importante de debate me parece ser o da sutileza x vulgaridade. Talvez fosse mais oportuno avaliar as composições em que cada um dos pólos é o mais oportuno, não? Enfim, me parece que o problema dos relativistas é que eles recorrentemente relativizam de menos e não demais, parando sempre na diferença mais aparente e trivial entre as culturas. No processo, ao invés de complexificar a diversidade, a simplificam.
ResponderExcluirMassa Crítica Música Popular: Pedro Marra, são ótimas colocações. O texto certamente se recente de ter sido construído a partir de debates de ocasião no facebook mesmo, e aí fica um pouco desleixado, digamos assim. Até pensar mais, eu te digo que cabe fazer análise ética e estética de um gênero, até pq nos permitirá definir quais são os valores predominantes nele, o que pode inclusive ser importante para identificar quem são os inovadores dentro dele. Quanto aos relativistas, eu concordo em parte, ainda que continue a achar que é válido defender que algumas coisas não se relativiza, mesmo (por exemplo, exploração de menores).
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