Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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3 de abril de 2019

Entre cordas, paralelos e meridianos: Toninho Horta e Pat Metheny


Como de hábito, excelente análise do meu parceiro Pablo Castro das relações geopolíticas, simbólicas e materiais que perpassam o intercâmbio entre os músicos populares. Através desse caso exemplar e um inevitável paralelo, enseja a reflexão sobre o que é ser mineiro e brasileiro no mundo, e as respostas que a música popular encontra para esta pergunta candente.



O caso da influência mineira na música de Pat Metheny é ilustrativo da nossa condição de periferia-tesouro: o guitarrista americano ouviu nos discos de Milton Nascimento o talento incrível de Toninho Horta na guitarra. Bebeu na fonte, ouviu tudo que pôde, tirou as harmonias, veio ao Brasil, conheceu Toninho, fez uma participação no segundo disco do brasileiro. Absorveu o timbre, o estilo, a capacidade de mesclar, na improvisação, frases junto com voicings, visitou a esquina do Clube da Esquina, trouxe a banda toda, inclusive o incrível tecladista Lyle Mays. Chegou a dizer que gravaria um disco com Toninho, mas a história morreu.

O artista americano é mais virtuoso, com recursos atléticos, e mais eclético, e sua obra abraça um leque ampliado de estilizações. Mas a influência da Toninho está clara em todos os seus principais discos posteriores ao seu encontro com o mestre brasileiro, a começar pelo timbre de guitarra, e pelos toques harmônicos que aprendeu com Toninho. Embora ele tenha citado Toninho em algumas entrevistas, a impressão que se tem é que ele cita menos do que devia. Lembra um pouco a relação de Stan Getz com João Gilberto e Tom Jobim ...

Pat se tornou um dos artistas de música instrumental mais bem sucedidos de todos os tempos, seus shows são caros e concorridos, e ele goza de um prestígio internacional raro. Ele tem o mérito de ter feito música instrumental que flertava com o pop mas não perdia seu conteúdo harmônico melódico, e onde a exuberância de sua improvisação se dava de maneira natural. Trata-se de uma música 'oceânica', que remete ao território inaugurado por Toninho Horta e os mineiros do Clube da Esquina.




Toninho também se beneficiou dessa relação, conseguiu abrir um caminho no mercado internacional , iniciou uma série de discos elegantes na gravadora Verve, e hoje é condecorado em Berkley e roda o mundo com grande frequência, embora prefira morar no Brasil, para a nossa felicidade.

Entretanto, no mundo hierárquico da música instrumental, inclusive entre a maior parte dos instrumentistas brasileiros, fica a impressão de que Pat é maior que Toninho. Evidente que não concordo com isso não apenas pela precedência do brasileiro, mas porque sua composição me parece bem mais consistente, brilhante , incisiva , do que a do americano. As composições de Toninho estão repletas de autoralidade e novidade, as de Pat, nem tanto. É só comparar disco a disco a qualidade das composições, pra mim fica patente que o Toninho é mais compositor.

Por outro lado, os discos de Toninho tem menos variedade estilística, enquanto os de Pat tem mais abertura a estilos variados. A música americana sempre foi muito mais interessada em "impressionar", no sentido de afiar uma performance e uma sonoridade que não deixe dúvidas e normalmente não deixa muito espaço para o devaneio. Já a música brasileira é menos direta, menos impositiva, mais reflexiva, e portanto menos formatada para o mercado. Porém, me parece mais frutífera a longo prazo. Não me entendam mal , Pat Metheny é um monstro, um grande artista, porém suspeito que alguns dos seus discos envelhecerão mais rapidamente enquanto os de Toninho permanecerão pertinentes por muitos e muitos anos.
Por Pablo Castro

8 de setembro de 2013

Nas trilhas com Ry Cooder - 1a. c/ a 7a. especial

As encruzilhadas entre o trabalho do versátil músico Ry Cooder e o cinema são muitas, e como fazia tempo que não escrevia nada da série 1a. c/ a 7a., e após alguns minutos de navegação errante pela internet acabei encontrando um mini documentário que produziu o desejo de retomá-la. Como músico, sua assinatura mais reconhecível em mais de 50 anos de carreira e diversos álbuns gravados certamente é o slide guitar, em seus próprios trabalhos, ou atuando em estúdio para discos de artistas do naipe de Bob Dylan, Rolling Stones, Taj Mahal, Neil Young, Arlo Guthrie e Eric Clapton, entre outros. Muita gente deve tê-lo ouvido como o autor dos solos do personagem de Ralph Macchio em A encruzilhada (Crossroads, 1986), road movie alusivo à história do lendário bluesman Robert Johnson. Assina a trilha deste e de mais de uma dezena de filmes, com destaque para Paris, Texas, (1985), dirigido por Win Wenders. Foi também com Wenders que dividiu os méritos pelo excelente Buena Vista Social Club, capitaneando a produção desse registro indispensável da música popular cubana cuja gravação o cineasta alemão documentou esplendidamente. O que acho mais interessante em Cooder é que assume, nos seus interesses e projetos musicais, a mobilidade característica dos tocadores de estrada, dos protagonistas de road movie. Se deixou seu pé na terra, guardando um respeitoso diálogo com diferentes tradições musicais norte-americanas, também cruzou oceanos e colaborou com músicos contemporâneos indianos e africanos. Seu engajamento político é outra característica que considero digna de nota, visível em canções como How can a poor man stand such times and live, ou a recente e sarcástica No banker left behind