Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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5 de março de 2018

Na estante: Le Grand Tango

Meu deleite do momento é essa magistral biografia de Piazzolla, que adquiri numa banca de rua na feira cultural no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, no final do ano passado. Nos dias em que estive por lá, ir ouvindo a música enquanto lia a biografia em pleno centro de Buenos Aires dava uma sensação ímpar a tudo. Le Grand Tango: the life and music of Astor Piazzolla, escrito pela argentina María Susana Azzi (da Academia Nacional de Tango e da Fundação Piazzolla)  e pelo estadunidense Simon Collier (latinoamericanista e professor da Universidade Vanderbilt). Pesquisa de fôlego (5 anos), entrevistas, material de arquivo, texto agradável, análises decentes, sem medo de usar termos técnicos mas conseguindo dar a ideia a qualquer leigo, detalhes curiosos - por exemplo, Piazzolla quando adolescente conheceu Gardel em Nova Iorque e quase esteve na sua trupe como ajudante na viagem à Colômbia que matou o grande ídolo argentino. Que vida movimentada e que figura foi Piazzolla. Ler uma biografia dessa modifica totalmente a forma de ouvir a música do artista biografado. 







"Quando você se casa com a música , ela é seu amor para sempre, e você vai para o túmulo com ela". Piazzolla!

P.S.
Um dos pontos altos do livro é a passagem de Piazzolla pelo Brasil em 1972, quando Nana e Dori Caymmi o levaram para ver o show de Milton Nascimento no Rio - à época do disco Clube da Esquina. Na sequência o argentino e seu conjunto tocaram num espaço privado para uma plateia de músicos brasileiros que incluiu, além do trio já mencionado, Chico Buarque, Egberto Gismonti, Luiz Eça e outros. Após a reunião de depoimentos e casos dessa passagem, fica inclusive a sugestão dos autores para que se escreva um livro devotado às conexões de Piazzolla com a cena musical brasileira, reforçada pelo relato de um diálogo entre ele e Caetano, no qual ele indaga ao baiano porque não o tratam na Argentina como o Brasil lhe trata.

P.S. 2 - acrescento essa entrevista que traz vários assuntos tratados no livro e acabei de assistir por indicação do músico argentino Lisandro Massa. 

 

14 de dezembro de 2013

Grandes encontros da música popular - Egberto e Hermeto

Antes que algum desavisado imagine coisas, não se trata da mais nova dupla sertaneja universitária.  São, de fato, o Gismonti e o Pascoal, dos músicos mais inventivos e inclassificáveis que essas terras brasileiras já deram de dar. A série grandes encontros não poderia perder essa oportunidade, mesmo considerando que a música desses dois atravessa várias fronteiras e de forma alguma se limita à classificação de popular, ainda que transite por ela. No reconhecimento disso, lanço mão de expediente que já se tornou habitual, que é pinçar os excelentes comentários do meu parceiro Pablo Castro:

Um dos enigmas da grande música instrumental brasileira sempre foi, para mim, nunca ter ouvido Egberto e Hermeto juntos. Não só porque os considero os dois maiores nomes pós- década de 1960, tanto como compositores quanto como instrumentistas, nem apenas porque os considero duas escolas diferentes, e igualmente majestosas, Egberto mais cerebral, e Hermeto mais dionisíaco, mas pelo fato de que são da mesma geração, filhos da revolução da bossa nova e do ensino de músicas nas escolas durante as décadas de 40 e 50 cuja implantação se deu pelas próprias mãos de Villa-Lobos.
Eis que achei aqui esse raríssimo encontro de gigantes, cujos nomes até rimam, num festival de jazz europeu em 1975.



Com a preciosa contribuição de Maurício Ribeiro, acrescento essa entrevista dada pelo dois, em companhia do também imprescindível Naná Vasconcelos, quando estiveram juntos na Argentina. Rápida e certeira.




Aproveito o clima natalino, tempo propício para anunciar que já acertamos novas bases para esta colaboração, e em breve os leitores do Massa Crítica MPB vão ter gratas surpresas...


24 de dezembro de 2012

Na estante: Alucinações musicais, de Oliver Sacks

Enquanto as preparações para a celebração de Natal se encaminham, aproveito alguns intervalos para vagar pelas páginas e histórias extraordinárias de Alucinações musicais, livro do neurologista e escritor Oliver Sacks (autor, entre outros, de Tempo de despertar, certamente bem conhecido pela versão cinematográfica com belas atuações de Robin Williams e principalmente Robert De Niro). É uma leitura literalmente fascinante, tanto pelos relatos impressionantes quanto pela forma elegante de sua escrita. Passo pelos casos de forma aleatória, sem seguir a ordem dos capítulos, já certo de que a seguir virá mais um caso inacreditável, como o do médico que após ser atingido por um raio tornou-se um obsessivo pianista, ou comovente, como a luta de um musicólogo inglês contra a amnésia que lhe permitia lembrar-se apenas por 7 segundos, de modo que cada vez que escuta uma melodia é como se fosse a primeira vez, ou simplesmente divertido como o da química que após a retirada de um tumor teve a personalidade alterada, deixando de ser uma pessoa reservada e contida e transformando-se em festeira e "musicófila". Trata-se portanto de um livro que revela a força da mente humana e a forma profunda com que a música se arraiga nela e integra nossas vidas. Assim, deixo a dica e o link do livro como presente que gostaria de compartilhar nesta data, pequeno tributo à razão e a emoção que nutrem o que há de melhor e pior nessas criaturas demasiadamente complexas que somos. Segue um trecho que tem particular interesse para este blog, pois trata em particular da canção e suas propiedades mnemônicas:



"Toda cultura possui canções e rimas para ajudar as crianças a aprender o alfabeto, os números e outras listas. Mesmo quando adultos, somos limitados em nossa capacidade para memorizar séries ou retê-la na mente se não usarmos recursos ou padrões mnemônicos - e os mais poderosos desses recursos são a rima, a métrica e o canto. Podemos ter de cantar a canção do "ABC" internamente para lembrar o alfabeto, ou, no caso dos americanos, imaginar a canção que Tom Lehrer compôs em 1959 para ajudar a lembrar o nome dos elementos químicos. Para quem tem dotes musicais, uma quantidade imensa de informações pode ser retida dessa maneira, consciente ou inconscientemente. O compositor Ernst Toch (disse-me seu neto Lawrence Weschler) era capaz de reter na mente com grande rapidez uma série muito longa de números depois de ouvi-la uma única vez. Fazia isso convertendo a série de números em música (uma melodia que ele moldava "em correspondência" com os números). Um professor de neurobiologia contou-me a história de uma extraordinária aluna, J., cujas respostas em um exame despertaram suspeitas por parecerem muito familiares. O professor escreveu:


Algumas sentenças depois, pensei: "Não admira que eu goste das respostas dela. Ela está citando minhas aulas palavra por palavra!". Também havia uma questão no exame que ela respondeu com uma citação direta do livro didático. No dia seguinte, chamei J. à minha sala para ter com ela uma conversa sobre cola e plágio, mas alguma coisa estava errada. J. não parecia ser do tipo de aluno que cola. Não parecia ter malícia. Por isso, quando ela entrou na minha sala, o que me veio à cabeça e à boca foi a pergunta: "J., você tem memória fotográfica?". Ela respondeu, empolgada: "Sim, algo parecido com isso. Posso me lembrar de qualquer coisa se a puser em música". Ela então cantou para mim, de memória, partes inteiras das minhas aulas (e cantou bonito, ainda por cima). Fiquei pasmo.


Embora essa estudante tenha, como Toch, um dom extraordinário, todos nós usamos o poder da música dessa maneira, e pôr palavras em música, especialmente nas culturas pré-letradas, tem um papel fundamental nas tradições orais da poesia, do contar histórias, da liturgia e da oração. Livros inteiros podem ser memorizados - a Ilíada e a Odisséia são célebres exemplos disso. Podiam ser recitadas na íntegra porque, como as baladas, tinham ritmo e rima. Quanto essa recitação depende de ritmo musical e quanto puramente de rima lingüística é difícil dizer, mas sem dúvida ambas as coisas estão relacionadas: tanto "rima" como "ritmo" derivam do grego e contêm significados combinados de medida, movimento e sucessão. Uma sucessão articulada, uma melodia ou prosódia, é necessária para conduzir a pessoa, e isso é algo que une a linguagem e a música, e pode ter sido o alicerce de suas origens talvez comuns".
P.S. 2017 Alive Inside

Uma das maiores vantagens do formato "blog" é poder ir aprimorando as postagens, fazendo correções, acréscimos, e agregando material enquanto o texto circula. No canal de You Tube de Cisco Zappa encontrei o seguinte documentário, "(...) realizado por Michael Rossato-Bennett a partir do trabalho do assistente social norte-americano Dan Cohen, que através do poder vivificador da música, reativou circuitos neuronais ligados à memória de velhinhos e velhinhas, atingidos pela demência provocada pelo Alzheimer e outras doenças. O projeto de Dan chama-se "Música e Memória". O documentário além da participação dos personagens centrais, velhinhos e velhinhas, teve também a colaboração do genial e inesquecível Oliver Sacks".