Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

6 de fevereiro de 2023

A boca é livre, o choro também, mas...

As premiações certamente merecem um capítulo à parte na história da música popular e da indústria fonográfica. Sob a guarida de alguma entidade do setor, apresentadas ao grande público com pompa e circunstância, supostamente elas são capazes de conciliar apreciação qualitativa dos “produtos” e seu êxito comercial. Diversos mecanismos e regulamentos que organizam tais contendas lançam mão de retóricas e práticas para atingir tal efeito, como mesclar indicações feitas por críticos e público, ter laureados escolhidos por um comitê de notáveis lado a lado com os votados democraticamente pelos meios tecnológicos disponíveis, criar categorias “técnicas” ao lado das pretensamente “estéticas”. No contexto do entretenimento globalizado, o Grammy fulgura como o mais chamativo destes prêmios, distribuídos do âmago do negócio da fonografia, os EUA, apesar de ironicamente trazer no nome uma referência ao engenho do alemão Berliner, e não do seu conterrâneo Thomas Edson. Mas isso mesmo é indício de sua pretensão planetária, obviamente criticável.  

É lamentável que a contenda seja reencenada de forma tosca nas redes sociais por obtusos fanáticos pela cantora pop Anitta, que sem hesitação saíram a lançar impropérios contra Samara Joy, a vencedora da categoria de melhor artista revelação em que ambas concorriam [aqui]. Claro que esses “fãs” (de repente fanatizados fica mais preciso) assimilam a lógica da disputa por meio de seu próprio “filtro”, ou seja, o de uma ordem autoritária, impositiva, que não admite contrariedade ou diferença de perspectiva. Vale lembrar que Anitta adorava posar de “democrata” e “politizadora” ano passado, mas quando a conversa chega no mercado é melhor esquecer da política... Essa ótica muito menos admite qualquer apreciação de ordem estética que vá além de afetos primários e impulsos cordiais, expressando um tipo torto de patriotismo vulgar que considera o ápice do reconhecimento de valor uma performer ser laureada por tudo que faz para soar ajustada a uma visão redutora que explora o traço nacional como exótico e sensual dentro do arcabouço do som pasteurizado regurgitado das entranhas de sua usina de sucessos de goma de mascar. Muito melhor que isso – decididamente - com muito mais brasilidade, ginga, charme, etc., fez Carmen Miranda décadas e décadas atrás, por mais que ela também tenha sido em alguma medida enquadrada nas balizas do estrelato hollywoodiano que usavam estas mesmas lentes.

Igualmente notável que essa carrada de pessoas não dê a menor notícia do prêmio concedido ao conjunto vocal Boca Livre em parceria com o cantor panamenho Rubén Blades, ainda que no segundo escalão da premiação. Nem vou desfiar mais o rosário de críticas sobre dar importância a Grammy, subdivisão "latino", com a devida adesão ao viralatismo a céu aberto da imprensa brasileira. O prêmio em si importa pouco, importante mesmo é aproveitar o ensejo para celebrar e difundir a obra refinada do Boca Livre e torcer para que a divulgação a leve a novos ouvidos. E claro, uma nota trista pela ruptura de relações entre os membros do grupo, mais um saldo negativo desses tempos de escalada reacionária. Deixo abaixo algumas das minhas preferidas do grupo, e também o link para apreciarem o trabalho vencedor.











25 de janeiro de 2023

MACHADO ELÉTRICO


Mais uma das minhas parcerias com Daniel Guimarães. Essa foi a que mereceu mais revisões e reinvenções na letra. Quem se lança na tarefa de botar palavras na música que outra pessoa compôs tem que estar disposto à tarefa, que pode ser tanto um passeio de pedalinho quanto uma circunavegação do Cabo das Tormentas. No geral não será nem tão ameno nem tão dramático. Enquanto escrevo este texto vou recapitulando as conversas que fui tendo com o Daniel via mensagem no facebook - já devo ter dito em algum dos relatos anteriores que a distância condicionou essa forma de interagirmos. O fato é que eu esteva muito nessa onda de brasilidade, ali por meados de 2020. Com a verve de historiador falando alto, comecei com uns versos que pareciam adaptação de livro didático ou versão de samba enredo, diante de uma melodia sinuosa, que me sugeria o mar e uma narrativa forte, densa, solene. 

Pindorama, litoral 
Veio a nau da Guiné de Bissau
Sesmaria, pau brasil
chão dividiu
gente arredou

Só o primeiro verso resistiu rsrsr. Mas naquele momento segui naquela toada, fiz outra estrofe e depois o B (este manteve ao final a mesma redação) que de alguma forma sugeria uma reflexão sobre a passagem do tempo, e expressava também a vontade de ver mais um momento de crise do país ser superado de alguma forma. Daí cravar ao final: o futuro vai passar. Do ponto de vista das figuras brasileiras que eu evocava, o futuro delas era o nosso presente, que também deixa de ser, em meio a essa imagem alegórica e sincrética refletida num objeto simbólico pertencente a uma divindade afro-brasileira, o que me fora instigado pelo título da "demo", que já era Machado elétrico.
Satisfeito naquele ponto, enviei ao parceiro o resultado. No retorno, com toda a delicadeza e muita sensibilidade, ele foi destrinchando pra mim a motivação por traz do que compusera, homenagem a um querido amigo e parceiro musical dele que havia deixado essa nossa precária existência. Além de comovido eu me senti incumbido da tarefa de me acercar minimamente, através do relato dele, de algumas músicas gravadas, da pessoa do homenageado. Entre as nossas conversas fui procurando um jeito de conciliar o impulso original do que eu escrevera com essa nova perspectiva. Fico feliz de constatar, revendo essas mensagens, que fizemos tudo com muito respeito mútuo e paciência. Esse é o fundamento de qualquer parceria, porque querendo ou não estamos nesse barco expostos a tudo. Não é mole a vida do compositor, em especial a do cantautor que interpreta suas próprias canções, muitas vezes colocando pra fora o que tem de mais íntimo esperando que isso faça sentido pra outras pessoas. Busquei, assim, capturar dentro de um mesmo universo imagético o limiar entre a vida e a morte, a praia e o mar, o passado e o futuro, enfim, a mudança que é algo que experimentamos como indivíduos e como sociedade. Acho que o resultado final foi digno do desafio, e a canção como um todo ficou muito bonita, como é possível conferir nessa versão voz e violão:


Machado elétrico (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Pindorama, litoral
Vento risca nas dunas de sal
Corta a voz do cantador
Céu carregou
Vem temporal

Junta contas no cordão
Sente areia escorrendo da mão
Sol e sombra na feição
Espuma nos pés
Desafia o ar

Guerreiro tupinambá
Ergue a vista sobre o mar
Vê a lua brilhar
No machado de Xangô
Entre sangue e resplendor
O futuro vai passar

20 de janeiro de 2023

Novelli, viva ele

Sopra velas hoje o grande baixista e compositor Novelli Barros e Silva [bio no Dicionário Cravo Albin; discografia em Discos do Brasil]. Não bastasse a folha corrida impressionante tocando com a fina flor da música popular brasileira, abrilhantando todo um leque de gravações, ele também enfileira composições primorosas que talvez haja quem já tenha ouvido muito e não se toque que são parte de um cancioneiro de responsa. 

Fiz essa postagem matando saudade do blog e de alguma forma recapturando emoções de primeiras audições de coisas como as gêmeas Minas e Minas Geraes, Pelas ruas do Recife e Linha de montagem. Mas há muito, muito mais a explorar na obra desse pernambucano que também tem cadeira cativa na esquina do Clube e nos nossos corações, corações, corações...Viva ele!





Uma parcela do cancioneiro de Novelli foi belamente registrada nesse disco da cantora Bárbara Casini em comunhão com Toninho Horta. 


De lambuja essa entrevista concedida por ele ao canal do Tropicália Discos:



18 de setembro de 2022

FRUTO DO TRABALHO

Faz tempo que não tiro um tempo para cuidar do blog, e aproveite o intervalo antes da preparação do almoço de domingo para voltar à carga nessa seção, contando como foi o processo de criação dessa canção que fiz com o parceiro Dan Oliveira. O Dan é aquele músico de corpo e alma, de Minas e do Mundo, e nossa parceria tem sido das mais prolíficas e produtivas. Tenho grande admiração pela forma com que ele conjuga talento e dedicação, buscando traçar seu caminho como músico e profissional. Além de me brindar com sua amizade, o que já nos propiciou muitas horas contadas de papos nos botecos da vida e de criação.


Essa tem uma história sinuosa, como o movimento da cobra. Começa que foi inspirada por um filme, Arábia, rodado aqui em Minas, produto daquela recente cena cinematográfica de Contagem, dentre os quais foi o que eu mais ouvi ser elogiado. É o retrato de uma fatia da história social do trabalho no Brasil contemporâneo. Meus filhos sugeriram num sistema de "cineclube familiar" que criamos para assistir juntos durante a pandemia. Quem quiser pode ler a resenha que escrevi, aqui. Inspirado pelo que vi escrevi um poema, não faço tantos mas me arrisco:

FRUTO DO TRABALHO
A cobra me cobra
em cobre
empresa
sua presa me despreza
me implode me sacode
me dá bode me fode
em seu cabo
me acabo
A praga me prega
emprego
em prego é preso
o pai, o filho
o espírito
o corpo
amém?
ah, nem

Depois a querida amiga e colega historiadora Andrea CasaNova gostou e me propôs publicá-lo num livro que estava organizando de relatos sobre aquele período recente e perturbador. Achei que seria pertinente, desde que reunisse um relato sobre a criação do cineclube, uma solução que encontramos para tornar o convívio virtual imposto por algum tempo algo mais interessante. Assim foi feito, e já estaria de bom tamanho. 

Mas quando o Dan começou a me enviar alguns temas de forte inspiração bituquiana, desfiando um rosário de influências afro-mineiras, eu me vi diante da sensação de que um deles encaixava perfeitamente com o poema. Era, essencialmente, uma combinação de crítica materialista das relações de trabalho combinada a alusões da religiosidade cristã, logicamente de um ponto de vista que deixa entrever meu professo ateísmo. A ponte, subentendida, é a que leva do duplo sentido de prego, remetendo tanto ao cansaço físico quanto à crucificação. Tudo isso me pareceu casar perfeitamente com a música, que carrega aquele clima telúrico recorrente na obra de Milton Nascimento, além do compasso irregular, tudo denunciado no título do arquivo que ele me enviou: "Bituca em 7". Na forma ABAB eu às vezes gosto de dar uma enganadinha, colocando um verso repetido que cria uma sensação (ainda que fraca) de refrão, ainda mais quando a melodia tem uma variação que ressalta o trecho em relação ao restante da parte, daí o "mas hei de vencer", uma espécie de retruque determinado que evita condenar o "eu lírico" à denúncia paralisante. 




Fruto do trabalho
música de Dan Oliveira, letra de Luiz Henrique Garcia

A cobra cobra-me 
Bora trabalhá 
em cobre cobre-me 
pele pra rancá 

Empresa, sua presa
me corta, despreza 
penhoro minh’alma 
mas hei de vencer 

A praga prega-me 
Bora me purgá 
Emprego emprega-me 
Carne pra sangrá 

Em nome do pai, do filho, 
do espírito santo 
Imolo meu corpo 
Mas hei de vencer

19 de junho de 2022

Que tal o samba do Chico?

Chico Buarque, mesmo quando "automático", mostra-se um cancionista no controle absoluto de todos os macetes dessa arte. É tudo tão redondo, desce tão macio, que a gente se rende na primeira audição. Claro, não dá pra comparar com Apesar de você ou Vai passar, inclusive porque a gente sabe que a correia de transmissão que os festivais e a força da MPB nas décadas de 1960-70 produziram já se rompeu, e o povo não vai sequer ouvir os acordes desse de Holanda, temperados com o bandolim do outro, o Hamilton. Som do bom, claro, é sempre um alento.

A mola mestra desse novo rebento de melodia fluente e gingada é a pergunta, na forma da informal interpelação, "que tal?" Interrogar, ao invés de afirmar, ainda que de maneira retórica, é um jeito malemolente de começar o papo. Com esse convite a uma mudança de ares, expressa através de metáforas simples, acessíveis, porém sem didatismo exagerado, o compositor quer mobilizar seu ouvinte, tirá-lo da placidez. Porém não faz uma convocação panfletária mergulhada em óleo quente e convicção, e sim um apelo ao lúdico, à dança, à festa, ao desafogo, ao esconjuro. Também evita cair no vocabulário "resistente" que se limita a reagir às intempéries, uma vez que propõe, olhando para o futuro, uma utopia a ser buscada. Reeditando sintética e sincreticamente tantos sonhos de Brasil que já foram sonhados, com toda a cornucópia dos signos do país do samba, do futebol, da cultura, da mistura. Sonho do qual gerações mais jovens muitas vezes desconfiam pelos motivos errados, engolindo sem deglutição alguma um corolário identitário gestado na terra dos guetos. No entanto é preciso também pontuar as contradições que moram na eterna ode ao país do futuro, especialmente nas rimas que remetem à Beleza pura de Caetano - e mais uma vez a tabela entre os dois parece azeitada quando lembramos que o baiano acabou de fazer Sem samba não dá, um elogio ambíguo como ele gosta a esse gênero basilar de nosso cancioneiro. "Não com dinheiro mas a Cultura" pode ser lido de tantas maneiras num país de milhões de analfabetos funcionais e desempregados, famintos e falidos, que não podemos fugir à contradição que desperta desse que é um dos versos mais acertivos da canção. No rol das derrotas, que Chico tem o juízo de mencionar mas não se ocupa em precisar, esta é uma das maiores. No final, o legado do partido de esquerda no governo, para o povo, não foi conclusivamente nem um nem outro. Dinheiro não. Cultura também não. Ou sim, diria Caetano? É de nos perguntamos: sabe com quem ele está falando?

Enfim, voltando ao início, é na falta das correias de transmissão, da circularidade cultural, que reside o perigo de que esse sofisticado interrogatório sobre o desejo (ou não) do brasileiro de mudar seu presente (e para qual?) corre o risco de ficar perneta, não por culpa do Buarque, que fique claro. Ele é, no fundo, a voz mais bem entoada (se alguém leu isso e ainda não entendeu que ele canta pra caralho, tá na hora) desse impasse da MPB que projetou e construiu pontes enormes entre classes e vocabulários brasileiros, mas que depois assistiu essas pontes ruírem por falta de manutenção e muitas vezes se acomodou num posto avançado de observação, de onde o povo seguiu sendo fonte de matéria-prima mas não protagonista criador. O apego ao samba - que tal? - talvez seja o último baluarte desse esforço, porque como a própria canção demonstra, ele não é ponte, é uma cidade inteira, feita de diferentes localidades e ramificações, onde todo Brasil cabe. Ao propor um samba, ainda, Chico Buarque reitera que ainda é possível a utopia, a construção de um bom lugar em que esse filho brasileiro, de pele escura e formosura, possa crescer. Quem sabe?





QUE TAL UM SAMBA? (música e letra de Chico Buarque) Um samba Que tal um samba? Puxar um samba, que tal? Para espantar o tempo feio Para remediar o estrago Que tal um trago? Um desafogo, um devaneio Um samba pra alegrar o dia Pra zerar o jogo Coração pegando fogo E cabeça fria Um samba com categoria, com calma Cair no mar, lavar a alma Tomar um banho de sal grosso, que tal? Sair do fundo do poço Andar de boa Ver um batuque lá no cais do Valongo Dançar o jongo lá na Pedra do Sal Entrar na roda da Gamboa Fazer um gol de bicicleta Dar de goleada Deitar na cama da amada Despertar poeta Achar a rima que completa o estribilho Fazer um filho, que tal? Pra ver crescer, criar um filho Num bom lugar, numa cidade legal Um filho com a pele escura Com formosura Bem brasileiro, que tal? Não com dinheiro Mas a cultura Que tal uma beleza pura No fim da borrasca? Já depois de criar casca E perder a ternura Depois de muita bola fora da meta De novo com a coluna ereta, que tal? Juntar os cacos, ir à luta Manter o rumo e a cadência Esconjurar a ignorância, que tal? Desmantelar a força bruta Então que tal puxar um samba Puxar um samba legal Puxar um samba porreta Depois de tanta mutreta Depois de tanta cascata Depois de tanta derrota Depois de tanta demência E de uma dor filha da puta, que tal? Puxar um samba Que tal um samba? Um samba