Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

2 de janeiro de 2021

SUPERNOVA SG532

Tremenda satisfação começar o ano com um lançamento na praça. Ou melhor, com uma canção no ar. E uma inédita de um parceiro com quem já estou compondo há uns anos, mas ainda estávamos mais naquele modo do consumo interno, naquela coisa mais nossa mesmo. Tenho muitas canções nesse estágio, com vários parceiros, e não me aflijo. Umas virão à tona no momento certo, outras serão essas pequenas preciosidades que guardamos só pra nós, ou eventualmente para pessoas muito próximas. Isso para mim é absolutamente necessário, a parceria demanda esse espaço exclusivo para que a criação possa acontecer.  Há o entrosamento que os parceiros vão desenvolvendo, descobrindo afinidades e preferências, aprendendo como dar incentivo, trocar ideias e negociar seus entendimentos particulares, como falar sim, não ou talvez um para o outro,  crescendo nessa aproximação simbiótica. Compor pode ser penoso ou prazeroso, fatalmente ambos, e é preciso confiança mútua, reconhecimento das qualidades e defeitos de cada um, mas sobretudo muita vontade de ver uma canção pronta ao final. O Rafael Senra é um multiartista, que transita da música aos quadrinhos, se arrisca em canais de You Tube, que também atua na área acadêmica como professor e pesquisador. Aliás ano passado (que maravilha referir-me a 2020 assim) escrevemos juntos um capítulo para um livro sobre distopias, bem a propósito dos dias que vamos vivendo. É sempre um prazer trabalhar com ele, pela criatividade e energia contagiante. Compartilhamos referências musicais importantes, como Clube da Esquina, Beatles e rock progressivo.
 
Aí chegamos propriamente ao assunto da postagem. Recebi dele a gravação com a melodia e um instrumental básico, exibindo já esse clima etéreo, essa inevitável sugestão do mote espacial, provisoriamente intitulada - por razões por demais óbvias - de "Tema Supertramp". De imediato, como ando fazendo, busquei algo previamente escrito que pudesse servir como estágio inicial do foguete. Encontrei um rascunho com o nome "Estratosférica". Tem sempre um misto de aventura e perigo ao brincarmos com as palavras maiores e ainda por cima proparoxítonas, pra fazer letras, ainda mais com uma proposta assim, em que a canção é o centro de gravidade mas existem longos braços instrumentais estendidos como uma galáxia sonora. Fiz um primeiro rascunho, sugerindo uma estrofe a mais, mas ela entrou em rota de colisão com um cinturão de asteroides além de Marte. Ficaram só seis versos para dar o recado! E teria que ser uma coisa muito icônica, e claro que é inevitável pensar no recorrente apelo ao "meteoro", que alude à extinção dos dinossauros e à nossa possível. Porém o que a música sugeria era algo mais suave, mesmo que a escala fosse grandiosa. Fui burilando com um pouco mais de tempo, e no início de 2020, depois de ler Pedra no céu, primeiro romance do escritor Isaac Asimov, um dos mestres da ficção científica, troquei "calota polar" pelo título do livro na primeira estrofe. Funcionou bem melhor, ainda que a pedra a que Asimov se refira seja o planeta Terra mesmo, e não um meteoro. Há poucos dias, enquanto lia O pêndulo de Foucault de Umberto Eco, li um trecho em que a narrativa fala do Parsifal (o cavaleiro arturiano Percival) e dá a entender que "esse graal guardado pelos templários é definido como uma pedra caída do céu: lapis exillis. Não se sabe se significa pedra do céu (ex coelis) ou que vem do exílio (...) alguém sugeriu que poderia ser um meteorito". A criação também pode ser favorecida por esses acasos... se é que essas coisas são apenas coincidências...
Como a primeira estrofe remetia muito ao campo visual, pensei na segunda como sendo referente ao som. Havia então essa rima curiosa com "América", uma palavra de tantas conotações... os ouvintes sempre podem pensar em várias... mas para mim ecoaram duas citações inesperadamente coincidentes, a famosa transmissão radiofônica (um termo que num dado momento cogitei mas acabou saindo da estrofe) de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, realiza por Orson Welles em 1983 que deixou muita gente em pânico nos Estados Unidos, e a letra de Fernando Brant para Canção da América, originalmente lançada em inglês como Unencounter no disco Jorney to dawn de Milton Nascimento gravado nos EUA. Provocativamente eu coloquei "toda América", para referir ao continente todo, e claro, quis fazer uma homenagem ao Bituca ali, o dono da impávida voz, a majestade do som. A ideia era criar junto uma imagem de beleza e impacto. 
Resta falar do título. Creio que o Rafael sugeriu esse Supernova, derivando de Supertramp e acentuando o aspecto astronômico da canção. Alguns provavelmente pensarão numa certa canção da banda Oasis, e também para nos certificarmos que não haveria confusão foi surgindo essa ideia de uma coisa pseudo tecnológica, com siglas e números que são ideias muito exploradas na literatura e no cinema de ficção científica - evoco de cara THX 1138, de George Lucas, e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, que Truffaut levou ao cinema. Virou curtição, Rafael adotou o SG dos nossos sobrenomes (por coincidência remete a uma guitarra Gibson) e propôs 532 a partir de uma superstição pessoal "cabalística", ainda que eu me recorde vagamente de termos brincado de fundir números de nossos endereços residenciais, mas a memória prega suas peças. Acho válido pra deixar a coisa assim, bem idiossincrática. É o tal negócio, cada parceria permite que a gente explore um lado da nossa personalidade. Em geral sou muito zeloso do aspecto da brasilidade no que faço, mas aqui me permiti ser particularmente universal.


P.S. 05/01 - texto de meu parceiro Rafael Senra.

Após ler o excelente depoimento do meu querido parceiro Luiz Henrique (escrito por ele ainda no calor do lançamento, com impressionante riqueza de detalhes do processo), pensei em também escrever algo, mas puxando mais para o lado da criação da melodia.

Essa canção foi feita em um período de férias: eu já morava em Macapá, tinha tido meu primeiro semestre como professor da Universidade Federal do Amapá, e estava descansando na casa dos meus pais, em Congonhas (MG). Levei meu notebook e minha placa de áudio para lá, e, em determinado dia, deu vontade de tentar gravar um tema mais progressivo, longo, com diferentes passagens instrumentais.

A base da canção foi composta enquanto eu gravava, e não antes. Eu elaborava uma melodia ou um riff, e as primeiras execuções desse arranjo já eram feitas enquanto eu dava o “rec”. Fui compondo mais focado no teclado, deixando alguns espaços na canção para que depois fossem inseridas guitarras.

Essa base foi criada e gravada muito rápido. Não sei precisar o tempo, mas lembro que a fiz bem mais rápido do que a maioria das canções que já compus. É engraçado, porque se trata de uma faixa longa, com várias passagens instrumentais, e dá a impressão de ter sido algo elaborado e muito burilado; mas, não, em termos de composição, foi muito rápido. Foi um anti-Dorival Caymmi, conhecido por demorar anos e anos para compor frases e melodias aparentemente simples. Mas é que o simples dá trabalho. Lembro-me também do guitarrista do Dream Theater dizer, em uma entrevista, que o que eles fazem não é difícil: que difícil mesmo é fazer uma canção como o U2, que soe relevante com poucos acordes e 4 minutos...

Pois bem. A criação estava fluindo muito, até que, no dia 25 de janeiro de 2019, li a notícia do estouro de uma barragem em Brumadinho. Como Congonhas fica bem perto dali, entrei em pânico. Eu li a notícia em um site pequeno, sem muitos detalhes, escrita cerca de dez minutos após o ocorrido. Fui o primeiro a divulga-la para vários amigos, sem saber da proporção que aquilo realmente alcançaria. Lembro bem de mim, com o teclado musical diante de mim, ainda elaborando alguns dos arranjos, e de repente me vendo distraído com a inesperada notícia, procurando desesperado por mais notícias sobre o ocorrido.

Isso foi em uma sexta feira. No fim do dia, soube que uma grande amiga estava nessa empresa da Vale, e consequentemente o fim de semana foi de puro pânico. Eu e diversos amigos do nosso círculo estávamos devastados. Minha tábua de salvação foi dar tudo de mim na elaboração desse tema musical. Me dedicar à gravação dessa canção foi importante naquele momento, foi uma maneira de não me afundar nos sentimentos cruéis e pesados que só cresciam naquele momento.

Após ter gravado as guitarras, tentei escrever uma letra, tentando expressar a dor sentida pela tragédia de Brumadinho. Não fazia muito tempo que eu tinha ido ao Inhotim pela primeira vez, e me pareceu horrível ver uma região tão bonita ser devastada dessa maneira. Mas a maior dor era pela perda dessa amiga que lá estava, que eu conhecia há anos e era esposa de um verdadeiro irmão de vida. Meu sentimento era real, era duro de lidar, e não consegui traduzi-lo em palavras.

Enviei a melodia para meu parceiro Luiz Henrique Garcia, e comentei muito brevemente sobre a intenção de orientar a letra nessa direção de ser uma espécie de “ritual de cura” do ocorrido. Mas a sugestão não era nada estimulante, ou pelo menos notei que Luiz também não encontrou nesse mote nenhum tipo de inspiração*. Letras de música são algo difícil: muitas vezes, você tem uma ideia interessante, mas a música não aceita a sua ideia. Me parece que toda letra de música que busque a relevância precisa nascer de um “acordo” com a melodia. É preciso que a canção aceite as palavras. De certa maneira, creio que um letrista é em parte criador e em parte tradutor. Ele precisa, em algum nível, traduzir o que a própria melodia já está dizendo (ou gostaria de dizer).

Luiz então se arriscou em uma direção diferente da que eu tinha previamente sugerido. Ao longo dos meses, lentamente, algumas mudanças foram sendo feitas. As vezes, eu perguntava a ele se uma palavra poderia ou não ser substituída, e ele ia pensando em possibilidades diferentes, e aí batíamos o martelo juntos. Trabalhar com o Luiz tem muito desse tipo de diálogo, em alguns momentos. Eu tento não interferir no que ele escreve, mas aprecio a delicadeza com a qual ele submete a letra a meu escrutínio, e se abre para uma eventual necessidade de reescrever ou não alguma coisa.

Continuei mexendo na gravação dessa música ao longo de vários meses. Tentei tocar a melodia geral com som de piano, em vez do som de wurlitzer original. Eu tinha usado originalmente um timbre bem a la “Supertramp”, daí o nome da guia, como Luiz mencionou. Mas não ficou legal com som de piano, daí retomei o timbre original.  

Quando decidi gravar um disco em Macapá, no Estúdio Zarolho, mostrei para o produtor Alan Flexa a versão caseira que fiz. Ele achou que soava bastante como 14 Bis, o que me deixou bastante feliz. Quando mostrei para Alan, já estávamos no processo de gravação de outras músicas, e eu diariamente ia em seu estúdio para gravarmos tudo lá: guitarra, baixo, bateria, vocais (apenas os teclados que gravei em casa eram mantidos).

Mas, no caso dessa, Alan sugeriu que eu mantivesse a guitarra gravada em casa. Ele achou que, mesmo sendo uma guitarra feita para uma guia, ela soava ótima, e o solo de guitarra não precisaria ser regravado. Ele achava que eu tinha conseguido algo que soava tipo 14 Bis mesmo, como no solo de músicas tipo “Espelho das Águas”. No início do texto, disse que a base da canção foi feita rapidamente, mas esse solo de guitarra deu trabalho para compor. Eu queria que fosse algo memorável, e me dediquei muito para cria-lo. A gravação dele foi mesmo feita em casa, e há algo na performance que fiz que me parece bem apaixonada. Fazia sentido mantê-la.

A bateria da original era uma base em MIDI bem quadradona. Chamamos Forlan Gomes para gravar uma bateria de verdade. Como de costume, ele ouviu a versão demo poucas vezes antes de gravar. A única coisa que deu trabalho foi, já no fim do solo, em um momento que eu pedi a ele para bater no prato de ataque junto com uma nota específica do solo que achei importante ressaltar também na bateria. Isso demandou vários takes para dar certo. Mas, no geral, Forlan gravou algo com a suavidade e a fluidez que eu queria, o resultado ficou fantástico. Depois só precisei voltar ao estúdio para gravar os baixos e as vozes.



Nota do editor:
* De fato acho tremendamente difícil para o letrista capturar o sentimento do parceiro quando envolve uma coisa de teor muito pessoal do qual aquele não tomou parte. Já consegui em raras ocasiões, mas por mais entrosamento, conversa e empatia, há distâncias que podem ser intransponíveis. Quando é assim eu prefiro me afastar dessa linha e propor outra leitura. É claro que o parceiro precisa se identificar com ela, também.  





Supernova SG532 (Música de Rafael Senra e letra de Luiz Henrique Garcia)

Estratosférica luz 

Estandarte do sol

Uma pedra no céu explodiu

 

Por toda América ouvi

Majestade do som

A impávida voz que espalhou




 

20 de dezembro de 2020

McCartney fez a trinca

O lançamento de um disco novo de estúdio de Paul McCartney por si motivaria uma postagem. Não preciso chover no molhado celebrando o talento de um dos maiores cantautores do mundo em atividade. Provavelmente não há paralelo no universo da música popular veiculada pela indústria fonográfica para seu holismo, plenamente registrado neste McCartney III. Como nas duas outras obras dessa agora trilogia, Paul compôs música e letra, cantou (com a exceção de alguns vocalizes de Linda, então sua esposa, no primeiro), arranjou, tocou todos os instrumentos, produziu e fez todo trabalho de engenharia de som (neste contou com alguns auxílios como se vê na ficha técnica), praticamente tudo sozinho. Hoje isso não é particularmente raro ou difícil em si, mas certamente ele é um pioneiro da prática e a excelência com que realizou tal empreitada, agora pela terceira vez, é digna de assombro. E o faz quase aos 80 anos de vida, nesse duro contexto de isolamento motivado pela atual pandemia, com um fôlego impressionante. Sua jovialidade às vezes passa do ponto e o leva a empreitadas tolas - como disse meu parceiro Raul Mariano, a quarentena nos poupou de um provável single com Miley Cyrus ou Taylor Swift. Por outro lado ela ecoa a inesgotável criatividade de quem, entre outras peripécias, junto com os demais Beatles, rompeu a barreira da sala de controle e revolucionou a arte da gravação. Mais notável é que ela se alia a uma maturidade assumida em cabelos brancos (ostentados na contracapa) e experiência de sobra, sinergia que o clima do disco traduz em contrastes que assinalam que inteireza não precisa ser o mesmo que homogeneidade. 

Como já foi ressaltado nas primeiras críticas que saíram, os discos que compõem a trinca comungam, além do modo de sua fatura, a demarcação cronológica de lançamento em anos redondos (1970, 1980, 2020) e momentos difíceis: McCartney na separação dos Beatles, McCartney II no fim de sua banda Wings, e este agora, num contexto de apreensão global, ainda que pessoalmente ele esteja tirando de letra, cercado de familiares e trabalhando confortavelmente em seu próprio estúdio em Sussex, numa temporada que divertidamente ele nomeia com o trocadilho 'rockdown'. É preciso dizer que nesse conforto todo ele encontrou um refúgio seguro, mas fez disso impulso para criar sem a interferência de turnês, ensaios com banda, viagens, atividades de divulgação e outras agendas. Claro que seria plenamente possível ter outros músicos tocando, até mesmo à distância, com a tecnologia disponível hoje em dia, mas claramente ele fez dessa solidão sua própria terapia. Uma felicidade que ele tenha compartilhado com todos nós o resultado. Um tremendo workaholic, Paul teve tempo para esculpir lenta e pacientemente cada gravação, pintar camada após camada, trabalhando como um artífice experimentado que inclusive se permite deixar arestas, rudezas, fazendo desse contraste entre o áspero e o delicado um conceito estético que também aproxima os três álbuns mas neste se afirma soberano, expresso inclusive na capa do disco. O dado com a face no três, em que a leitosa superfície branca contrasta com as negras cavidades em trio, o claro e o escuro, o evidente e o misterioso, o polido e o rude, é a tradução visual de sua sonoridade. Também remete ao piano, à combinação de ébano e marfim que mereceu de Paul uma bela canção. Aliás pode ser em um lustrado tampo de um piano que o dado, em impossível equilíbrio, é refletido. Imagem simples, sintética e eficaz.

Passemos ao som, o que mais importa. Numa discografia vasta e variada como a de McCartney, é ainda mais inevitável situar um disco novo lançado. Para além da trilogia em si, portanto. Só neste milênio Paul lançou, com este, 7 álbuns de estúdio, apenas um deles - um fato único em sua obra - exclusivamente como intérprete, o ótimo Kisses on the bottom (2012). Entre os demais reluz Chaos and creation in the backyard (2005) que está certamente entre os melhores de toda sua carreira após os Beatles. O resto é cheio de altos e baixos, normal para um artista que seguiu preferindo ser prolífico. Mais recentemente, depois do pouco notável New (2013) ele lançou Egypt Station (2018), um dos pontos mais baixos de toda sua discografia, com canções de uma pobreza terrível para os padrões que ele já atingiu, muita auto indulgência e um comercialismo raso de quem inverte as prioridades e coloca a música a serviço da atração de plateias novas e das execuções em turnês em estádios lotados. Em McCartney III Paul se sentiu totalmente livre dessa fórmula, ainda que ao mesmo tempo construa o disco como um exercício de recapitulação a partir de esboços pinçados dos arquivos de seu celular, ou numa excursão praticamente arqueológica que fez no início do processo ao retomar When winter cames, singelo tema folk com jeito de fábula gravado no início dos anos 1990s que consta ter sido mostrado a George Martin, e acabou sendo a última faixa. Assim como a memória opera mesmo, retomando e atualizando os materiais que recupera, quando Paul quer ele filtra muito bem o que está rolando e assimila ao repertório vastíssimo que tem na cabeça. Livre das colaborações infelizes com os ídolos pop de ocasião, ele contribui consigo mesmo, como se estivesse tocando lado a lado com o Paul dos Beatles, o dos Wings, o de diferentes décadas de sua longa carreira solo - Find my way é o exemplar concentrado de como temperar a levada de hit radiofônico com cravo e camadas de guitarras reiteradas (com pios do riff dobrado de And your bird can sing). E aí ele aplica sua burilada capacidade de mesclar cantigas rústicas em que as cordas de aço do violão parecem cortar sutilmente o ar (a instrumental Long tailed winterbird, que volta como vinheta antes da última faixa) com riffs diretos e furiosos em rocks animados e despretensiosos (Slidin', Lavatory Lil, cruzamento retrô abbeyroadiano do humor negro de Maxwell's Silver Hammer com a pegada sacana de Polythene Pam), concentrados românticos dedilhados assobiáveis (The kiss of Venus, Pretty Boys - cujo traço ciclístico e crítico ao consumismo me remeteu a Biker like an icon e Junk), canções de alma camerística (a beatlelesca Seize the day, decalcando o consagrado mote carpe diem e citando levemente o arranjo de cordas de For no one)  excursões mântricas experimentais (Deep deep feeling), mergulhos embalados em soul emborrachado (Deep down), ou reflexivas e confessionais baladas ao piano (Women and wives). Um breve "faixa a faixa" do próprio Paul foi publicado aqui.

As letras merecem destaque, muito melhores do que no disco anterior. Se há alguns costumeiros deslizes pueris, típicos dele, há apreciações maduras sobre ansiedades e montanhas-russas emocionais de nossa época, bem como um apelo à consequência e ao cuidado. Os títulos haviam me chamado a atenção antes de sair o disco e amarram bem o conceito central de contrapor o cenário de apreensão e dificuldade, simbolizado pelo inverno, ao desejo de superá-lo, metaforizado pelo pássaro e representações associadas a voo e deslocamento. Cigarra e formiga, Paul McCartney canta o necessário abrigo para tempos difíceis já intercalado com o assovio que anuncia que dias melhores virão. Suas canções fazem parte dessa trilha.  


* Deixo um agradecimento especial ao meu amigo Guilherme Lentz, com quem tive o prazer de partilhar uma primeira apreciação e trocar ideias pessoalmente sobre o disco, e ao parceiro Thiakov, pela audição comentada compartilhada numa conversa via whatsapp que anulou a distância transatlântica.  

** Paul respondeu muitas questões de fãs - inclusive sobre o disco - na rede social Reddit, aqui

*** Faixas bônus

Bonus Japan Women And Wives ( Studio Outtake

Lavatory Lil ( Studio Outtake

The Kiss Of Venus ( Phone Demo

Slid in’ ( Düsseldorf Jam )

****Um bom artigo que complementa [aqui]

13 de dezembro de 2020

DEIXA ACONTECER

Aproveitando o embalo vou fazer mais uma postagem no estilo "contando as letras". Mais uma das minhas parcerias com o Daniel Guimarães, feita totalmente à distância mas bem antes desse impositivo momento que infla indesejavelmente o apelo aos recursos digitais de comunicação. Foi uma das primeiras que fizemos. No intuito de compensar a falta do contato pessoal trocávamos longas mensagens através da rede. Enquanto ainda buscávamos um entrosamento que certamente veio com o tempo, eu procurava relatar com certa minúcia o que vinha à minha cabeça à medida que ia escrevendo. Tenho aqui algumas "anotações" que vou compartilhar para dar um pouco essa sensação de bastidor, de making of. Expressão que me veio a calhar aqui agora porque além de uma sugestão de que a música tinha sido a princípio sobre um personagem errante, e numa outra versão sobre uma tempestade, ela me soou desde sempre cinematográfica. Relatei assim minhas impressões após o primeiro esboço que encaminhei ao parceiro:

Comecei com esse imperativo, “abra”, e de uma certa forma foi pintando uma ideia de conciliar de algum modo esses temas sugeridos, o errante e a tempestade. E a coisa foi surgindo meio num conceito cinematográfico, filme de faroeste. Ficou uma coisa mais icônica, representando a ruptura com uma situação prévia indesejada. De uma certa forma isso também foi inspirado por uma conversa com a minha filha de 16 hoje sobre a dificuldade dela sair da aula de teatro.



E quando chegou ao final eu tinha que arrumar companhia para o “deixa acontecer” me ocorreu que a ideia era mais um ato de amadurecimento que de rebeldia, saber deixar a mudança acontecer... pensei no lance do samurai. Curiosamente foi uma palavra que eu evitei propositadamente em “Ponto Oriental”, mas aqui acho que cabe, até pelo lance de Sete homens e um destino ser uma versão d’Os sete samurais do Kurosawa. 

Engraçado que certas conciliações aparentemente improváveis, ou aproveitamentos de frases casuais ou até nomes de arquivos, podem acabar dando muito certo. Quanto mais esse tipo de coisa funciona, mais eu tento. A forma é clássica e direta, verso e refrão.
Usei imperativos com a vogal aberta "a" para abrir as estrofes, procurando ainda fazer rimas cruzadas na "cabeça" e na "cauda" das estrofes ímpares e paresinterpolando rimas paralelas, de modo que o esquema é algo como A *BB* C (1-3) ou D (2-4), com uma desobediência na primeira estrofe, porque eu não quis mudar os versos espontâneos que deram a esporada inicial da cavalgada. Igualmente espontâneo foi o "deixa acontecer" do refrão, que é literalmente metanarrativo em relação à confecção da letra - ou seja, meu ouvido me soprou as palavras e eu simplesmente deixei acontecer, sem duvidar dele. Em certas situações a gente precisa ser um pouco menos aferrado, sentir o vento mesmo. A canção no fundo é sobre como lidar com a mudança e tocar em frente.

 

Deixa acontecer (Daniel Guimarães/Luiz H. Garcia)

Abra
Atreva-se a partir
O horizonte em dois
O sol em cruz

Sela
O dorso do alazão
Um raio pela mão
O vento atrás

Alça
O voo do urubu
Abraça o tempo nu
Avista a luz

Vela
A sombra do caubói
Corte que ainda dói
Sem sangrar mais

Ultrapassa os temporais
Deixa acontecer
Na paz sagaz dos samurais
Deixa acontecer  

Deixa acontecer