"O mp3 ganhou mais um inimigo. O cantor canadense Neil Young declarou
que se irrita com o "som da música" na atual era digital, pois acredita
que ela não soa como deveria." Assim começa a matéria de O Globo (segundocaderno@oglobo.com.br) | Agência O Globo – seg, 23 de jan de 2012 (ver toda aqui). Já tinha visto outras em que Neil Young demonstra toda sua irritação, deixando claro que reconhece que há boa música sendo feita hoje, mas que "(...) temos o pior som de todos os tempos. É pior que um disco de 78 (rotações). Onde estão nossos gênios? O que aconteceu?". Resumindo, às custas da compressão que reduz o tamanho dos arquivos para facilitar sua circulação, há grande perda de sua qualidade sonora. Young continua: "Se você é um artista que criou algo e sabe que no master está 100%, mas
o consumidor só recebe 5%, você se sentiria bem? Eu quero destacar isso
para os artistas. É por isso que as pessoas ouvem música de uma forma
diferente hoje. São só as frequências baixas e a batida, pois na
resolução da música você não consegue ouvir mais nada. O calor e a
profundidade dos altos se foram.". Enorme a quantidade de questões que as observações dele suscitam. Uma que me toca muito é de natureza estética, pois em certa medida trata-se de uma ruptura com o padrão de reprodutibilidade técnica da indústria fonográfica. Pode ser que esteja aí a chave para entender o fenômeno recente de revivalismo do vinil, "reauratizado" pelo consumidor que busca um som aprimorado, mais fiel ao que o artista concebeu. Outra é a revelação de um padrão de consumo diferente, próprio de outra sensibilidade e valores culturais. A avidez e a velocidade com que se consome a música popular intensificaram-se a tal ponto que as propriedades materiais do objeto são percebida segundos novas premissas. Nesse momento a virtude está na facilidade com que um "arquivo" pode circular, ser compartilhado e acessado, e não no que garante maior possibilidade de apreensão de sonoridades durante a experiência auditiva. Pode ser que agora o que tenha mais sentido é participar das redes e das sociabilidades advindas da permuta incessante e acelerada, mais do que efetivamente escutar alguma coisa. Nesse admirável ipodiano mundo, a crítica corre o risco de ser reduzida, num eco inadvertido da novilíngua do 1984 de Orwell, a única palavra: curti. Neil Young talvez tenha sido muito generoso e polido em relação à música feita atualmente, ao menos a que circula bastante. Mas não quero soar apocaliptico (e nem integrado), e sim ressaltar as consequencias da emergência dessa tecnologia associada a novas formas de experiência para a paisagem sonora contemporânea. Podemos compartilhar uma quantidade enorme de "arquivos" quando e com quem quisermos, mas trata-se de um gesto qualitativamente diferente de emprestar um disco a um amigo. Podemos carregar no bolso uma imensa discoteca para ouvir quando e onde quisermos, imersos no eu sozinho dos fones de ouvido, mas pode ser que isso reduza a frequencia com que se troca opiniões e são criados significados coletivos sobre as músicas, ou os torne por demais efêmeros, afetando a construção social da memória. Isso leva a questionar os limites do atual modismo de tudo digitalizar para preservar. Muito o que pensar ainda. Certamente sobre tudo isso podemos evocar as palavras já ditas há um certo tempo pelo irritado acima citado: "Não deixe isso te derrubar, são apenas castelos se incendiando".
Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
15 de fevereiro de 2012
Irritando Neil Young
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Bela leitura, meu caro!
ResponderExcluirDo caralho. E, de fato, muito a se pensar: cria-se, por essa visão, uma curiosa dicotomia entre a difusão do produto artístico (que passa a ser, por excelência, um produto industrial; mas que resguarda seu caráter positivo de acessibilidade) e sua apreciação como legítima experiência estética. Posso dizer com segurança que minha geração, por exemplo, em sua maioria desconhece o que seria essa qualidade de reprodução da que fala Young.
Talvez tenhamos uma boa analogia no tal do Google Art Project, que permite uma visita virtual a diversos museus. Até que ponto acessibiliza e até que ponto empobrece a experiência viva da estética? Curioso.