Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

4 de agosto de 2013

Do arco da velha

Li agora um texto do filósofo Vladimir Safatle publicado na Folha, desses que tem aquele título feito sob medida para despertar a polêmica: "Música no Brasil é prisioneira da canção" [completo, aqui]. Não entendi muito não, o que ele quer, dar uma puxada de orelha na "classe ilustrada" brasileira? Dar uma aulinha básica de produção contemporânea erudita? E os exemplos que ele cita, é pra gente ver que ele conhece? Desculpe-me o Safatle, achei isso aí "do arco da velha".
Senão, vejamos... Começa assim

"Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira." Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes.


Ora, o subtítulo do referido texto diz que o "Debate cultural ignora contribuição da produção contemporânea erudita". Não poderia ser mais sintomática a retomada de uma citação que está tão datada que colocá-la sem maiores ponderações é, no mínimo complicado. Se é para falar de nossa contemporaneidade, precisamos rever e ponderar as expressões usadas por Mendes na fala dele. De quem ele estava falando e de quem falamos agora? O que seria hoje a "classe culta brasileira", ou o "intelectual brasileiro". São expressões elitista mais que desgastadas. Não tenho a menor pretensão de resumir aqui décadas de discussão sobre sociologia dos intelectuais. Mas obviamente já se esgotaram as reservas rígidas de gosto ou capital cultural, implodindo com isso qualquer perspectiva de que se possa categorizar indivíduos que constituem coleções heterogêneas dos mesmos como uma "classe" ou "categoria". A seguir o "contemporâneo", essa categoria escorregadia. Não sou, nem de longe, um bom conhecedor da "produção contemporânea erudita" (comprando por um instante a premissa, problemática, de uma classificação que musicológica e culturalmente poderia ser discutida longamente...). Mas quem são os contemporâneos? Podemos tomá-los pelos que estão vivos, respirando e vivendo no mesmo tempo que nós estamos. Ok. Mas também podemos pensar, se tentamos de alguma forma dar inteligibilidade histórica à campos específicos da produção cultural, que contemporâneo é o que ainda não está, definitivamente, incorporado a uma narrativa que o posiciona em um dado contexto, tradição, momento. Não pode evidentemente existir nada fora da História, mas enquanto certos fenômenos se desenrolam estamos ainda a descobrir e tentar definir sua historicidade. Nesse sentido o "contemporâneo" do Safatle me parece já muito bem assentado e suas referências são essas já 'panteonizadas' seja no que ele toma por erudito - Boulez, Berio, Ligeti, Glass - ou popular - Caetano, Chico. Por isso mesmo me parece que não está a falar desse momento, ou da produção de agora. Seria recair num absurdo "presentismo" desconhecer que qualquer um desses compositores possa ser contemporâneo no sentido de por sua criação em diálogo com o que está acontecendo hoje, porém, por outro lado, não vejo também como não considerar o que, na posterioridade desses, ou dos que cita Gilberto Mendes, reconhecer e investigar o contemporâneo. Não há menção no texto a nada produzido por quem quer que seja nos últimos 10 anos. Não quero aqui fazer um juízo primário sobre o valor do novo, apenas entender sob qual material sustentam-se as conclusões oferecidas pelo autor.
A seguir lê-se

"Ele indicava uma estranha ausência no "sistema nacional das artes": a ausência de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas. Mesmo comprar um CD de compositores fundamentais como Brian Ferneyhough, György Ligeti ou de brasileiros como Flô Menezes e Almeida Prado pode ser tarefa impossível. Como se essa produção não existisse e nada tivesse a dizer.
Pode-se dizer que essa situação não é muito diferente em outros países. Mas isto não é verdadeiro. Mesmo que compositores americanos como John Adams e Steve Reich recebam mais encomenda na Europa do que em seu país de origem, é inegável que a música contemporânea tem um lugar no interior do debate e na vida cultural da América do Norte e Europa. Podemos nos perguntar por que, apesar de esforços como o Festival Música Nova, isso não ocorreu entre nós."
O que seria nesse mundo globalizado de deus um "sistema nacional das artes"? De acordo com quem, a Funarte?! Espero que não... Comprar um CD remete a questões de mercado que não se pode jogar fora e colocar o peso nessa suposição de que a produção não ganha sentido entre nós - e ainda por cima botar isso na conta da canção. O que seria esse debate e vida cultural agora, com foros tão diversos e conversas tão fragmentadas. Onde seria possível localizar "a" vida cultural aqui ou em qualquer lugar? Será nos círculos fechados, nas mesas redondas das universidades, nas colunas da Folha? Vale o buteco da esquina?

Por fim, como falar, com conhecimento de causa, que a canção aprisiona? A canção brasileira (naquilo que se dispõe a se chamar assim sem desconhecer a natureza nômade da música, como queria Said, e a disposição transcultural da música popular, especialmente) liberta! Seria preciso gastar mais outro tanto de linhas para dizer o que basta ouvir? Querendo ou não, na música, foi a canção popular a principal expressão de como nos vemos e somos vistos no mundo, e o que fizeram e fazem vários dos nossos cancionistas (não precisa fazer a lista porque eles fazem parte do nosso debate contemporâneo rsrsrs) só pode ser descrito como transgressão. Sim, escreve-se teses, dissertações, tratados e artigos acadêmicos sobre a canção. Porque mudaram os intelectuais - sejam quem forem, hoje - e porque a canção é um objeto pra lá de estimulante, múltiplo e relevante. Quem seriam, me pergunto, os artífices da tal "ideologia cultural nacional"? Que país será esse incapaz de "ver" uma música não popular? Não vou dar a pecha de crítica conservadora aqui, me parece é que é crítica ruim, puxão de orelha uspiano que dá muita preguiça. O que ouviu ou não ouviu um compositor de canções no Brasil? E, por consequência, seu ouvinte? E ademais, se vamos falar de intelectuais nas universidades, nos cursos de música, não vamos encontrar lá muitos, zelosamente, "aplicando" seus alunos em Boulez, em Ligeti? Muito mais do que em Chico, Milton, Caetano, para não falar nos contemporâneos que provavelmente nem sequer tem seus nomes mencionados? E qual música não seria, em alguma medida, a eleição de uma forma, de uma convenção usada para dar inteligibilidade aos sons? A argumentação poderia continuar mas a verdade é que já estou me sentindo prisioneiro aqui na frente da tela, vou ali ouvir uma canção do arco da velha.

5 comentários:

  1. Coisa de quem quer defender um nicho. E desdenhar do "popular" é sempre sinal de "elegância", como sabemos.Leonardo Davino

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  2. esse povo leitor de adorno e escutador de webern dá nisso... por: Valdeci Silva

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  3. cara, sei lá, difícil localizar o que seria a "classe intelectual brasileira". eu concordo com ele sobre o peso que a canção popular tem pela maneira como ela se consolidou vinculada à construção do sentido de identidade que a nação precisou. discordo que seja uma prisão, como ele enfatizou no título, mas fiquei aqui pensando nesse trecho: "Talvez seja o caso de se perguntar se a ideologia cultural nacional não precisaria alimentar a visão de que música é questão de expressividade, processo produtivo que brota quase "naturalmente". Linguagem prisioneira de uma gramática dos sentimentos que poderia ser codificada no tempo de uma canção." Ou seja, a canção popular mediatizada é que de todo modo sufoca a chamada produção musical erudita que tem pouca circulação porque é direcionada para um público específico. Esse ranço está muito presente nos centro acadêmicos dos cursos de licenciatura em música e em quem vive de música erudita. Eu desconheço todos os compositores por ele citados. É ignorância, desinteresse ou porque esse tipo de produção musical tem espaços mínimos de circulação e difusão? O problema talvez seja também o de linguagem. Observei que até os argumentos são tão codificados para um leitor de adorno, como citou o valdeci, do que quem lê um hermano vianna. por: Alberto Júnior

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  4. Renato Ruas Pinto: Concordo com o colega Leonardo pois o cabra está defendendo um nicho. Mas não vejo como o sucesso ou a predominância de um estilo ou outro vá interferir em um nicho tão específico. Cada estilo no seu galho. Tem lugar e público pra tudo. Não tem gente que assiste disputa de curling na TV? Pois é. Um nicho também.

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  5. Pedro Marra: Li aqui agora, e por um lado me pareceu (o texto em discussão, do filósofo uspiano) o típico caso de argumento que não cabe no número de linhas a ele destinada pelo jornal. O que não deixa de ser uma medida de relevância da discussão, né? Por outro lado lado, me incomoda o título. Me parece complicado dizer que uma determinada forma cultural aprisiona um público, por sua especificidade material (esta me parece ter apenas o poder de nos afetar - só isso, o que já é bastante coisa). Seria como dizer: leio livros porque não frequento exposições de artes visuais... ou para ficar no mesmo campo artístico, vejo Globo, porque não assisto Record. O que efetivamente as transforma em prisão, me parece, são os usos e formas de distribuição e circulação que delas se fazem. Não seria mais interessante - já que se propõe a fazer este tipo de discussão, de caráter aparentemente favorável a uma diversificação dos gostos e sensibilidades, mas na verdade implicitamente hierarquizante - se perguntar: "Por que permanecemos presos à canção?" Enfim, discute-se as obras, mas não se toca no tema da formação dos sentidos. Vai entender...

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