Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

20 de agosto de 2013

Tropicar ou não tropicar, eis a questão... ou não (Na estante especial)


Pena que não se produzam aqui mais publicações como essa organizada por Carlos Basualdo, em edição primorosa da Cosac Naify, de grande apuro visual e combinando ensaios recentes, textos de época, documentos, obras e reproduções gráficas, num conjunto que agrada e ao mesmo tempo é de grande utilidade para o pesquisador interessado pelo tema. Sua única falha, de certo modo sintomática, é a ausência de músicos em qualquer dos textos analíticos ou balanços de época, que não sejam os próprios partícipes - e talvez mesmo aí um foco demasiado centrado em Caetano e Gil, vício compartilhado por quase tudo que se produz sobre o lado musical do tropicalismo. Daí que me pareceu uma ótima ideia uma postagem especial da seção "Na estante", fugindo um pouco da forma enquadrada da resenha e apresentando o livro junto com essa arguta e sintética análise do meu parceiro Pablo Castro para um trecho de um dos artigos do mesmo. Devorem sem moderação: 


“Talvez os softwares livres do ministro Gilberto Gil criem um ciberespaço onde o espírito tropicalista se reproduza em inteligências artificiais e virtuais, na periferia de um novo império americano que o rock amado com tanto custo por determinados jovens baianos dos anos 60 nem sequer podia imaginar”. Hermano Viana. Políticas da Tropicália. in: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 142.

Com essa frase lapidar é possível antever em que se transformou o conceito tropicalista, ou pelo menos o seu uso na atual guerra ideológica em torno de cultura, política e ativismo: ao invés de proporcionar uma janela antropofágica para o mundo, em que o enlatado gringo era fagocitado e reelaborado por um espírito brasileiro não subalterno, dedicado a traçar, a partir de um mosaico de referências variadas e mesmo díspares, uma salada de possibilidades estéticas emancipatórias, o que enxergamos hoje é um ataque a toda e qualquer altivez autônoma do espírito brasileiro em nome de uma panacéia do "roque amado ", envelhecido , indiferenciado e completamente desvinculado de qualquer raiz cultural -musical brasileira, uma espécie de "software livre" musical que é o único denominador comum de gerações e gerações que não conheceram a riquíssima música brasileira pré e mesmo pós-tropicalista, por força das contínuas investidas imperialistas contra a música nacional : primeiro, sucatearam a indústria fonográfica brasileira de modo a incorporá-la às majors ; em seguida, extinguiram a estreita brecha por onde a música brasileira não totalmente dominada pelo processo industrial era alçada a multidões através da Tv e do rádio , instituindo a maior "cadeia nacional " de Tv de que se tem notícia no mundo ocidental, e fortalecendo o jabá no sistema radiofônico, sufocando as expressões simbólicas locais e instituindo um filtro apertado , controlado por pouquíssimas mãos, sobre o que era alçado a nível nacional, desfazendo os laços entre a música brasileira e seu povo, descaracterizando a formação musical do ouvinte ; e, por fim, nos últimos anos , aparentemente através da participação política do próprio Gilberto Gil enquanto ministro da Cultura, se propulsionaram investidas nebulosas contra o artista e o autor brasileiro, o que o crescimento da rede FDE, agigantada nos anos Gil, deixa evidente, alimentada com dinheiro público de editais e estatais, com tentáculos na grande mídia , em vários partidos e nos primeiros escalões das secretarias de cultura e do Minc.

Também se destaque o papel de uma certa intelectualidade acadêmica com relações no mínimo suspeitas com "gestores culturais " , atuando nos dois lados da equação : como legitimadores de certos "processos" e beneficiários de determinados investimentos culturais , alguns públicos e outros de origem obscura.

Assim, a premissa antropofágica tropicalista se converteu em salvo-conduto contra toda e qualquer crítica cultural que problematize a progressiva homogeneização e rebaixamento das expressões musicais no Brasil ; um relativismo absolutista que , por meio do nivelamento por baixo de tábula rasa, iguala tudo a qualquer coisa, e , ao contrário de revelar a potência política da música, em seu conteúdo imanente, faz dela um mero pretexto para objetivos político-econômicos extremamente perversos do ponto vista do auto-reconhecimento de um povo e sua soberania artística, intelectual e cultural. Pablo Castro

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