Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

16 de março de 2014

Pequena passagem pela música popular portuguesa

Navegando em busca de outras terras, outros mares, esbarro com esse texto sobre o Festival da Canção português, realizado pela RTP, sobre o qual não conhecia rigorosamente nada. Lembro-me de encontrar alguns comentários e referências sobre o Festival de San Remo, em pesquisas sobre música popular e mais diretamente nos textos de quem tratava dos festivais brasileiros. Não sana plenamente a lacuna mas me parece uma introdução válida. Escolhi alguns trechos, imagens e canções, mas vale ler todo E antes do adeus - Texto de David Ferreira [completo, aqui

"A imagem é conhecida: em Fevereiro ou Março, as ruas vazias e os cafés cheios de gente para ver em televisores pequenos a grande noite, a preto e branco. E não era por haver só a RTP — era um dia único, marcavam-se jantares para ver e discutir. Havia quem fizesse a sua votação. Alguns incompatibilizavam-se por ver de forma diferente as decisões do júri nacional, repartido pelas capitais de distrito. As crianças decoravam depressa as canções — e imaginavam que durante os 12 meses seguintes nada interessava mais aos adultos do que ouvi-las a repetir as principais. Até vir um novo festival." (...)




"Nunca como nos primeiros 11 anos da prova, os que antecederam o 25 de Abril, o festival representou uma parte tão grande da história da música popular portuguesa. Porque havia então muito menos espectáculos, claro — nem a censura facilitava a sua realização. A perda de protagonismo do festival sobretudo a partir de 1980 é prova da animação do meio a partir dessa altura." (...) "Mas, tratando-se de um concurso de canções — como tantas vezes se repetiu, mesmo que tenha havido casos em que a interpretação e até a orquestração foram decisivas —, importa falar aqui dos autores e dos compositores." (...) 

"A polémica que se segue é a mais dura. Os vencedores são identificados com o antigamente, se não mesmo com o Regime. Sérgio Borges — ainda por cima sem a compensação de uma presença na Eurovisão — torna-se persona non grata para boa parte da imprensa. O país está dividido, a esquerda domina como fazedora de opinião, prevalece a ideia de que tudo é combate político e, à falta de alternativa enquanto dura o Estado Novo, o festival é uma óptima arena para afrontamentos. " (...)

Para o festival de 1973, Fernando Tordo, concorrente vencido ao longo de todos os quatro anos anteriores, mas que chegara a brilhar em 1971 (3.º lugar) com uma música sua e letra de Ary, Cavalo à Solta, traz agora uma canção inesperada: mesmo que cante que “toureamos ombro a ombro as feras”, o tom é brincalhão — não há provocações evidentes nem epopeia. Em vez disso, o humor. (...) E toda esta tourada deu à Tourada a melhor das vitórias: uma estocada funda num meio conservador — que melhor símbolo se podia arranjar do Regime?" (...)


"E Depois do Adeus — apesar da concorrência de José Cid, que a solo ou com os Green Windows colocou três canções (que fariam êxito) nos cinco primeiros lugares — garantiu finalmente em 1974 a vitória que Paulo Carvalho, reconhecido por muitos como uma das melhores vozes (ou mesmo a melhor), já merecia há muito. Mas o passo seguinte da cantiga não seria a Eurovisão: antes — e mais importante — o trecho virava uma das senhas dos oficiais revoltosos na madrugada de 25 de Abril. E depois... lá fora nenhum artista português construiu uma carreira a partir do festival. Fizeram-se versões em línguas estrangeiras de várias cantigas. Mas, ao contrário da Tourada que o Tordo cantou, o festival nunca deu “lucros aos milhões”. Mas era prestigiante e as editoras mais activas queriam ganhar. Se de aposta a longo prazo na carreira dos artistas se tratou, não foi bem apostado: naqueles primeiros 11 anos, ou se apresentaram consagrados a quem a derrota embaraçou ou novos que passado pouco tempo mudavam de editora."




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