Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

26 de março de 2014

Música popular e memória I

Nesta data querida, como outra qualquer poderia ser, o Massa Crítica MPB completa 30 mil acessos. Como já escrevi em tantas ocasiões, sei que isso na internet não é nem de longe alguma coisa. Mas para mim, que edito o blog quando posso (e, às vezes, quando não posso) vale bastante saber que estou produzindo e eventualmente difundindo material sobre algo que ocupa lugar central no meu cotidiano e simultaneamente representa um patrimônio cultural digno de ser apropriado pelo maior número de pessoas: a música popular. É uma atividade extracurricular, digamos assim, e ainda estudo meios de compatibilizá-la melhor com a minha rotina acadêmica. Há tempos estudo formas de movimentar mais o blog e os planos continuam surgindo, e também sendo adiados até segunda ordem, mas finalmente ontem me apareceu um texto que trouxe à tona uma ideia que andava meio afogada. 
Estreia hoje a série "Música popular e memória", em que autores convidados,das mais diversas formações e estilos, abordarão periodicamente em textos personalíssimos um tema que nos afeta de maneira indiscutível, inapelável. 
Para o primeiro prato do banquete que espero oferecer por meio dos ilustríssimos que por aqui passarão, só poderia chamar alguém afeito à culinária das letras, um historiador com vocação para o argumento, até recentemente colunista do site BHaz e atualmente "gerente" (junto com o colega historiador Matheus Machado) do blog O Mexidão [acesse aqui], com textos de opinião, ensaios, sátiras, enfim o nome já diz tudo. Admiro a escrita do Pedro desde os tempos em que trabalhamos juntos num projeto de pesquisa na FAFICH, anos atrás. Sem mais, com vocês...

Música popular e memória I, por Pedro Munhoz 

Meu avô, um comunista nascido em Santos, filho de espanhóis, com traços deveras anarcóides, vive até hoje, mesmo depois de devidamente morto, a me matar de saudades. O mau humor do velho não permitia a ele assumir que gostava de muitas músicas (especialmente as americanas), embora eu saiba hoje, sem muito de sua ajuda, que ele era, além de garçom, comunista e portador de um mau-humor interessante (que eu gosto de pensar que herdei), um bom trumpetista.

Eu tentei a sorte com o saxofone no finzinho de minha adolescência. Não funcionou. Meus pais me compraram o instrumento para que eu abandonasse o cigarro. A senha deles era o fascínio que eu tinha pelo sax, instrumento muito parecido com a voz humana e que, no entanto, nada diz de inteligível: ele geme, e no seu gemer, entendemos suas querências, sem, paradoxalmente, entendê-las.

Dei meu sax de presente de casamento para o Flavio Pimenta e, até hoje, espero ter a oportunidade de vê-lo fazendo do meu Yamaha melhor uso do que eu.

Fato é que decidi continuar fumando como uma chaminé e, por conta disso, fui desistindo do sax. E decidi continuar ouvindo jazz, principalmente porque eu preciso de saxofones e trumpetes berrando no meu ouvido enquanto eu tento pensar,

Hoje eu ouvi essa música. Já tinha ouvido essa música antes, mas pelo simples fato de ela se chamar "Valsa do avô", me lembrei do velho Olympio. Lembrei das revistas anarquistas que ele me cedia às escondidas de meu pai, seu filho, um reacionário de bom coração. Lembrei-me de sua alegria quando, depois de deixar o Colégio Militar, passei a beber no bar onde ele atendia e, assim acabei o conhecendo melhor. Lembrei-me, em suma, da minha vida, da minha formação torta e do papel crucial que meu avô desempenhou nessa quase missão.

Sou grato a ele. Por isso, posto essa música, para a qual ele iria torcer o nariz, Mas é uma linda música de qualquer forma.


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Me permito aqui um rápido acréscimo, pois foi irresistível a lembrança (!) de um tema que anda dando suas voltas pela minha cabeça nos últimos tempos - e aliás sempre que resolvo ouvir o disco em que figura essa gravação, que é Vô Alfredo (Guinga/Aldir Blanc), na versão instrumental de Cine Baronesa.

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