A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre
de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a
indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio.
Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os
cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do
conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz — lamenta.
Entendo que quando ela diz isso os ouvidos dela estejam por demais
voltados para os veículos tradicionais, rádio, tv, e o mainstream da
indústria fonográfica. Se cabe ponderar que a MPB feita atualmente não
se resume ao que ressaltam esses meios, de outro lado é uma fala
sintomática que corrobora tantas outras na detecção dessa quebra da
correia de transmissão que um dia ligou o que de mais inventivo era
realizado em nossa música popular a um público amplo, que acessa esses
veículos. Precisamos sim reconstruir esses vasos comunicantes entre o
manancial de composições de altíssimo nível e o ouvinte de música
popular para além de pequenos círculos.
Ainda
não ouvi o disco novo dela todo, e por mais que goste da Salmaso e seja grande
admirador tanto do Guinga quando do PC Pinheiro ainda é muito cedo pra
dizer que importância tem
ou não. Tem outra coisa, por experiência própria sei como
lamentavelmente jornalistas e editores são bem capazes de pinçar certas
coisas numa fala bem mais contextualizada e apresentá-las de modo que
venda e repercuta, independente de serem a expressão correta do que a
pessoa falou. Enfim, continuo achando que ela abordou o cenário maior, o
mainstream mesmo, mas sendo assim espero que ela se manifeste para
deixar mais claro o que disse. Com as redes sociais é possível ir além
da superficialidade desses jornais de sempre.
Enquanto
isso, não seria
desvario sonhar que essa fala da Mônica seja retrucada com ofertas e
sugestões que a animem a fruir com um pouco mais de delonga e paciência o
que anda tocando nos eldorados subterrâneos digitais. Me parece que nas
entrelinhas fica visível que ela não tem lá grande familiaridade com o
meio em questão. Eu diria que, a essa altura, se quiser ser uma grande
intérprete da música brasileira de hoje - e ela pode sê-lo - ela terá
que se familiarizar ou buscar auxílio para tanto. Sem romantismo algum
vamos ter que considerar que "garimpar" repertório é algo que mudou de
figura com tantas plataformas eletrônicas que permitem que excelentes
compositores possam, passando ao largo da lógica carcomida da indústria
do disco, lançar ao léu e ao mar digital seus trabalhos para deleite dos
argonautas dos oceanos internéticos. Ou senão, ainda é possível viajar, por o pé na estrada, procurar as pessoas, sentar e ouvir. Os intérpretes podem e devem ser aventureiros, arqueólogos do eldorado subterrâneo da canção a descobrir que a pobre MPB é rica de marré deci.
O debate desencadeado pela entrevista da Mônica Salmaso tem rendido até mais do que era provável, e pensei que seria válido ir compilando aqui algumas das principais observações e posições que vão aparecendo, e que irão sendo somadas pelos comentários que os leitores começam a deixar no blog. Muitas sublinham questões para as quais não atentei ou eventualmente trazem pontos de vista diversos do meu. Como em outras ocasiões, considero o blog uma forma de agrupar material documental e dar espaço à troca de ideias. Começo com trechos de um texto que o violonista, compositor, intérprete e arranjador Sérgio Santos [quem quiser pode conhecer aqui seus brilhantes trabalhos] publicou no facebook [completo, aqui], que ele gentilmente me autorizou a publicar, pelo que agradeço muito. Se ele foi interpelado sobre o assunto é porque, além de seu reconhecido mérito como músico, mostra-se um comentarista arguto, que realiza uma crítica cultural de muita propriedade, que percebo ser uma referência para quem atua e pensa na música popular brasileira.
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Sérgio Santos:
"A entrevista de Mônica Salmaso essa semana no O Globo tem gerado uma série de posts e comentários aqui. Fui citado em vários, e por isso, além de ver importância no assunto, me sinto confortável para comentá-lo. Conheço Mônica desde a época dessa foto. Pelos meus cabelos pretos dá pra ver que tem tempo. Sei que ela ama o que eu faço, assim como eu amo o que ela faz. Mas ela nunca me gravou em seus discos. E isso nunca me aborreceu ou frustrou minimamente, porque sei como ela raciocina em seus trabalhos, sei como ela pensa a música. [...] Em primeiríssimo lugar, é preciso que se diga que o fato principal da entrevista, o assunto que a gerou, é o lançamento de um trabalho magnífico. Não se trata de Guinga e de Paulinho isoladamente, mas de uma obra conjunta que estaria (por razões inúmeras que não se cabe discutir) irremediavelmente condenada ao desconhecimento, ao limbo musical eterno, caso Mônica quando a descobriu não tivesse batalhado por lhe trazer à luz. Isso é um fato, não cabe discussão. Tive o privilégio de conhecer a totalidade dessa obra há muitos anos (das gravações da Mônica só conheço as 4 que ela publicou), e não tenho a menor dúvida de que essa obra dos dois compositores é DAS MAIS IMPORTANTES E FUNDAMENTAIS DA MÚSICA BRASILEIRA RECENTE!!! Ela faz parte do que melhor produzimos em música popular!!! Esse é o fato principal!!!! E parece que ninguém se ateve a ele suficientemente, antes de criticar a cantora que a desenterrou. Acaso alguém que concluiu da entrevista de Mônica que ela desconhece a melhor música que fazemos, já ouviu essa obra? Não uma música ou outra, mas essa obra? Duvido muitíssimo que a maioria a conheça, já que ela não era acessível!! Aí temos uma cantora que descobre esse repertório oculto, que se move até ele, que enfrenta os não poucos meandros que envolvem gravá-la, que a torna acessível, e essa mesma cantora é criticada por… desconhecer a melhor música brasileira!!! Ainda que ela tivesse sido infeliz na sua declaração, E NÃO FOI, acaso não seria esse assunto principal que a materia traz, relevante o suficiente para ilustrar o fato de que trata-se de alguém que suou e muito a camisa, exatamente para mostrar a melhor música que produzimos???? Não estaria suficientemente claro, então, a qual música Mônica se refere??
Ah, muitos dirão, mas é fácil graver Guinga e PCP, que já estão estabelecidos! Queria vê-la gravando artistas realmente novos, pouco conhecidos! Há até quem tenha feito listas deles, que deveriam ter sido citados na entrevista, para mostrar a Mônica que ela desconhece tanta novidade, que está presa ao passado, etc. E aí, dá-lhe citações e listas, e em muitas delas lá estava eu incluído! Perdão mas NUNCA considerei a criatividade uma questão geracional. Fazer música criativamente não é uma atribuição exclusiva para jovens nem para velhos. Nem para iniciantes nem para consagrados. Há setentões consagrados fazendo discos maravilhosos recentemente. Assim como uma pilha de discos lindos que ouço SEMPRE de um monte de iniciantes talentosíssimos, todos desconhecidos do grande público (não me crucifiquem por não citá-los!!). E daí? Da mesma forma há um monte de discos de artistas iniciantes sofríveis, POBRES de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. Assim como também fazem um monte de consagrados!! Repito: e daí? O universo que Mônica se insere, não distingue geração entre os criadores!!! Ah, dirão, mas ela deveria ter dito que essa música fantástica existe! Perdão, mas realizar vale menos que falar da existência?? Tenho certeza que a realização de um trabalho como o que ela agora lança, fala muito mais e vai favorecer muito mais a minha música e a música de quem esteve citado em tantas listas, do que se ela tivesse desfiado um rosário de citações.
O principal a se ver nessa polêmica é reconhecer que a música brasileira não poderia passar incólume a anos e anos de bombardeamento constante de lixo descartável. Isso não pode ter acontecido sistematicamente sem deixar marcas no comportamento do público, na sua capacidade de discernimento, na nossa forma de olhar para a nossa história cultural e musical, NA NOSSA CRIAÇÃO!!! Edu Lobo tinha 17 anos quando fez Ponteio. Por ele ser um gênio? Também! Mas por viver em um ambiente cultural com as referências necessárias para realizar o que realizou. É preciso uma miopia grave para não entender que essas referências, não apenas na música, mas na cultura em geral, não apenas no Brasil, mas no mundo, empobreceram sistematicamente. E é isso que faz com que todos que pensamos criativamente nos sintamos estranhos no ninho!! E essa falta de referências culturais, que foram substituídas pelo marketing, pelo peso da mídia e pelo lixo industrial, pesaram negativamente para o geral da criação artística no mundo todo, em todas as artes!! É a esse empobrecimento que Mônica se referiu. E ISSO NÃO MUDA PELO FATO DE HAVER UMA LEGIÃO OCULTA DE SOBREVIVENTES DESSE DILÚVIO DE MEDIOCRIDADE!!! Legião essa que luto dia após dia para fazer parte dela. E é preciso se ter muito claro que a chamada música independente, está apinhada, repleta, entupida, dessa mesma pobreza criativa que não é exclusividade do “mainstream”. Ela se espalha exatamente pela capacidade de divulgação e pelo espaço desproporcional que ocupa. Crer que a "independência" e a onipotência da internet garante a isenção estética, na minha modesta opinião é um grave erro, e bastante generalizado.
Fiz um post há alguns dias dizendo dessa mesma coisa, do meu cansaço e do desgaste que é enfrentar essa realidade POBRE diariamente!! Alguém acha rico o contexto que nos inserimos? Alguém acha instigante se mover no sistema geral desse mundinho ridículo de editais aos quais temos que nos submeter? Alguém é capaz de dizer que há riqueza nas possibilidades a que nossa profissão foi relegada? Principalmente, alguém é capaz de achar que isso não influencia esteticamente naquilo que se cria?? Nesse post, curiosamente ninguém me criticou. Pelo contrário! Talvez o tenham feito com Mônica pelo lugar que ela vem ocupando, e ocupa com a maior das justiças. De mim pelo menos não poderão dizer que sou “divo”, que estou na mídia, etc. Espero que não, que me rebatam com argumentos!! Pra terminar, tenho a maior das certezas de que TODOS os envolvidos nessa discussão JOGAM EXATAMENTE NO MESMO TIME!!! Talvez seja oportuno calibrar melhor a mira!!!"