Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Mostrando postagens com marcador Tropicália. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Tropicália. Mostrar todas as postagens

2 de julho de 2014

Em terra de Macalé

Por meio de um instigante relato do amigo cantautor ativíssimo na cena belorizontina Luiz Gabriel Lopes fiquei sabendo da exposição Macalândia na sede do Itaú Cultural, em São Paulo. Na impossibilidade de conferi-la in loco e na iminência de seu encerramento, recolhi aqui algum material para dar uma amostra e quem sabe motivar alguns leitores que são/estão na terra da garoa a conferi-la.
Do site:
"Por meio da série Ocupação, o Itaú Cultural mergulha na vida, na obra e no processo criativo de artistas contemporâneos ligados a diversas áreas de expressão, homenageando e destacando a importância de suas trajetórias. E é no universo – lírico, lúdico, épico, político – do músico Jards Macalé que o programa faz o seu 18º mergulho. Além de ocupar a sede do instituto com uma exposição sobre o instrumentista, compositor e intérprete carioca, o projeto se estende para a internet (...)" [confira, aqui]

 
Do catálogo: Versão digital [confira, aqui]

Um breve relato: no site Follow the Collors, aqui


6 de dezembro de 2013

Na estante (ou não)

Enquanto principio aqui, ainda que em marcha lenta até que as férias cheguem, a leitura de  Brutalidade jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009), escrito por Christopher Dunn, professor da Tulane University, em Nova Orleans, acabei reencontrando na internet esse material em profusão derivado do trabalho de Ana de Oliveira, pesquisadora responsável pelo site Tropicália e pelo livro-objeto Tropicalia ou Panis et Circencis, o qual confesso, não fiz mais que passar os olhos. O site, visualmente exuberante e com textos didáticos, introdutórios, parece cumprir bem a função de apresentar bem o cenário e as principais figuras associadas ao movimento, além de alguns de seus desdobramentos, nesse caso talvez recaindo numa leitura que está por demais canonizada e que exagera a proporção dos efeitos e dos rastros tropicalistas, certamente influenciada pela consagração a posteriori que recebeu, inclusive após o regurgito realizado em terras gringas na esteira da louvação de Byrne a Tom Zé e da babação de Cobain pelos Mutantes. Enfim, como há muito material acredito que se posso inclusive ir bem além das leituras que o site oferece, o que é bem interessante. Já que estou reunindo algum material sobre o tropicalismo por aqui, ocorreu-me acrescentar edições do ótimo programa de tv fechada O som do vinil, comandado por Charles Gavin, sobre os discos Tropicália e Mutantes e seus cometas no país dos Baurets. Desbundem-se.











- See more at: http://tropicalia.com.br/livro/#close

20 de agosto de 2013

Tropicar ou não tropicar, eis a questão... ou não (Na estante especial)


Pena que não se produzam aqui mais publicações como essa organizada por Carlos Basualdo, em edição primorosa da Cosac Naify, de grande apuro visual e combinando ensaios recentes, textos de época, documentos, obras e reproduções gráficas, num conjunto que agrada e ao mesmo tempo é de grande utilidade para o pesquisador interessado pelo tema. Sua única falha, de certo modo sintomática, é a ausência de músicos em qualquer dos textos analíticos ou balanços de época, que não sejam os próprios partícipes - e talvez mesmo aí um foco demasiado centrado em Caetano e Gil, vício compartilhado por quase tudo que se produz sobre o lado musical do tropicalismo. Daí que me pareceu uma ótima ideia uma postagem especial da seção "Na estante", fugindo um pouco da forma enquadrada da resenha e apresentando o livro junto com essa arguta e sintética análise do meu parceiro Pablo Castro para um trecho de um dos artigos do mesmo. Devorem sem moderação: 


“Talvez os softwares livres do ministro Gilberto Gil criem um ciberespaço onde o espírito tropicalista se reproduza em inteligências artificiais e virtuais, na periferia de um novo império americano que o rock amado com tanto custo por determinados jovens baianos dos anos 60 nem sequer podia imaginar”. Hermano Viana. Políticas da Tropicália. in: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 142.

Com essa frase lapidar é possível antever em que se transformou o conceito tropicalista, ou pelo menos o seu uso na atual guerra ideológica em torno de cultura, política e ativismo: ao invés de proporcionar uma janela antropofágica para o mundo, em que o enlatado gringo era fagocitado e reelaborado por um espírito brasileiro não subalterno, dedicado a traçar, a partir de um mosaico de referências variadas e mesmo díspares, uma salada de possibilidades estéticas emancipatórias, o que enxergamos hoje é um ataque a toda e qualquer altivez autônoma do espírito brasileiro em nome de uma panacéia do "roque amado ", envelhecido , indiferenciado e completamente desvinculado de qualquer raiz cultural -musical brasileira, uma espécie de "software livre" musical que é o único denominador comum de gerações e gerações que não conheceram a riquíssima música brasileira pré e mesmo pós-tropicalista, por força das contínuas investidas imperialistas contra a música nacional : primeiro, sucatearam a indústria fonográfica brasileira de modo a incorporá-la às majors ; em seguida, extinguiram a estreita brecha por onde a música brasileira não totalmente dominada pelo processo industrial era alçada a multidões através da Tv e do rádio , instituindo a maior "cadeia nacional " de Tv de que se tem notícia no mundo ocidental, e fortalecendo o jabá no sistema radiofônico, sufocando as expressões simbólicas locais e instituindo um filtro apertado , controlado por pouquíssimas mãos, sobre o que era alçado a nível nacional, desfazendo os laços entre a música brasileira e seu povo, descaracterizando a formação musical do ouvinte ; e, por fim, nos últimos anos , aparentemente através da participação política do próprio Gilberto Gil enquanto ministro da Cultura, se propulsionaram investidas nebulosas contra o artista e o autor brasileiro, o que o crescimento da rede FDE, agigantada nos anos Gil, deixa evidente, alimentada com dinheiro público de editais e estatais, com tentáculos na grande mídia , em vários partidos e nos primeiros escalões das secretarias de cultura e do Minc.

Também se destaque o papel de uma certa intelectualidade acadêmica com relações no mínimo suspeitas com "gestores culturais " , atuando nos dois lados da equação : como legitimadores de certos "processos" e beneficiários de determinados investimentos culturais , alguns públicos e outros de origem obscura.

Assim, a premissa antropofágica tropicalista se converteu em salvo-conduto contra toda e qualquer crítica cultural que problematize a progressiva homogeneização e rebaixamento das expressões musicais no Brasil ; um relativismo absolutista que , por meio do nivelamento por baixo de tábula rasa, iguala tudo a qualquer coisa, e , ao contrário de revelar a potência política da música, em seu conteúdo imanente, faz dela um mero pretexto para objetivos político-econômicos extremamente perversos do ponto vista do auto-reconhecimento de um povo e sua soberania artística, intelectual e cultural. Pablo Castro

5 de abril de 2012

Uma nota para Santuza Cambraia Naves

A nota triste de ontem foi o falecimento de Santuza Cambraia Naves, pesquisadora pioneira e importante referência nos estudos sobre música popular brasileira. Para não ficar o "Triste som do silêncio" (RHBN), pensei nessa pequena nota de homenagem, certo de que muitos acordes ainda se farão no diálogo entre as pesquisas que virão e a obra dela, trilha que atravessa  palavras/sonoridades-chave para entender a canção e o Brasil. Não farei balanço exaustivo, que outros certamente poderão fazer melhor, mas senti tocar essa "notinha", aqui do lugar de quem pode notar a contribuição intelectual e o alcance do trabalho de Santuza. Faço apenas esse registro pessoal, sem maiores pretenções, modesto tributo. Foi durante o mestrado o primeiro contato, lendo O violão azul : modernismo e música popular (fruto da Tese dela), que posso dizer que ainda é o que mais "soa" para mim. Na dissertação as marcas desse contato ficaram em notas e passagens como a que contrasta tropicalismo e canção de protesto utilizando o conceito "estética do excesso", que me induziu a pensar numa "estética da escassez". A nota credita:
A expressão “estética do excesso” é usada por NAVES para ressaltar a capacidade inclusiva da cultura brasileira, que ela destaca no modernismo de 22 e no movimento tropicalista. NAVES, Santuza Cambraia. op. cit., p. 219.
Vinha (e continuo) refletindo muito na encruzilhada entre ruptura e tradição, procedimentos de mistura, hibridação, e lá estava a Santuza discutindo o contraste entre engenheiro e bricoleur, contenção e excesso (vale ler esse artigo), que me fez, junto com outras coisas, pensar um bocado, me sentir provocado. Daí saiu, muito apoiado no Garcia Canclini, a ideia de que a crítica poderia ter instalado um "paradigma antropofágico" na cultura brasileira, descartando outras formas de hibridação (como eu propunha tratar o caso do Clube da Esquina). Ali foi só uma especulação (que me rendeu bons comentários da banca rsrsrs), mas que ilustra bem como é valioso e estimulante para um pesquisador iniciante debater ideias de um trabalho tão consistente. Acabou que por essa picada aberta só pude enveredar no doutorado, aprofundando mais o diálogo com a antropologia, mas confesso que não vejo nem de longe como assunto encerrado. Muita reflexão e pesquisa ainda a ser feita, por muita gente, e com certeza a contribuição de Santuza vai se fazer presente. Porque além de livros e artigos relevantes tratando de compositores como Caetano Veloso ou Noel Rosa, produziu trabalhos que são boas introduções e serão indispensáveis fontes de consulta, como Da bossa nova à Tropicália, e A MPB em discussão — entrevistas (organizadora junto com Frederico Coelho e Tatiana Bacal), livro que me permitiu notar algo de inusitado em relação a entrevistas de músicos populares, que era o modo como se repetiam as respostas quase que ipsis literis num lapso de 30, 40 anos (pois eu trabalhava com as entrevistas do Pasquim, por exemplo). Usei isso no capítulo que trabalhava com os relatos biográficos sobre a formação dos músicos populares, usando esses elementos recorrentes como eixos para a análise. Por isso essa notinha só, que soe: obrigado Santuza Cambraia Naves.