Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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18 de julho de 2016

1a. c/ a 7a. Os cinemas cantados na música popular

Um dos grandes momentos das atividades culturais que realizei durante o último Congresso da IASPM-AL em Havana foi sem dúvida uma perambulação pela Calle 23, bem pertinho de onde estava hospedado. Ponto de grande agito cultural e movimentação, casas com música ao vivo e cinemas, como o Cine La Rampa, um cinemão, rampa acarpetada, balcão, cadeiras com encosto de madeira, lembrando muito por dentro o Cine Brasil da BH da minha infância.  

Lembrei disso tudo ouvindo a composição Cinema Rio Branco do excelentíssimo Sergio Santos , inspirada num cinema de Varginha. Aliás, vale ouvir de cabo a rabo seu disco Litoral e Interior (Biscoito Fino, 2010) mais um primor da lavra dessa figura central da música popular mineira e brasileira. 


Lembrei, logo na sequência, da belíssima Cine Baronesa, mais uma pérola do grande Guinga, desta feita em parceria com Aldir Blanc, gravada com a participação do quarteto Maogani e da cantora Fátima Guedes no disco homônimo de 2001 (saiu pela gravadora Caravelas - aqui uma resenha do disco).



Mesmo quando os lugares se vão, a música pode perpetuá-los pelo modo como expressa seus significados lembrados através do som e pela forma como os ouvintes podem reconhecê-los. Uma pena que quase não há cinemas assim mais, mas ao menos resta a possibilidade da rememoração, se for em música então, ainda mais comovente.
Há uma lista interminável de canções que fazem referência a cinemas, esses templos modernos do deslumbramento com a imagem e som em movimento. Como é uma postagem de férias, deixo aos leitores que porventura se animarem a tarefa de encompridá-la. 

23 de junho de 2016

Gerente do mafuá?

É difícil fazer crítica cultural em tempos tão espinhosos. É preciso ter ferramentas analíticas adequadas e disposição para encarar um patrulhamento terrível, que atualmente tem vestido o manto da dita "apropriação cultural". Daí vou compartilhar esse exemplo inusitado, pouco usual, da atriz branca de séries e alguns filmes hollywoodianos que foi criticada nos Estados Unidos porque citou a letra de um rap de 1992 "Baby got back" - cuja recepção preconizava a valorização de traços corporais das negras - com a finalidade (narcisista, diga-se de passagem) de celebrar seu próprio corpo [aqui a matéria completa]. O que realmente me interessou foi a declaração do rapper Sir Mix-a-lot, autor da canção: "Escrevi essa canção não sobre uma batalha entre raças (...) eu queria que essas grandes revistas se abrissem e dissessem 'espere um pouco, essa pode não ser a única [forma] de beleza". Várias coisas a pensar, mas sobretudo ressalte-se a fluidez da música popular em circular em diferentes meios sociais, adquirir sentido para indivíduos de perfis variados, ser usada para manifestas opiniões e modificar a percepção social a respeito de um tema, propor mudanças de costume e comportamento.
É certamente necessário tomar qualquer objeto de análise na sua devida complexidade. A música popular, seja no que constitui sua confecção ou a partir do momento em que transita por diferentes meios, grupos sociais e temporalidades, pode até mesmo ser relida de forma incongruente com a que seus próprios autores a imaginaram. Justamente, li certa vez um artigo que trata dos diferentes usos de Imagine, de John Lennon, mencionando inclusive uma convenção do Partido Conservador britânico, no tempo da Tatcher, tocando a canção no início do evento. Um trabalho muito consistente a respeito dessas diferentes apropriações é o de
Louise MEINTJES - Paul Simon’s Graceland [álbum completo, aqui], South Africa, and the mediation of musical meaning. in: Ethnomusicology. Illinois: Illinois University Press, winter 1990, pp. 37-73. Obviamente as diferentes disputas em torno dessa interpretações envolvem relações de poder, como muito bem indica o genial Baião de Lacan de Guinga e Aldir.

"Eu fui pra Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá
Tentando se proclamar
Gerente do mafuá"




15 de fevereiro de 2016

Bolacha completa - Corpo de Baile (Mônica Salmaso, 2014)

Na série Bolacha completa, a proposta não é necessariamente a de realizar uma resenha técnica, faixa a faixa, mas sim expressar um reconhecimento sobre uma dada obra e evidenciar como se dá essa apropriação por parte de quem, numa audição particular que guarde uma perspicácia ímpar, acrescenta com ela mais alguns sulcos por onde possa transitar a agulha da nossa percepção. É nesse intento que posto este texto escrito e gentilmente cedido - fique aqui registrado meu imenso agradecimento - pelo Thiago Amud, compositor brasileiro cuja contundência artística e demais predicados os leitores que ainda não conhecem façam-se o favor de conhecer, começando por aqui


- Corpo de Baile - 

 Por Thiago Amud:
"Escutei ontem, pela primeira vez, Corpo de Baile, o disco em que Mônica Salmaso canta Guinga e Paulo Cesar Pinheiro. 

Fugi desse disco porque intuía que, se o ouvisse, aconteceria exatamente o que me aconteceu: a Beleza me esmagaria. 

Só senti isso com música uma vez na vida antes dessa: ouvindo a Sinfonia nº2, do Mahler. 

Tendências contemporâneas: relativizar a perfeição; tentar atenuar sua violência; tentar elencar razões pelas quais um objeto estético não é nada em si mesmo, mas apenas num determinado contexto sócio-econômico; não medir esforços para desfazer os laços entre o Belo, o Bom e o Verdadeiro; pressupor que tudo tem uma história racionalmente rastreável: cada emoção, cada lágrima, cada empolgação. 

Tudo em mim agora diz "não" a essas veleidades. 

Corpo de Baile fura a couraça do tempo: a eternidade nos enlaça. 

"Thiago, arrenego tanta metafísica, tanto platonismo, tanta idealização! Você fala como um velho de mil anos!" 

Eu SOU um velho de mil anos. 

Quis me enganar pra não ouvir o disco: a sonoridade deve ser datada, a cantora deve estar fria, o brasilianismo deve ser rançoso, isso, aquilo... Tudo fuga: eu estava era com medo de ouvir e me sentir, como estou me sentindo, indigno de continuar fazendo música. 

Corpo de Baile é, até agora, o maior disco da música brasileira do século XXI.

A dialética que aprenda a ouvir a Beleza Absoluta. 

O Amor é inegociável."


O disco, na íntegra [assegurando que este blog tem finalidade única e exclusivamente cultural,  e que não detém qualquer direito sobre o link/arquivo de imagem incorporado e o retirará imediatamente caso seja solicitado pelos detentores, e recomenda aos leitores que comprem o disco]



1. FIM DOS TEMPOS Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Tiago Costa
2. PORTO DE ARAUJO Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
3. NAVEGANTE Guinga / Paulo César Pinheiro Arranjo Coletivo
4. QUADRÃO Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
5. BOLERO DE SATÃ Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nelson Ayres
6. CURIMÃ Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Teco Cardoso
7. FONTE ABANDONADA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Tiago Costa
8. NOTURNA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Paulo Aragão
9. RANCHO DAS SETE CORES Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nailor Azevedo Proveta
10.VIOLADA Guinga / Paulo César Pinheiro
11. NONSENSE Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nailor Azevedo Proveta
12. SEDUTORA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Luca Raele
13. CORPO DE BAILE Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Nelson Ayres
14. PROCISSÃO DA PADROEIRA Guinga / Paulo César Pinheiro Arr. Dori Caymmi


30 de maio de 2015

Violão Ibérico, trabalho de excelente qualidade contanto a história do instrumento que cruzou o Atlântico e tem um papel fundamental na história da música popular no Brasil, onde também foram escritas algumas das mais marcantes páginas de sua própria trajetória no tempo. Além do livro foram produzidos vídeos inestimáveis, apresentando o depoimento de alguns dos músicos que já deixaram a marca de suas notas, dedos e criação definitivamente impressos quando se trata desse assunto. Separei, a título de amostra, três vídeos de três "casos sérios" da banda de cá do Oceano:
Guinga, João Bosco e Toninho Horta. Acompanha a descrição disponibilizada via You Tube.




"Estão todos na contramão." Guinga fala sobre o estilo de tocar e as influências de diversos craques, como João Gilberto, Nelson Cavaquinho, Toninho Horta e Raphael Rabello. E também da forma como alguns destes e outros tantos mestres marcaram a sua carreira. "Eu odeio partitura!"



"Depois de falar sobre sua história com o violão, Toninho Horta toca Meu canário vizinho azul, destacando detalhes do processo de composição da música."



"João Bosco fala sobre o processo de composição da música O Ronco da Cuíca, fruto de sua parceria com Aldir Blanc, enquanto toca o samba neste vídeo exclusivo".






8 de dezembro de 2014

As derramadas lágrimas de Guinga

A noite de hoje está guardada e há de ser glosada nos compêndios da música popular brasileira. Histórias serão contadas sobre os antológicos shows de Zé Miguel Wisnik e Guinga na Mostra Cantautores, digna e pertinentemente coadjuvados por Rafael Martini e Pedro Carneiro, respectivamente. Eu mesmo pretendo ter várias pra contar. Mas até lá hão de surgir instantâneos oportunos e singelos, argutos e espontâneos. Sinto uma profunda necessidade de compartilhar com os leitores do blog este escrito pelo meu parceiro Pablo Castro :

 
Embebido da experiência intensa e profunda de ter podido estar nessa noite de gala, na estreia da quarta edição da Mostra Cantautores [confira site com programação completa] , em que se apresentaram dois luminares da canção brasileira, dois mestres absolutos , da mesma geração, e em certa medida opostos, em certa medida complementares, José Miguel Wisnik com sua dissecação graciosa da canção e das canções, as suas, loas afiadas como pérolas aos poucos, e as nossas, aquelas entranhadas no inconsciente coletivo do que somos;
Guinga, com seu charme carioca, a um mesmo tempo humilde e malicioso, contando anedotas e destilando outras obras primas absolutas, ora com Aldir, ora com Paulo César Pinheiro. O encontro das duas personalidades fundamentais do desenvolvimento dessa arte nas últimas décadas, talvez ainda mais que os baluartes esplêndidos da década de 1960, se dá num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, ou talvez no ponto exato do centro da Via Dutra, tão representativos são dos ethos paulista e carioca da canção nacional ... e se inscrevem na nossa memória.
A apresentação do arrojado e magnífico Rafael Martini, articulando com primor uma música expandida para além da letra, e para dentro dela, conjugada com a abertura de Pedro Carneiro, um cronista que casa Guinga com Rumo, ilustram, sem esforços, o nível das aventuras que a canção brasileira ainda reserva para os que se dignam a cultivá-la, a ouvi-la, e a guardá-la dentro de si, refutando miseravelmente a tese do fim da canção.
A canção popular é a verdadeira epopéia da cultura tupiniquim, e quem não faz idéia de por onde ela passa, está perdendo uma das melhores sensações de pertencer a esse lugar chamado Brasil.
Que essa noite tenha sido um dia 8 de dezembro me parece muito significativo, em que pese a influência de John e a onipresença luminosa de Tom.


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Guinga derramou sua canção e derramou lágrimas, fez chorar de chorar e chorar de rir. Para dar um gostinho de sal e doce do que foi a noite: essa história da bigamia, canção necessária, desnecessária, etc., foi um dos pontos altos da noite. Acabei de ver a Salmaso contanto a história também, noutro dia, noutro lugar. 


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Mais cedo, pensando no show de Guinga na Mostra Cantautores, encontrei essa maravilha de texto do Túlio Villaça [Guinga e a última canção do beco aqui]. E outro dia assisti um pedaço (tá difícil ver coisas inteiras) do show O fim da canção (Wisnik + Nestroviski + Tatit) que também me botou pra pensar nessas coisas. Há de merecer mais reflexão. Não consigo deixar de pensar que sair do beco implica refazer rotas também, não com pés nostálgicos, mas por ser possível retomar caminhos que eventualmente não foram percorridos até o fim. Se ali na frente houver outro beco, que haja. Do que for decantado no caminho, ficará o encanto. Sim, temos uma cena pujante. Como diz o Pablo, Eldorado subterrâneo da canção. A cobertura da imprensa tem que crescer, ampliar, multiplicar. De pouco adianta divulgar o evento e depois esquecer de novo desse manancial que flui forte já há tempos. É preciso construir público, abrir espaço nas rádios, nas tvs, nos palcos. E é louvável, mais que louvável, o trabalho da moçada que toca desde sempre a preciosa mostra Cantautores! Longa vida!

31 de julho de 2014

Pobre MPB rica

A MPB está pobre, diz Mônica Salmaso [entrevista em O Globo, aqui]


A música popular brasileira hoje está pobre e nivelada por baixo. Pobre de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. É aquilo que a indústria, em crise, tentando sobreviver ao naufrágio, produz. É feio. Não é dessa água que a gente vai beber. Não é que as cantoras ou os cantores vão mal, mas é um cenário que não incentiva a busca do conhecimento, da qualidade ou da consciência do que você faz — lamenta.


Entendo que quando ela diz isso os ouvidos dela estejam por demais voltados para os veículos tradicionais, rádio, tv, e o mainstream da indústria fonográfica. Se cabe ponderar que a MPB feita atualmente não se resume ao que ressaltam esses meios, de outro lado é uma fala sintomática que corrobora tantas outras na detecção dessa quebra da correia de transmissão que um dia ligou o que de mais inventivo era realizado em nossa música popular a um público amplo, que acessa esses veículos. Precisamos sim reconstruir esses vasos comunicantes entre o manancial de composições de altíssimo nível e o ouvinte de música popular para além de pequenos círculos.

Ainda não ouvi o disco novo dela todo, e por mais que goste da Salmaso e seja grande admirador tanto do Guinga quando do PC Pinheiro ainda é muito cedo pra dizer que importância tem ou não. Tem outra coisa, por experiência própria sei como lamentavelmente jornalistas e editores são bem capazes de pinçar certas coisas numa fala bem mais contextualizada e apresentá-las de modo que venda e repercuta, independente de serem a expressão correta do que a pessoa falou. Enfim, continuo achando que ela abordou o cenário maior, o mainstream mesmo, mas sendo assim espero que ela se manifeste para deixar mais claro o que disse. Com as redes sociais é possível ir além da superficialidade desses jornais de sempre.

Enquanto isso, não seria desvario sonhar que essa fala da Mônica seja retrucada com ofertas e sugestões que a animem a fruir com um pouco mais de delonga e paciência o que anda tocando nos eldorados subterrâneos digitais. Me parece que nas entrelinhas fica visível que ela não tem lá grande familiaridade com o meio em questão. Eu diria que, a essa altura, se quiser ser uma grande intérprete da música brasileira de hoje - e ela pode sê-lo - ela terá que se familiarizar ou buscar auxílio para tanto. Sem romantismo algum vamos ter que considerar que "garimpar" repertório é algo que mudou de figura com tantas plataformas eletrônicas que permitem que excelentes compositores possam, passando ao largo da lógica carcomida da indústria do disco, lançar ao léu e ao mar digital seus trabalhos para deleite dos argonautas dos oceanos internéticos. Ou senão, ainda é possível viajar, por o pé na estrada, procurar as pessoas, sentar e ouvir. Os intérpretes podem e devem ser aventureiros, arqueólogos do eldorado subterrâneo da canção a descobrir que a pobre MPB é rica de marré deci. 


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O debate desencadeado pela entrevista da Mônica Salmaso tem rendido até mais do que era provável, e pensei que seria válido ir compilando aqui algumas das principais observações e posições que vão aparecendo, e que irão sendo somadas pelos comentários que os leitores começam a deixar no blog. Muitas sublinham questões para as quais não atentei ou eventualmente trazem pontos de vista diversos do meu. Como em outras ocasiões, considero o blog uma forma de agrupar material documental e dar espaço à troca de ideias. Começo com trechos de um texto que o violonista, compositor, intérprete e arranjador Sérgio Santos [quem quiser pode conhecer aqui seus brilhantes trabalhos] publicou no facebook [completo, aqui], que ele gentilmente me autorizou a publicar, pelo que agradeço muito. Se ele foi interpelado sobre o assunto é porque, além de seu reconhecido mérito como músico, mostra-se um comentarista arguto, que realiza uma crítica cultural de muita propriedade, que percebo ser uma referência para quem atua e pensa na música popular brasileira.

Sérgio Santos:
"A entrevista de Mônica Salmaso essa semana no O Globo tem gerado uma série de posts e comentários aqui. Fui citado em vários, e por isso, além de ver importância no assunto, me sinto confortável para comentá-lo. Conheço Mônica desde a época dessa foto. Pelos meus cabelos pretos dá pra ver que tem tempo. Sei que ela ama o que eu faço, assim como eu amo o que ela faz. Mas ela nunca me gravou em seus discos. E isso nunca me aborreceu ou frustrou minimamente, porque sei como ela raciocina em seus trabalhos, sei como ela pensa a música. [...] Em primeiríssimo lugar, é preciso que se diga que o fato principal da entrevista, o assunto que a gerou, é o lançamento de um trabalho magnífico. Não se trata de Guinga e de Paulinho isoladamente, mas de uma obra conjunta que estaria (por razões inúmeras que não se cabe discutir) irremediavelmente condenada ao desconhecimento, ao limbo musical eterno, caso Mônica quando a descobriu não tivesse batalhado por lhe trazer à luz. Isso é um fato, não cabe discussão. Tive o privilégio de conhecer a totalidade dessa obra há muitos anos (das gravações da Mônica só conheço as 4 que ela publicou), e não tenho a menor dúvida de que essa obra dos dois compositores é DAS MAIS IMPORTANTES E FUNDAMENTAIS DA MÚSICA BRASILEIRA RECENTE!!! Ela faz parte do que melhor produzimos em música popular!!! Esse é o fato principal!!!! E parece que ninguém se ateve a ele suficientemente, antes de criticar a cantora que a desenterrou. Acaso alguém que concluiu da entrevista de Mônica que ela desconhece a melhor música que fazemos, já ouviu essa obra? Não uma música ou outra, mas essa obra? Duvido muitíssimo que a maioria a conheça, já que ela não era acessível!! Aí temos uma cantora que descobre esse repertório oculto, que se move até ele, que enfrenta os não poucos meandros que envolvem gravá-la, que a torna acessível, e essa mesma cantora é criticada por… desconhecer a melhor música brasileira!!! Ainda que ela tivesse sido infeliz na sua declaração, E NÃO FOI, acaso não seria esse assunto principal que a materia traz, relevante o suficiente para ilustrar o fato de que trata-se de alguém que suou e muito a camisa, exatamente para mostrar a melhor música que produzimos???? Não estaria suficientemente claro, então, a qual música Mônica se refere??

Ah, muitos dirão, mas é fácil graver Guinga e PCP, que já estão estabelecidos! Queria vê-la gravando artistas realmente novos, pouco conhecidos! Há até quem tenha feito listas deles, que deveriam ter sido citados na entrevista, para mostrar a Mônica que ela desconhece tanta novidade, que está presa ao passado, etc. E aí, dá-lhe citações e listas, e em muitas delas lá estava eu incluído! Perdão mas NUNCA considerei a criatividade uma questão geracional. Fazer música criativamente não é uma atribuição exclusiva para jovens nem para velhos. Nem para iniciantes nem para consagrados. Há setentões consagrados fazendo discos maravilhosos recentemente. Assim como uma pilha de discos lindos que ouço SEMPRE de um monte de iniciantes talentosíssimos, todos desconhecidos do grande público (não me crucifiquem por não citá-los!!). E daí? Da mesma forma há um monte de discos de artistas iniciantes sofríveis, POBRES de assunto, de letra, de melodia, de harmonia, de arranjo. Assim como também fazem um monte de consagrados!! Repito: e daí? O universo que Mônica se insere, não distingue geração entre os criadores!!! Ah, dirão, mas ela deveria ter dito que essa música fantástica existe! Perdão, mas realizar vale menos que falar da existência?? Tenho certeza que a realização de um trabalho como o que ela agora lança, fala muito mais e vai favorecer muito mais a minha música e a música de quem esteve citado em tantas listas, do que se ela tivesse desfiado um rosário de citações.

O principal a se ver nessa polêmica é reconhecer que a música brasileira não poderia passar incólume a anos e anos de bombardeamento constante de lixo descartável. Isso não pode ter acontecido sistematicamente sem deixar marcas no comportamento do público, na sua capacidade de discernimento, na nossa forma de olhar para a nossa história cultural e musical, NA NOSSA CRIAÇÃO!!! Edu Lobo tinha 17 anos quando fez Ponteio. Por ele ser um gênio? Também! Mas por viver em um ambiente cultural com as referências necessárias para realizar o que realizou. É preciso uma miopia grave para não entender que essas referências, não apenas na música, mas na cultura em geral, não apenas no Brasil, mas no mundo, empobreceram sistematicamente. E é isso que faz com que todos que pensamos criativamente nos sintamos estranhos no ninho!! E essa falta de referências culturais, que foram substituídas pelo marketing, pelo peso da mídia e pelo lixo industrial, pesaram negativamente para o geral da criação artística no mundo todo, em todas as artes!! É a esse empobrecimento que Mônica se referiu. E ISSO NÃO MUDA PELO FATO DE HAVER UMA LEGIÃO OCULTA DE SOBREVIVENTES DESSE DILÚVIO DE MEDIOCRIDADE!!! Legião essa que luto dia após dia para fazer parte dela. E é preciso se ter muito claro que a chamada música independente, está apinhada, repleta, entupida, dessa mesma pobreza criativa que não é exclusividade do “mainstream”. Ela se espalha exatamente pela capacidade de divulgação e pelo espaço desproporcional que ocupa. Crer que a "independência" e a onipotência da internet garante a isenção estética, na minha modesta opinião é um grave erro, e bastante generalizado.

Fiz um post há alguns dias dizendo dessa mesma coisa, do meu cansaço e do desgaste que é enfrentar essa realidade POBRE diariamente!! Alguém acha rico o contexto que nos inserimos? Alguém acha instigante se mover no sistema geral desse mundinho ridículo de editais aos quais temos que nos submeter? Alguém é capaz de dizer que há riqueza nas possibilidades a que nossa profissão foi relegada? Principalmente, alguém é capaz de achar que isso não influencia esteticamente naquilo que se cria?? Nesse post, curiosamente ninguém me criticou. Pelo contrário! Talvez o tenham feito com Mônica pelo lugar que ela vem ocupando, e ocupa com a maior das justiças. De mim pelo menos não poderão dizer que sou “divo”, que estou na mídia, etc. Espero que não, que me rebatam com argumentos!! Pra terminar, tenho a maior das certezas de que TODOS os envolvidos nessa discussão JOGAM EXATAMENTE NO MESMO TIME!!! Talvez seja oportuno calibrar melhor a mira!!!"







26 de março de 2014

Música popular e memória I

Nesta data querida, como outra qualquer poderia ser, o Massa Crítica MPB completa 30 mil acessos. Como já escrevi em tantas ocasiões, sei que isso na internet não é nem de longe alguma coisa. Mas para mim, que edito o blog quando posso (e, às vezes, quando não posso) vale bastante saber que estou produzindo e eventualmente difundindo material sobre algo que ocupa lugar central no meu cotidiano e simultaneamente representa um patrimônio cultural digno de ser apropriado pelo maior número de pessoas: a música popular. É uma atividade extracurricular, digamos assim, e ainda estudo meios de compatibilizá-la melhor com a minha rotina acadêmica. Há tempos estudo formas de movimentar mais o blog e os planos continuam surgindo, e também sendo adiados até segunda ordem, mas finalmente ontem me apareceu um texto que trouxe à tona uma ideia que andava meio afogada. 
Estreia hoje a série "Música popular e memória", em que autores convidados,das mais diversas formações e estilos, abordarão periodicamente em textos personalíssimos um tema que nos afeta de maneira indiscutível, inapelável. 
Para o primeiro prato do banquete que espero oferecer por meio dos ilustríssimos que por aqui passarão, só poderia chamar alguém afeito à culinária das letras, um historiador com vocação para o argumento, até recentemente colunista do site BHaz e atualmente "gerente" (junto com o colega historiador Matheus Machado) do blog O Mexidão [acesse aqui], com textos de opinião, ensaios, sátiras, enfim o nome já diz tudo. Admiro a escrita do Pedro desde os tempos em que trabalhamos juntos num projeto de pesquisa na FAFICH, anos atrás. Sem mais, com vocês...

Música popular e memória I, por Pedro Munhoz 

Meu avô, um comunista nascido em Santos, filho de espanhóis, com traços deveras anarcóides, vive até hoje, mesmo depois de devidamente morto, a me matar de saudades. O mau humor do velho não permitia a ele assumir que gostava de muitas músicas (especialmente as americanas), embora eu saiba hoje, sem muito de sua ajuda, que ele era, além de garçom, comunista e portador de um mau-humor interessante (que eu gosto de pensar que herdei), um bom trumpetista.

Eu tentei a sorte com o saxofone no finzinho de minha adolescência. Não funcionou. Meus pais me compraram o instrumento para que eu abandonasse o cigarro. A senha deles era o fascínio que eu tinha pelo sax, instrumento muito parecido com a voz humana e que, no entanto, nada diz de inteligível: ele geme, e no seu gemer, entendemos suas querências, sem, paradoxalmente, entendê-las.

Dei meu sax de presente de casamento para o Flavio Pimenta e, até hoje, espero ter a oportunidade de vê-lo fazendo do meu Yamaha melhor uso do que eu.

Fato é que decidi continuar fumando como uma chaminé e, por conta disso, fui desistindo do sax. E decidi continuar ouvindo jazz, principalmente porque eu preciso de saxofones e trumpetes berrando no meu ouvido enquanto eu tento pensar,

Hoje eu ouvi essa música. Já tinha ouvido essa música antes, mas pelo simples fato de ela se chamar "Valsa do avô", me lembrei do velho Olympio. Lembrei das revistas anarquistas que ele me cedia às escondidas de meu pai, seu filho, um reacionário de bom coração. Lembrei-me de sua alegria quando, depois de deixar o Colégio Militar, passei a beber no bar onde ele atendia e, assim acabei o conhecendo melhor. Lembrei-me, em suma, da minha vida, da minha formação torta e do papel crucial que meu avô desempenhou nessa quase missão.

Sou grato a ele. Por isso, posto essa música, para a qual ele iria torcer o nariz, Mas é uma linda música de qualquer forma.


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Me permito aqui um rápido acréscimo, pois foi irresistível a lembrança (!) de um tema que anda dando suas voltas pela minha cabeça nos últimos tempos - e aliás sempre que resolvo ouvir o disco em que figura essa gravação, que é Vô Alfredo (Guinga/Aldir Blanc), na versão instrumental de Cine Baronesa.

30 de outubro de 2011

Quando Mingus encontra o samba


Graças à magistral parceria de Guinga e Aldir Blanc, Mingus encontra o samba. Essa versão instrumental tem a assinatura do Marcus Tardelli, violonista de mão cheia discípulo do Guinga.