Bolacha completa - Toninho Horta & Orquestra Fantasma - Terra dos Pássaros (1980)
Um disco antológico por "n" motivos, Terra dos Pássaros merece figurar nas estantes de todos os interessados em música brasileira. Primeiro LP assinado individualmente por Toninho Horta, traz ainda o distintivo traço de ter sido produzido de forma independente durante 3 anos, a partir de sobras de horas de estúdio e tapes não utilizados por Milton Nascimento. O repertório forte reflete o acúmulo de canções - das quais podemos destacar Céu de Brasília, Dona Olímpia, Falso Inglês e Beijo Partido - e também a força das parcerias com autores como Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Cacaso. O título do disco, além de expressivo, sintetiza perfeitamente a concepção geral do LP, um extravaso de melodias voadoras e arranjos aéreos executados com auxílio de uma muito bem nomeada "orquestra fantasma", os acordes orquestrais cheios de cordas abertas, como andorinhas migrando em bando. Descobri, enquanto escrevia essa postagem, o ótimo artigo assinado por Thaís Lima Nicodemo e Rafael dos Santos, recém publicado na Per Musi no.30 Belo Horizonte jul./dez. 2014 [completo, aqui], para mim um ótimo exemplar do que pode ser uma boa pesquisa acadêmica em música popular. Traz inclusive relevantes elementos documentais, como trechos de entrevistas e a transcrição do encarte do LP, que reproduzo abaixo:
Este disco conseguiu povoar meus pensamentos nestes últimos três anos e sobreviver a todo tipo de alegrias e dificuldades, mas a variedade de condições de trabalho não impediu o desejo de realizar um disco como sempre idealizei. Com muita liberdade, ele se desenvolveu paralelo à minha maturidade como ser humano. As canções cantadas no final de uma juventude podem hoje representar apenas o registro de um sonho que custou a se realizar: a voz em Diana era só de guia e ficou definitiva com o passar do tempo. Não havia razão para tentar cantar outra vez, anos depois, mesmo que viesse melhorar a qualidade técnica, a dicção e o volume de som. Toda a emoção do início do disco, o Bituca [Milton Nascimento] dando as fitas pra gente, a porta sempre aberta, o mar através dos janelões do estúdio, cachorros entrando e saindo, todo esse clima estava na voz de Diana. Eu comecei despretensiosamente a gravar uma fita onde tocava e cantava minhas músicas, sem pensar que seria o princípio de uma aventura. Os amigos apareciam para visitar e acabavam gravando, as ideias iam fluindo e a gente estava partindo naturalmente para fazer um disco com produção própria sem cogitar as dificuldades que viriam pela frente. [grifos nossos]
Escolhi citar alguns trechos que complementam bem o que estou querendo dizer:
Embora tenha se aprimorado tecnicamente ao longo dos anos que ultrapassam as demarcações desse trabalho, notamos que desde seu primeiro disco autoral, Toninho Horta possui uma concepção integrada de composição, podendo-se considerar a pluralidade uma das principais marcas distintivas de seu processo criativo. Suas composições possuem harmonias elaboradas, longas introduções instrumentais e interlúdios, e são permeadas por improvisos e contracantos, que dialogam, também, com os arranjos de base e orquestrais e com o conteúdo poético das letras. Essa particularidade é bastante aparente no álbum Terra dos Pássaros pelo fato de Horta ter participado de todas as etapas de criação, tocando diversos instrumentos, elaborando os arranjos de base e orquestrais e cantando.Tanto a integração da canção com o arranjo, como a alta densidade sonora, proporcionada pela soma de timbres diversos, que demarcam a produção do Clube da Esquina, distinguem a concepção composicional de Toninho Horta. Outro aspecto relevante de seu pensamento musical é a forte ligação com a canção, embora tenha adquirido grande reconhecimento de público e mídia por seus atributos de instrumentista. Horta dedicou-se à música instrumental em discos lançados durante o período em que viveu nos Estados Unidos, entre o final da década de 1980 e o final dos anos 1990, no entanto, a canção predomina como opção estética em seus discos autorais. Esse aspecto pode estar relacionado com sua maneira de compor. Conforme sua própria descrição, toca os acordes e o acompanhamento rítmico ao violão, enquanto canta as melodias em vocalize:
Nunca desenvolvi o lado de violão solo, sempre preferi utilizar a voz. Para compor eu canto as melodias junto com os acordes, então acabei virando cantor. Acho que isso virou uma marca do meu trabalho, esses vocalizes que faço. (HORTA, Toninho. In: GOMES & CARRILHO, 2007, p.25)
Sobre a produção do disco, propriamente, destaco:
No caso de Toninho Horta, o processo de elaboração de seu primeiro disco autoral teve início com sua participação como instrumentista nos álbuns Milton (Milton NASCIMENTO, 1976) e Promises of the Sun (Airto MOREIRA, 1976), nos Estados Unidos. As gravações do álbum Milton terminaram antes do tempo previsto, com horas de estúdio e fitas de gravação já pagas a serem utilizadas. Milton Nascimento cedeu o material remanescente a Toninho Horta, que começou a registrar suas canções. O letrista Ronaldo Bastos, produtor do disco de Milton Nascimento, associou-se a Horta na idealização e na produção de seu disco. Os mesmos músicos que tocaram no álbum Milton, como Raul de Souza (trombone), Robertinho Silva (bateira/ percussão), Airto Moreira (bateria/ percussão), Laudir de Oliveira (percussão), Novelli (contrabaixo) e Hugo Fattoruso (piano/ órgão/ sintetizadores), gravaram as bases de Terra dos Pássaros. Além dos músicos citados, Milton Nascimento cantou em duas faixas. Com essa ajuda inicial, Toninho Horta registrou as bases das canções e, junto com Ronaldo Bastos, retornou ao Brasil para apresentar o projeto a algumas gravadoras, que recusaram a proposta, devido à imprevisibilidade lucrativa da produção. Mesmo assim, decidiu dar continuidade à gravação de forma independente, entre julho de 1976 e setembro de 1979, destinando, paulatinamente, seus recursos financeiros para a realização do disco e acrescentando, aos poucos, instrumentos e detalhes às músicas. (...) Ainda que tenha realizado seu disco de forma independente, após ter finalizado as gravações de Terra dos Pássaros, Horta conseguiu um acordo com a gravadora EMI-Odeon, que propôs a gravação de um novo álbum, comprometendo-se a prensar, distribuir e licenciar seu disco inaugural.(...) Assim, pode-se falar em um quadro de complementaridade que passou a existir entre a produção independente e as grandes gravadoras (DIAS, 2000, p.129)
Separei ainda o link para o depoimento de Toninho ao Museu Clube da Esquina [completo, aqui]. Um trechinho em que ele comenta duas canções do disco: “Diana”/ “Céu de Brasília”
A Diana era uma cachorra. Às vezes falo nos shows: “Vou tocar uma música chamada ‘Diana’, minha e de Fernando Brant. Se tiver alguma Diana na platéia, me desculpe, mas a música foi feita pra uma cachorrinha”. Com “Céu de Brasília” eu falei: “Tenho uma música que eu quero que chame ‘Céu de Brasília’”. Mas ele nunca tinha ido a Brasília. E fez uma letra que parecia que ele vivia em Brasília. Enfim. Vale dar grandes mordidas nessa bolacha.
A Diana era uma cachorra. Às vezes falo nos shows: “Vou tocar uma música chamada ‘Diana’, minha e de Fernando Brant. Se tiver alguma Diana na platéia, me desculpe, mas a música foi feita pra uma cachorrinha”. Com “Céu de Brasília” eu falei: “Tenho uma música que eu quero que chame ‘Céu de Brasília’”. Mas ele nunca tinha ido a Brasília. E fez uma letra que parecia que ele vivia em Brasília. Enfim. Vale dar grandes mordidas nessa bolacha.
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