Retomando aqui uma série que andava adormecida, em que convido alguém invariavelmente especial para brindar os leitores do blog com algumas reminiscências que associem sua trajetória pessoal, profissional, etceteral, à música popular, alegremente recebo esse singelo recordo* da querida colega, igualmente pesquisadora de música popular e igualmente historiadora, Miriam Hermeto [gracias!], profa. do Depto. de História da UFMG, e minha vizinha de prédio no campus.
Como nascem as memórias inventadas
por Miriam Hermeto
Em 2010, já na reta final do meu doutorado e com lacunas de pesquisa efetivas, eu resolvi tentar uma entrevista com Chico Buarque. Temia muito que o contato fosse considerado apenas o desejo de uma fã - o que sou, inconteste, apesar do esforço crítico que a persona de pesquisadora sempre implicou - de conhecer seu ídolo. Mas realmente a entrevista, que eu sabia muito difícil, tinha potencial para resolver questões importantes e dar outras cores à interpretação do fenômeno da "Gota D'Água"...
Encorajei-me, então, e tentei. Surpresa, consegui. Como eu consegui?, isso é história pra outra hora - que, aliás, está contada, de alguma forma, na tese. Fato é que consegui, a partir de uma troca de mensagens por email, primeiro com o assessor de imprensa, a doçura do Mario, depois com o próprio Chico.
E fui, em maio de 2010, entrevistar o Chico, em seu apartamento no Leblon. O episódio da entrevista também é assunto pra outra hora. Falo disso tudo, porque hoje lembrei-me muito do encontro, assistindo ao "Chico, artista brasileiro" - filme lindo, desses que fazem bem à alma. Mas, especialmente, lembrei-me de um eco do encontro, que sempre uso como exemplo pra discutir como as memórias são inventadas.
Poucos meses depois de eu ter entrevistado Chico Buarque, ele deu declarações à imprensa, falando de seu novo disco, em processo de produção. Havia poucas canções finalizadas e a primeira delas era "Nina". Sim, Nina, o nome da minha filhota, então com dois anos, a quem sempre cantei em alto e bom som por aí.
Amigos próximos me chamavam para perguntar se eu havia visto o nome da nova canção. "Claro", respondia. E completava: "sei de nada, só sei que não posso crer que é acaso ser esse o nome depois de ele ter-me conhecido". (Vejam a manobra: não era eu a tê-lo conhecido, mas o contrário!)
Farra pura, é óbvio. Mas, cá entre nós e para consumo interno, "Nina" é canção do Vô Ico (como seus netos o chamam) em homenagem à Ninoca. E ela, quando ouve alguém tocar no assunto, já do alto dos seus seis anos, crê mesmo que é pra ela aquela lindeza.
Não fosse essa heresia suficiente, eu, de minha parte, prefiro crer que a canção é pra mim: eu, disfarçada em minha filha, a inspiração de uma valsa sobre uma mulher russa que o eu-lírico conhece por email, que "anseia conhecê-lo em breve" e que ele também idealiza a distância (obviamente, nesse delírio, Chico nada tem do Vô Ico da Nina). Porque, afinal, sonhar nunca foi proibido. E as memórias, como o próprio Chico disse no depoimento de base do filme, nem sempre são produto de experiência da gente. Podem ser derivadas de experiências de nossos pais, avós, de ancestrais sociais. Ou, emendo eu, dos sonhos...
Taí, pra vocês. Como nascem as memórias inventadas.
*N.E.: sob forte influência da exibição do filme Chico - artista brasileiro.
Ótimo ensaio! Eclea Bosi é outra pensadora que fala muito sobre como as memórias tem um elemento ficcional as vezes inconsciente. Sem contar o clássico livro A Invenção das Tradições, do Hobsbawn e Terence Ranger.
ResponderExcluirSem dúvida, Rafael! Aliás foi bom que me lembrei que essa série precisa ser retomada.
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