"A política, numa obra literária, é um tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro, mas ao qual não é possível recusar sua atenção".
Stendhal, A cartuxa de Parma.
Terminei de ler ontem o romance, certamente menos conhecido que O vermelho e o negro, mas igualmente exemplar desse gênero tão do século XIX. Grande ironia reside no fato de ler sobre intrigas de corte, tão passionais, por vezes infantis, e sempre interessadas, enquanto se vive num país cujo ambiente político atual parece digno dos melhores folhetins.
Esse detalhe tem o efeito de colocá-lo ao lado de outra leitura marcante que fiz no ano, Os inimigos íntimos da democracia, de Tzvetan Todorov. Existe aí uma profunda conexão, posta em funcionamento pela experiência histórica do presente, que nos faz confrontar a natureza e a formação do Estado Moderno e dos regimes democráticos. De um lado tenho um romance cujo pano de fundo são as investidas napoleônicas sobre a Europa absolutista e as reações das aristocracias ao perigo do jacobinismo. Do outro uma análise precisa das contradições próprias daquilo que se tornaram as democracias representativas, inclusive pela maneira com que permitem que interesses de elites políticas e econômicas sejam hegemonizados e se perpetuem dentro das regras do jogo que instalam, traindo princípios basilares do próprio liberalismo clássico que orientou sua formulação.
Como não poderia deixar de ser, tais leituras e o próprio momento que vivemos, impregnam de forma inescapável os impulsos de criação que eventualmente me acometem nestes dias. Na verdade não sei onde estão exatamente as fronteiras entre o historiador e o compositor, e isso não chega a ser importante. Acabo achando que essa mistura produz algum resultado. Gosto muito de pensar sobre o engajamento político no âmbito da canção. Ontem mesmo vi uma paródia de Cálice (Gilberto Gil e Chico Buarque) empregada pelos estudantes paulistas que bravamente desafiam os desmandos do atual governador de seu estado, que demonstra a força dessa alquimia (vou ter que jurar que não me ocorreu a ironia de empregar essa palavra...).
Já faz alguns dias [precisamente, em 04 de outubro] - antes, portanto, dos desdobramentos advindos do gesto torpe de Eduardo Cunha, atual presidente da Câmara dos Deputados, de acatar o pedido para abertura de processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff, comecei a letra de uma canção que pretende versar de alguma forma sobre o turbilhão em que nos encontramos. Chamei-a de Inimigo íntimo. Agora o meu parceiro Pablo Castro começou a fazer a música e assim vou deixar para dar mais detalhes quando estiver definitivamente pronta. O que posso adiantar é que de alguma forma me atrai a ideia de escrever letras com fundo político mas que não sejam tão literais, tão conjunturais, a ponto de deixar a canção datada ou dificultar sua apropriação em outros contextos. Mas, finalmente, o que se pode fazer em relação a isso é muito pouco, pois é decisivo o papel dos ouvintes naquilo que se pode chamar de contexto social de audição, como bem demonstra a imagem acima. A literatura, a história, a vida, inspiram, não apenas quem escreve as canções, mas também quem as ouve.
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