Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

26 de dezembro de 2015

MOBY DICK

Depois de algum tempo retomo essa série, procurando narrar um pouco a história por trás da criação das letras de canção que já escrevi. Tenho privilegiado, até aqui, as que já foram gravadas em estúdio e lançadas em disco, porque sinto que minimamente elas estão exposta ao público (independentemente do tamanho do mesmo) e encontraram um estado de realização que serve para despertar o interesse por sua aparição, por sua apresentação desnudada de canção.
Eu estava devendo desde uma postagem anterior tratando da literatura como inspiração para a canção [aqui] contar sobre Moby Dick. Lá se vão muitos anos, efetivamente mais de um década, desde sua feitura. Ela é mais ou menos contemporânea de Carpe Diem, que figurou no disco A Outra Cidade. Meu grande parceiro Pablo Castro ma apresentou, salvo engano em um velho teclado, quando havia apenas a primeira parte. Mesmo tendo a possibilidade de conversar com o parceiro, até imediatamente, costumo tentar entender a música da forma como se mostra nesse primeiro contato e propor, o mais rápido possível, um tema, se ele já não foi definido. E aí aguardo a reação, vejo se o parceiro compra a minha proposta. Embora esteja igualmente aberto a uma contraproposta, digamos assim, tenho sido convincente. 

Essa definição temática pra mim costuma funcionar, na medida em que define um universo de vocabulário, situações, e eventualmente até uma trama e personagens, pois compor depende desse movimento, a partir de um campo infinito de possibilidades, ir reduzindo, definindo, organizando... como fatalmente qualquer construção textual, qualquer representação simbólica. Normalmente tem uma história pra contar, pode ser trivial, pode ser mais pretensiosa... como observou o caro amigo e estudioso das Letras e da música popular Rafael Senra em sua resenha [completa, aqui]:

Se Anterior fosse um disco dos Beatles, as letras do Luiz Henrique poderiam ser consideradas como a porção “mcCartneyana” do trabalho. Seu olhar tem um enfoque mais objetivo, com ares de cronista, que remete a canções do ex-beatle como Penny Lane, London Town, e tantas outras.

Além de ficar obviamente lisonjeado, reconhecer o peso da obra de McCartney na minha formação é inevitável. Certamente vai de encontro a uma tradição vastíssima na letra da canção popular brasileira também, pensando num Noel, num Chico Buarque, num Aldir Blanc, em algumas do Gil, ou entre os mineiros do Clube, umas do Fernando Brant, como Ponta de Areia. Os exemplos poderiam se multiplicar. Claro que tem a ver o fato de eu ser historiador e ter grande apreço pela narrativa que desce ao rés do chão, que vai até o cotidiano e destrincha a experiência social a partir do sujeito. O gosto por esse estilo deve ter relação também com minhas preferências literárias, como por exemplo o romance e o conto dezenovistas, cheios de descrições detalhistas. Escritores como Verne, Machado de Assis, Dumas, Doyle, sempre fizeram minha cabeça. Mas é claro, fazer uma letra de canção para uma música que já existe exige que as palavras se concatenem ao que ela propõe. Vou recuperar uma observação feita pelo Túlio Villaça tratando do disco Anterior em seu ótimo blog Sobre a canção:

Nas canções de anterior, a letra parece estar a serviço do efeito causado pela melodia, e não o contrário. Em Moby Dick, por exemplo, a narrativa quase óbvia dos acontecimentos serve a uma composição com dois climas bem definidos, um majestoso e épico, mas com um movimentos sincopado que balança como um navio sobre as ondas (se com isso se aproximar da dança de forma alguma) e uma movimentada segunda parte, em que o clímax da ação, a caça e o naufrágio falam por si, quase sem a necessidade da narrativa das palavras. [ensaio completo]  

Em parte, foi por aí. Ou seja, ouvindo a primeira parte, certamente me veio a sugestão do movimento de uma embarcação (em algum outro momento, caberá escrever também sobre o fascínio que o mar exerce sobre os mineiros). Curioso que só agora, enquanto escrevo, a "irmandade" de Moby Dick e Carpe Diem se revela esclarecedora do processo criativo... a outra também fala de mar e igualmente teve como fagulha um romance, o Robinson Crusoé de Defoe. Mas se antes foi fagulha, aqui o raio caiu com voltagem altíssima, na sua fulgura matando a charada de uma vez. Era tratar de converter o épico embate entre o capitão Ahab e o cachalote branco do romance de Melville, datado de 1851 [vale uma conferida o mapa incluído na edição primorosa da já saudosa CosacNaify] , numa letra de canção com poucos minutos de duração. Tinha basicamente 3 estrofes, que mais intuitivamente que tudo acabei organizando numa sequência narrativa  que produziu o extrato concentrado do livro. Na 1a. , introdução ao assunto, através da descrição da embarcação e de sua partida. Em cada verso tem algum elemento básico que remete à nau e ao universo da navegação, situando rapidamente o ouvinte no cenário. Na 2a., o eixo em torno do qual se desenrola a história, ou seja, o conflito entre o capitão (que aí é  sinalizado como "eu lírico" da canção, narrando em 1a. pessoa)  e a fera branca. Mas também capta o conflito interno, o embate entre razão e ódio vingativo que está no cerne do personagem Ahab, e que move sua perseguição a Moby Dick, que por sua vez é uma fortíssima representação do instinto animal, das forças naturais e irracionais - e igualmente das forças sociais tidas por irracionais encarnadas pelas massas urbanas, pois uma das possíveis de seu nome é uma adjetivação do substantivo "mob", que podemos traduzir por "turba". Na 3a., cuja forma tem uma variação em relação às anteriores, o momento do embate, do ponto de vista do capitão. Aqui o detalhe interessante, as três estrofes ficaram prontas escarradas de uma vez, botando o barco da canção no rumo que haveria de seguir. O timão voltou para o Pablo, que com mais alguns dias definiu a segunda parte. Com isso retomei, fazendo a letra da 2a. parte a partir do que me sugeria a música, bem movimentada, o que fica acentuado nos verbos que auxiliam a compor uma descrição quase que cinematográfica [na minha retina estava retida a película dirigida por John Huston, estrelada por Gregory Peck e contando com a brilhante aparição de Orson Welles]. Nessa parte da letra a narração é mais de acordo com o livro, ou seja, é assumida pelo marujo Ishmael, o que permite olhar objetivamente, "de fora", o confronto entre o capitão e o cachalote. Aí a história termina, não exatamente como no livro, mas no clímax, em que o animal arrasta Ahab consigo para a morte. Achei uma solução feliz e inusitada nesse verso ambíguo, "e desta feita foi seu fim", pois, finalmente, é o fim de ambos. Uma última nota, curiosa, é que esta letra teve apenas duas alterações. Troquei, na 2a. estrofe, "desprezar" por "recordar", e na 2a. parte, "baleia" por "animal". Aí é que está, eu tinha cometido um erro proposital de prosódia, "e na dorsal da bá-lei-a, fisgou", no qual queria insistir, achando que era uma ousadia formal, sei lá, mas acabei cedendo à sugestão bem mais ajustada do meu parceiro "e na dorsal do a-ni-mál, fisgou", ganhando a rima interna de lambuja. O tempo provou que estava certo e hoje prefiro mil vezes assim, a mudança foi benéfica ao resultado final. Vou deixar esse erro de prosódia intencional para ser cometido em outra ocasião. Talvez compor seja também perseguir uma baleia branca.

Versão voz e violão:







Versão do disco:


Moby Dick (P.Castro/L. Garcia)

Levantar ao convés
embarcação vai zarpar
a vela aberta
o vento do leste
cheiro de peste no ar

Recordar ao revés
minha razão de odiar
a fera branca
a boca da morte
proa ao norte, o mar

Rebentar a meus pés
tripulação a gritar
medo naval
pura encarnação do mal

O capitão ergueu o arpão, jogou
e na dorsal do animal, fisgou
a âncora não segurou, soltou
e Moby Dick a 20 nós levou
O capitão seu coração feriu
e desta feita foi seu fim


Um comentário:

  1. Por Rafael Senra, via facebook:
    Como sempre, é bem legal acompanhar as curiosidades de bastidores, os rumos que a melodia sugeriram para a confecção da letra, os versos e escolhas que ficaram de fora (e pq ficaram). É um mapa oculto do que foi aparado e lapidado, o autor da letra bancando o anjo que olha para trás do qual fala Benjamin, enfim.
    Essa música é muito interessante, pq musicalmente ela é rica e atrativa, e a letra em si é uma peça notável, principalmente por evocar uma conhecida narrativa e o fazer de maneira competente. Uma das obras-primas de Anterior com certeza.

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