Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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30 de novembro de 2016

O patrimônio e os panteões: Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular

Como parte das atividades da bolsa de iniciação científica (IC) concedida pelo CNPq para o projeto Patrimônio urbano e música popular: acervos e lugares que coordeno, o bolsista Isac Santana produziu uma pequena resenha que decidimos em conjunto transformar em postagem do blog. O foco é a comparação entre listas de consagração de bens culturais elaborados por políticas de patrimônio e as listas elaboradas por compositores populares para celebrar seus pares. Transcrevi-a abaixo, com algumas pequenas modificações.



Referência: TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular. Porto Alegre,  03 maio 2006, 11p.  Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido pelo Projeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo. [para baixar o texto, aqui]

A autora, em 2008.

Ao falar de música popular em seu texto, Elizabeth Travassos traz os elementos das listas comparando aquelas que foram criadas pelas políticas de patrimônio e as listas feitas em canções populares, apresentando um contraste existente nas análises dessas listas.  Para elucidar seus pensamentos sobre as listas, a autora começa apresentando as proclamações da UNESCO sobre obras-primas do patrimônio cultural oral e imaterial da humanidade, que abrangem praticas, representações, conhecimentos e técnicas, o que nos instiga a olhar as práticas sociais e festas como obras-primas. Dentro dessa lista da UNESCO temos como exemplo arte gráfica e oral dos índios Wayãpi, o canto védico na Índia o teatro de bonecos na Indonésia e a festa dos mortos no México. Ao proclamar esses objetos a UNESCO tenta reconhecer o seu “valor” mas não trabalha esses patrimônios diretamente com os agentes produtores de cultura. A antropóloga Barbara Kirshenblat-Gimblett observa que:  “o patrimônio é um modo de produção cultural que insufla vida nova nos fenômenos culturais em vias de extinção ou que saíram de moda, ao exibi-los como patrimoniais”. Mesmo a lista tendo efeitos importantes  sobre as comunidades geradoras dessas obras é difícil prever os impactos dessas proclamações. Aqui no Brasil, além de participar das proclamações da UNESCO, temos nossa própria política sobre patrimônio imaterial. Os nossos bens culturais são registrados em quatro livros de acordo com a sua categoria: há um livro para os Saberes e Modos de Expressão, outro para as Celebrações, outro para as Formas de Expressão e outro para os Lugares.  Como esclarece Travassos:

Observe-se que os documentos brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da escrita. (TRAVASSOS, 2006, p.3)

A autora destaca propositalmente itens na lista da UNESCO relacionados a música e dança para enfatizar que são sempre grandes potenciais e merecedoras de proteção, e começa então a apresentar as listas que são usadas dentro da música popular. Elizabeth escolhe 3 canções. A primeira canção que usa como exemplo é do Sr. Joaquim Crisóstomo, de São João d’Aliança. A lista utilizada nessa moda traz os nomes dos foliões, parentes e amigos do Sr. Joaquim.


“Nesta hora eu me lembrei

De tudo que já passou

Me alembrei de tanta gente

Que pro céu Deus já levou

Me alembrei de Zé di Telo

E do caixeiro Fulô

Vendo as moda de Domingo

Só a saudade ficou...”







Outro exemplo usado é a canção Paratodos de Chico Buarque: 


“O meu pai era paulista

Meu avô, pernambucano

O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano

Meu maestro soberano

Foi Antonio Brasileiro...



...Viva Erasmo, Ben, Roberto

Gil e Hermeto, palmas para

Todos os instrumentistas

Salve Edu, Bituca, Nara

Gal, Bethânia, Rita, Clara

Evoé, jovens à vista...”






Nessas duas canções, os autores listaram pessoas representativas dentro dos contextos sociais que pertenceram. A primeira traz uma memória local, seus parentes e sujeitos próximos. A canção de Chico também se inicia em um contexto familiar e vai abrindo espaço para pessoas de uma linhagem musical consagrada nacionalmente, composta por membros de várias regiões brasileiras, mostrando assim que a música popular é “paratodos”. Outra lista apresentada bem similar à lista de Chico é Beba dosamba de Paulinho da Viola.

Nessas canções os compositores criam sua própria lista para proclamar seus heróis em forma de registro. A autora as utiliza para mostrar como esses grupos sociais gravam em forma de composição suas memórias, que se assemelha bastante a algumas políticas da UNESCO, como os “tesouros humanos vivos” que atraem novos aprendizes para herdar determinadas sabedorias e estudar com esses mestres. As canções populares aqui descritas ao apresentar figuras celebres também desperta a vontade de aprender os conhecimentos desenvolvidos por esses mentores.  A maior diferença que a autora destaca sobre a UNESCO e as canções populares, é que os agentes da UNESCO que votam e escolhem os patrimônios nunca serão tão próximos e conviventes com os objetos culturais como os compositores das canções. Para ela é importante frisar que "Todas as listas são discutíveis, sob certo ponto de vista, e isso se aplica, naturalmente, à minha própria lista de listas. Seus critérios de seleção sempre podem ser objeto de disputas" (TRAVASSOS, 2006, p.8).

 Concluindo, ela ressalta que ambos buscam salvaguardar memórias, preservar fontes identidade cultural que assegurem a diversidade que é fundamental para as relações humanas.

12 de janeiro de 2016

1a. c/ a 7a. Mistérios do samba

Assisti ontem a um trecho desse documentário com a velha guarda da Portela, bem produzido, e com uma condução muito respeitosa, digna. Enquanto levantava repertório para um disco, Marisa Monte vai cantando com Paulinho da Viola, conversando com os compositores de quadra, famílias de sambistas, pastoras.  E encontrando as fitas k7, letras manuscritas, arquivos guardados por familiares e pelos próprios autores, e a gente vai vendo a emoção genuína de encontrar aquilo, lembrar os sambas...Enfim, delicadeza demais. 


Uma sinopse:

"Na ocasião do trabalho de pesquisa de campo realizado por Marisa Monte nos idos de 1998 junto aos sambistas da Portela no bairro de Oswaldo Cruz, zona norte do Rio de Janeiro (RJ), para o repertório de seu CD "Tudo Azul", a cantora percebeu que algo mais estava ali, naquele lugar, além dos cancioneiros inéditos os quais pretendia resgatar. Assim, ela chamou os diretores Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor para registrarem esses encontros, com a intenção futura de gerar um filme que retratasse não apenas os bastidores de sua empreitada musical, mas algo muito mais precioso." (do canal youtube anderson inspiração)



Enquanto eu navegava procurando o vídeo, acabei lembrando do documentário sobre Paulinho da Viola que resenhei aqui, e vale muito assistir.

23 de dezembro de 2013

Memórias cantando: o presente de Paulinho da Viola



No início do mês reparei que um certo disco simplesmente não parava de tocar aqui em casa. Era o Memórias cantando (1976) do Paulinho da Viola, que meu filho (17) e filha (11) ouviam sem parar e logo cantavam junto todas as canções. Como se isso já não fosse o bastante para deixar um pai pra lá de orgulhoso com o bom gosto musical dos rebentos (que, diga-se de passagem, incentivo mas sem qualquer tipo de campanha sistemática pois desejo que descubram a música por seus próprios ouvidos), perguntei à minha filha se queria ganhar um caderno com letras de música, talvez como presente de natal. Pois não é que ela adorou a ideia! Pedi então que ela fizesse a lista das canções que gostaria de ter no tal caderno. Mas ela acabou protelando a tarefa e hoje quando lhe perguntei ainda não havia feito a tal lista. Disse então que ficaria pra depois, o que ela não recebeu nada bem. Com aquela urgência típica da idade foi lá e lavrou, rapidamente, sem vacilo, a listagem, só com canções do disco do Paulinho. Lá fui eu, depois de um dia corrido, bolar o tal presente, que logo percebi que precisaria ser feito em formato digital. Aproveitei então para testar uma ideia antiga, de gerar material em pdf que pudesse compartilhar pelo blog. Enquanto reunia letras e imagens, rapidamente buscadas no site oficial de Paulinho, pensava na fascinante operação cultural que se descortinava à minha frente, quando um disco que fora gravado no ano em que nasci ganhou a preferência de gente que nasceu no mínimo 20 anos depois disso e agora poderia alcançar ainda outros e mais outros ouvidos. Um disco sobre a memória, mas com a imensa capacidade de transcender o tempo em que foi feito e nos tocar no presente [clique aqui para ler os preciosos comentários de Arley Pereira]. E - se a minha memória não me trai - acho que eu comprei em CD esse e mais 2 discos do Paulinho como presentes - muito bem dados - a mim mesmo num certo natal. Mas posso estar enganado e talvez os revolteios do lembrar não passem de uma boa forma de fechar esse texto.

Caderno de letras Paulinho da Viola

P.S. 2015
Como o link do vídeo estava quebrado, decidi inserir um novo. Nesse ano duro, que termina com sabor amargo, me pareceu um bom remédio ouvir essa canção...




Vela no breu
(Paulinho da Viola e Sérgio Natureza)
Disco: Memórias Cantando


Ama e lança chamas
Assovia quando bebe
Canta quando espanta
Mal olhado, azar e febre

Sonha colorido
Adivinha em preto e branco
Anda bem vestido
De cartola e de tamanco

Dorme com cachorro
Com um gato e um cavaquinho
Dizem lá no morro
Que fala com passarinho
Depois de pequenino
Chora rindo
Olha pra nada
Diz que o céu é lindo
Na boca da madrugada

Sabe medicina
Aprendeu com sua avó
Analfabetina
Que domina como só
Plantas e outros ramos
Da flora medicinal
Com 108 anos
Nunca entrou num hospital

Joga capoeira
Nunca brigou com ninguém
Xepa lá na feira
Divide com quem não tem
Faz tudo o que sente
Nada do que tem é seu
Vive do presente
Acende a vela no breu

1 de setembro de 2013

Saudade do tempo que não vivi

Paulinho da Viola - Meu tempo é hoje (2003): 'Documentário dirigido por Izabel Jaguaribe, é um perfil afetivo do cantor, instrumentista e compositor. O filme mostra seus mestres e amigos, suas influências musicais e percorre sua rotina discreta e muito peculiar, em suas atividades e hábitos desconhecidos dos grande público. Mas a grande revelação vem das reflexões do músico sobre um único tema: o tempo. Em vários versos ele canta: "Só o tempo ajuda a gente a viver"; "Amor, repare o tempo enquanto eu faço um samba triste pra cantar"...' [postado por Alexandre Camões no YouTube]



Logo no início do documentário Paulinho entra em uma livraria e emenda com um livreiro um papo sobre saudade, dizendo inclusive que era uma coisa que não conseguia sentir. Seu interlocutor emenda "Eu sinto muita saudade de uma época que eu não vivi". De certa forma é um sentimento do qual compartilho, e de fato não se trata, como considera o próprio Paulinho, de saudade. Trata-se de uma forma específica de experiência do tempo, em que nos apropriamos do que é possível apreender dentre vestígios do passado que nos alcançam e aos quais damos novos sentidos. Dentre estes pode estar uma certa nostalgia, até mesmo uma ilusória expectativa de restauração impossível de satisfazer, mas também a possibilidade de reinterpretar e concatenar as expressões de um tempo eminentemente diferente na medida em que participam do processo de atribuir sentido à vida e produzir compreensão de nossa própria conjuntura. Assim o título do documentário é bem escolhido, e contribui para desfazer uma leitura um tanto esquemática do compositor e sua obra, que tende a enquadrá-lo como guardião nostálgico do samba da velha guarda, quando de fato foi uma ponte entre gerações e audiências, um atualizador de tradições e certamente tem papel central nas inúmeras ressurreições do samba (tantas as vezes em que o deram como morto) nas últimas 5 décadas da história da música popular brasileira.