Em um desses volteios casuais pelas plagas eletrônicas, acabei topando com a reprodução desse disco completo no You Tube, provavelmente tendo como matriz o CD da obra, que foi lançado, pelo que pude apurar, em 2003, pelo Estúdio Eldorado (gravadora que veio a converter-se em selo discográfico). O universo dos cantos de trabalho, tão vasto quanto o próprio planeta terra e sua história, não cabe nessa postagem. É tão somente uma primeira incursão, à espera das próximas. Como encontrei boas resenhas e material farto, optei por reproduzir os trechos mais relevantes, inserindo links para os leitores que desejarem continuar a leitura nas fontes originais.
Um dos títulos mais importantes e corajosos da fonografia brasileira acaba de chegar, 21 anos depois do lançamento em elepê, ao formato digital. Trata-se de O Canto dos Escravos (dentro da série Memória Eldorado), coleção de 14 cantos da série recolhida por Aires da Mata Machado Filho no fim dos anos 20 do século passado, em São João da Chapada, município de Diamantina, Minas Gerais. Interpretando os cantos, Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela, Geraldo Filme, um dos nomes fundamentais do samba paulistano, e Clementina de Jesus, a rainha negra da voz, como a definiram Moacyr Luz e Aldir Blanc.(...)
Marcus Pereira era um publicitário amante da música que criou o selo para dar brindes aos seus clientes, nos fins de ano. Aos poucos, abandou a rendosa publicidade, na qual era muito bem-sucedido, e ficou só com a gravadora, que viveu sempre grandes dificuldades financeiras. (...) Os que se juntaram a ele tomaram o exemplo e, posteriormente, em outrosselos, deram, de alguma forma, prosseguimento ao seu trabalho,eventualmente, ampliando-lhe o universo. A Eldorado tinha e tem, sim, orientação comercial, mas com extremo cuidado na seleção de seus títulos (Cartola, Nelson Sargento, Geraldo Filme, Adoniran Barbosa fizeram suas estréias em disco por ela), e sua iniciativa mais ousada terá sido esse O Canto dos Escravos, que há muitos anos estava fora de catálogo e era objeto de disputa entre colecionadores, estudiosos e amantes da cultura brasileira.
(...) Vissungos - Tais cantos são chamados vissungos, palavra que vem do umbundo ovisungo (cantiga, cântico), conforme ensina Nei Lopes em seu Dicionário Banto do Brasil. Já era plano de Aires da Mata Machado recolher os vissungos e reunir o vocabulário e a gramática da língua dos negros benguelas. Teve pouco êxito na primeira investida; na segunda, ele e seu colaborador Araújo Sobrinho ouviram de um Seu Tameirão 200 palavras e algumas cantigas; adiante, surgiram outros cantadores que sabiam letra, música e tradução.
(...) O disco, de uma beleza crua, não tem instrumentos harmônicos. Acompanham os três cantores a percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, ganzás, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Os intérpretes são figuras de sabida importância na divulgação esustentação da cultura brasileira de origem africana. Geraldo Filme, grande compositor, cantor de vozeirão profundo, foi, na definição de Osvaldinho da Cuíca, o grande articulador, a "cabeça pensante" do samba paulistano. Tia Doca, nascida Jilçaria Cruz Costa, manteve por décadas um pagode dominical que ajudou a manter vivo o samba de raiz carioca; sua participação no disco foi sugerida por Clementina de Jesus, que foi
revelada ao mundo aos 64 anos, depois de ouvida, num botequim da Lapa, centro do Rio, por Hermínio Bello de Carvalho.
(...) Vissungos - Tais cantos são chamados vissungos, palavra que vem do umbundo ovisungo (cantiga, cântico), conforme ensina Nei Lopes em seu Dicionário Banto do Brasil. Já era plano de Aires da Mata Machado recolher os vissungos e reunir o vocabulário e a gramática da língua dos negros benguelas. Teve pouco êxito na primeira investida; na segunda, ele e seu colaborador Araújo Sobrinho ouviram de um Seu Tameirão 200 palavras e algumas cantigas; adiante, surgiram outros cantadores que sabiam letra, música e tradução.
(...) O disco, de uma beleza crua, não tem instrumentos harmônicos. Acompanham os três cantores a percussão de troncos, xequerês, enxadas, cabaças, atabaques, agogôs, ganzás, caxixis e afoxés tocados por Djalma Corrêa, Papete e Don Bira. Os intérpretes são figuras de sabida importância na divulgação esustentação da cultura brasileira de origem africana. Geraldo Filme, grande compositor, cantor de vozeirão profundo, foi, na definição de Osvaldinho da Cuíca, o grande articulador, a "cabeça pensante" do samba paulistano. Tia Doca, nascida Jilçaria Cruz Costa, manteve por décadas um pagode dominical que ajudou a manter vivo o samba de raiz carioca; sua participação no disco foi sugerida por Clementina de Jesus, que foi
revelada ao mundo aos 64 anos, depois de ouvida, num botequim da Lapa, centro do Rio, por Hermínio Bello de Carvalho.
Trechos de entrevista de Marcus Pereira, citados no jornal Hora do Povo [completo]
Para Marcus Vinícius de Andrade, “a importância do disco está no fato dele ser o primeiro registro sonoro da música do tempo da escravidão. Apesar de ser um país essencialmente negro, o Brasil nunca tratou bem a sua história musical, daí pouco se conhecer sobre os antepassados do samba, do jongo, do maxixe e de outros gêneros musicais que os negros nos legaram”. (...) “Quando produzi o disco, minha intenção foi exatamente tentar buscar essa arqueologia sonora. Para isso, entre outras coisas, na medida do possível, tentei reconstituir em estúdio o clima dos antigos batuques das senzalas e terreiros e também isso conferiu importância ao disco” (...) “O canto dos Escravos foi a última gravação de Clementina e fico feliz em ver que ela se despediu em grande estilo, com um disco que hoje é referência obrigatória na discografia brasileira”, afirma Marcus Vinícius. Marcus Vinícius conta que, pelo fato de Clementina já estar muito velhinha na época, a feitura do disco foi “uma espécie de gravação pelo avesso, pois começou com a voz solo final”. Ele conta que inventou um sistema para poder gravá-la, já que ela já não conseguia decorar mais e via com dificuldade: “mandei escrever o texto dos vissungos em cartazes com letras bem grandes. Em seguida, ela ensaiava um determinado trecho com o Papete e, em seguida, nós gravávamos - só a voz dela e o atabaque. Depois peguei todos os trechos gravados por ela, fiz a edição de cada música dentro do respectivo andamento e só a partir daí comecei a colocar os outros instrumentos”.
Texto de Aires da Mata Machado, reproduzido no encarte do disco em 1982 e digitado no canal de You Tube de Fred Hubner
Tomei notas apressadas, que vim depois a rejeitar. E, nas curtas estadas naquele aprazível e tranquilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos.
Entendi, posteriormente, de realizar, de vez, o velho plano de recolher os "vissungos", como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da "língua de banguela", certamente transformada em nosso meio.
Quase nada consegui na primeira investida. Lá ficava, porém, o meu colaborador, Araújo Sobrinho, com instruções minhas.
Voltando, mais tarde, encontrei novidades: um vocabulário de duzentas palavras, colhidas na boca de "seu" Tameirão, algumas cantigas e a notícia do falecimento do nosso prestimoso amigo.
Fiquei pelos cabelos, imaginando que tudo estava perdido. Mas não tardaram em aparecer outros conhecedores. E, depois de peripécias que não vêm ao caso, conseguimos, com um outro cantador, letra, música e tradução, ou antes "fundamento", como eles dizem.
Não sei se seremos felizes com as notas e reflexões. O certo, porém, é que só o material, que tivemos a sorte de desencavar em nossa mineração, bastaria para justificar o aparecimento de um livro.
À colheita do material seguiu-se o exame da bibliografia sobre o assunto. Compulsando livros de linguistas e etnógrafos, tivemos ensejo de estabelecer confrontos e reforçar hipóteses. Muitas vezes, vimos a autenticidade dos modestos achados e a plausibilidade das reflexões confirmadas pelas contribuições dos eminentes estudiosos que antes de nós lavraram o terreno. Com isso pudemos evitar, quanto possível, generalizações apressadas, cotejos fantasiosos e afirmações apriorísticas. Se o não conseguimos, não foi por falta de necessária diligência.
AIRES DA MATA MACHADO FILHO
O texto acima foi publicado como introdução do livro "O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, sendo aqui reproduzido com a permissão do autor, que igualmente autorizou o Estúdio Eldorado a realizar a gravação de quatorze das sessenta e cinco partituras registradas naquela obra.
Entendi, posteriormente, de realizar, de vez, o velho plano de recolher os "vissungos", como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da "língua de banguela", certamente transformada em nosso meio.
Quase nada consegui na primeira investida. Lá ficava, porém, o meu colaborador, Araújo Sobrinho, com instruções minhas.
Voltando, mais tarde, encontrei novidades: um vocabulário de duzentas palavras, colhidas na boca de "seu" Tameirão, algumas cantigas e a notícia do falecimento do nosso prestimoso amigo.
Fiquei pelos cabelos, imaginando que tudo estava perdido. Mas não tardaram em aparecer outros conhecedores. E, depois de peripécias que não vêm ao caso, conseguimos, com um outro cantador, letra, música e tradução, ou antes "fundamento", como eles dizem.
Não sei se seremos felizes com as notas e reflexões. O certo, porém, é que só o material, que tivemos a sorte de desencavar em nossa mineração, bastaria para justificar o aparecimento de um livro.
À colheita do material seguiu-se o exame da bibliografia sobre o assunto. Compulsando livros de linguistas e etnógrafos, tivemos ensejo de estabelecer confrontos e reforçar hipóteses. Muitas vezes, vimos a autenticidade dos modestos achados e a plausibilidade das reflexões confirmadas pelas contribuições dos eminentes estudiosos que antes de nós lavraram o terreno. Com isso pudemos evitar, quanto possível, generalizações apressadas, cotejos fantasiosos e afirmações apriorísticas. Se o não conseguimos, não foi por falta de necessária diligência.
AIRES DA MATA MACHADO FILHO
O texto acima foi publicado como introdução do livro "O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, sendo aqui reproduzido com a permissão do autor, que igualmente autorizou o Estúdio Eldorado a realizar a gravação de quatorze das sessenta e cinco partituras registradas naquela obra.
Muito bom.
ResponderExcluir