Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

1 de fevereiro de 2016

Tarde em Brasília, ou como as canções se movem no tempo

Enquanto preparo o texto a ser apresentado no no XII Congresso da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (IASPM) Seção Latinoamericana, a ser realizado entre os dias 7 e 11 de março de 2016, na Casa de las Américas em Havana, Cuba, vou encontrando material de arquivo que se encontra fartamente distribuído pela internet, ainda que não nas melhores condições de áudio e vídeo. 
O trabalho, em co-autoria com o músico e mestre pelo PPG em Música da UFMG, Marcos Sarieddine, e o granduando em História pela UFMG Húdson Públio, bolsista IC CNPq do projeto "Patrimônio Urbano e Música Popular", intitulado“Mesmo assim não custa inventar uma nova canção”: o Clube da Esquina e a Redemocratização no Brasil (1978-1985), versa sobre a participação de músicos populares na construção de caminhos em direção à redemocratização do país, num vasto leque que vai da criação cancional, dedicada a reavaliar a experiência social dos duros “anos de chumbo” e advogar a retomada das liberdades e direitos, à sua participação na re-ocupação do espaço público, pela realização de concertos integrados a campanhas fulcrais (Anistia, Diretas Já), pela articulação a movimentos sociais e atores coletivos da sociedade civil engajados no restabelecimento da democracia, evidenciada tanto em sua atuação como músicos como quanto figuras públicas. 
É particularmente notável a participação, no período compreendido entre 1978-1985, dos músicos associados à formação cultural denominada Clube da Esquina (GARCIA, 2000), encabeçados pela figura emblemática de Milton Nascimento, nas atividades públicas e na produção musical que associamos aqui ao período de redemocratização. Canções tão diversas como Credo (1978), Sol de Primavera (1979), Todo Prazer (1981), Coração de Estudante (1983-1984), ou projetos grandiosos como a Missa dos Quilombos (1982), demonstram o profundo envolvimento desses músicos com os dilemas culturais e políticos de seu tempo, bem como a capacidade da música popular entranhar-se na experiência social, constituindo-se como lócus privilegiado de expressão de estruturas de sentimento, posições sociais e projetos políticos compartilhados.

É nesta perspectiva que propomos um estudo que capte, aliando a investigação histórica que insere as obras em seu contexto de produção e reúna para análise registros documentais diversos (entrevistas, resenhas críticas e fonogramas, principalmente) aos estudos de música popular atentos às escolhas e invenções estéticas que os criadores protagonizam sem estar descolados de seu contexto social e histórico. Além da participação emblemática em concertos, da atuação pública com forte vinculação aos movimentos sociais, pretendemos identificar em suas criações da época o balanço histórico do que se passara e a propensão por ensejar, numa reivindicação de caráter utópico na conotação plenamente política do termo, a expectativa e o desejo pela novidade embutida na abertura paulatina do regime e na perspectiva de viver um tempo regido por outra ordem, democrática. Retomar essa obra invoca o sentido pleno do pensar com a História, uma vez que nos confronta com os significados e perspectivas sonhados e vividos na construção da democracia. 
Aí me deparo com alguns trechos de um programa especial de TV realizado pela Globo em 1982. Mesmo com os problemas de qualidade da imagem e do som, conseguimos experimentar a intensidade e a beleza da obra de Milton Nascimento e seus parceiros. No primeiro trecho, que parece ter sido muito editado, resta de mais consistente a parte final, em que Milton canta acompanhando-se ao violão Minas (Novelli) em frente a uma igreja barroca em Congonhas, e enquanto essa belíssima, melíflua ode às terras mineiras caminha para fade out, ele recita o texto Oração, de Fernando Brant, originalmente elaborado para o espetáculo O último trem, do grupo Ponto de partida. Mais uma vez Brant dialoga com a tradição religiosa católica tão presente na história do estado, novamente apropriando-se da oração Pai Nosso como já fizera em Feira Moderna. Não há sátira mas há um gesto transgressivo, ainda que não destitua completamente. Deus existe, mas não está aqui. Nesse tom que em outros tantos momentos da parceria M.Nascimento e F. Brant podemos encontrar, não há descarte da transcendência e do divino, mas há denúncia e recurso ao cotidiano, ao carnal, ao humano.




Pai nosso que não estas aqui
Sacrificado é o vosso povo
Humilhados e ofendidos são os nossos homens
Deserdados e famintos são os nossos filhos
Feridos e estéreis são os nossos ventres
Aqui, na terra.
O pão nosso de cada dia
A alegria nossa de cada dia
O amor nosso de cada dia
O trabalho nosso de cada dia:
Venham a nós, voltem a nós
De trem, de carro ou navio.
Não nos deixei cair em lamentações
Mas livrai-nos desse vazio.


O outro trecho que destaco traz Milton (voz) e Wagner Tiso (piano) levando Tarde, parceria do primeiro com Márcio Borges (composta em torno de 50 minutos, com a impressionante média de 1 acorde por minuto, num programa de televisão, a partir do mote “Não peço mais perdão” sorteado de um envelope), e foi gravada originalmente no LP Milton Nascimento de 1969 (aquele da igrejinha).  Uma canção muito solene, para não falar tristíssima, que já mereceu interpretações marcantes de ases como Joe Pass ou Wayne Shorter. O recurso de emparelhar a desilusão amorosa e a dureza dos anos de atmosfera plúmbea, encontra nesse outra curva da História uma significação nova. Pois o desejo de sair das sombras, expresso em 1969, ganha em 1982 contornos bem diversos, alinhavados na exploração da câmera que registra Milton e Wagner na paisagem de Brasília. Milton declama um texto introdutório, exaltando a cidade, sua arquitetura (citando Niemeyer) e destacando justamente o Memorial JK nesse trecho do discurso. Em 1969 renascer da solidão, encontrar sentido de viver, superar o sofrimento, era de uma enorme urgência, mas ao mesmo tempo dificílimo, improvável – E mesmo se a dor encontrar – não pedir mais perdão ecoa a resolução de ser resiliente, aguentar o tranco. Em 1982 ela se volta para o futuro – Brasília é uma cidade como um avião, que ainda aguarda “desempenhar seu verdadeiro destino”. A interpretação de Milton, ainda que carregada de sentimento, é ligeiramente mais solar, como se correspondesse ao sol de fim de tarde que compõe com o céu nublado o pano de fundo da apresentação. A resolução da canção, em letra e música (não peço mais perdão/ porque já sofri demais), se estende tanto no vocalise final quanto no arranjo de piano, e o tom solene dá lugar a um breve vôo pássaro que a câmera sagazmente dirige à estátua do ex-presidente JK em bronze, de 4,5 m, esculpida por Honório Peçanha. É como se a voz e o olhar, simultaneamente, mirassem o futuro, divisando uma imagem representativa de um ideal de democracia que despontava no horizonte. Mas, inevitavelmente nos ocorre, a cidade voltada par o futuro parece já carregada de passado.  A arquitetura modernista, que adentrara o imaginário nacional prometendo descortinar o amanhã à vista dos brasileiros, converte-se em tradição (moderna tradição, se quisermos retomar a grande sacada de Renato Ortiz), e JK no seu messias às avessas. Em 1969 restaurar a democracia significava parar de ter saudade do que era um tempo bem recente, de poucos anos no passado. Em 1982 o Golpe já tinha 18 anos! O futuro não realizado de Brasília, parece mais um futuro passado, de repente mal-passado, como de fato revelou-se em poucos anos com a derrocada das Diretas e o arranjo conservador que garantiu a transição democrática sem sobressaltos. Quando pensamos em como uma canção se move no tempo, é preciso considerar mais que apenas a mudança de contexto. Ela pode ser resignificada por uma nova execução, uma outra audiência, por variados detalhes da performance, pelo meio em que está circulando (em nosso caso, por exemplo, um programa de televisão da Rede Globo), uma associação com outros elementos estéticos (como no caso, o vídeo). 



Naquele momento, certamente as nuvens se dissipavam mas havia muitas incertezas, convivendo com grandes expectativas. Sem saber exatamente para onde ia a estrada, mas com muita paixão, talvez um pouco mais de fé cega e um pouco menos de faca amolada, a obra de Milton Nascimento, especialmente na parceria com Brant , desse período em diante bem mais volumosa do que com os demais compositores do trio chave de letristas do Clube, Márcio Borges e Ronaldo Bastos, sinaliza essa acomodação, e talvez seja esse mais um dos motivos de ter sido a que melhor expressou no âmago o sentimento em suspenso desse momento em que se buscava o dia de amanhã mas sem virar devidamente as páginas do dia de ontem.

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