Já faz parte da rotina de quem atua no campo da cultura e acompanha de perto as políticas (e a falta delas), as leis de incentivo e as discussões geradas pela forma como funcionam topar de frente com notícias incômodas a respeito de financiamentos exorbitantes e questionáveis, destinados a artistas consagrados por público e / ou crítica. A bola da vez é a proposta biografia da cantora Cláudia Leitte, contemplada em 100% do projeto para captar R$ 355.927,00 para a publicação de uma tiragem de 2000 exemplares [notícia, aqui]. Para tecer algumas considerações, acabei acessando dados do projeto pelo SalicNet [acesse e busque por palavras-chave como livro cláudia leitte], sistema do ministério da cultura que apoia a operacionalização dos projetos que envolvem renúncia fiscal.
Descobre-se ali que não se trata exatamente de uma biografia, mas "de um livro com entrevista exclusiva da cantora Claudia Leitte para a jornalista Jaqueline Gonzales que será compilado e editado pela jornalista. Além da entrevista exclusiva, o livro terá letras e partituras dos principais sucessos, além de fotos exclusivas de toda a carreira e a biografia da cantora, em português e inglês".
O sistema enquadra-o no Art.18 parag. 3° "b) livros de valor artístico, literário ou humanístico", mas basta ler essa síntese para considerar que se trata, antes de mais nada, de uma peça publicitária com a pretensão de promover a cantora internacionalmente. Empreendimento a que ela poderia legitimamente se lançar por conta própria, levando-se em conta os cachês altos que cobra por show, ou com parceiros privados que certamente se interessariam em ajudá-la a vender tal peça editorial. Embora o relativismo desavisado que tanto convém a esse tipo de empreendedor possa ser evocado para absolver Cláudia Leitte e sua carreira de um julgamento de VALOR (pois é 'valor' o conceito explicitado no Art.18), são ostensivas e patéticas as piruetas retóricas necessárias para convencer alguém de que o projeto em questão atende esses critérios. Como os recursos são finitos e existe um mecanismo de seleção, para o qual inclusive supõe-se que o ministério seleciona avaliadores abalizados, é inevitável que sejam feitos juízos. Para acrescentar ainda mais contundência ao argumento, vejamos na totalidade o parágrafo:
§ 3o As doações e os patrocínios na produção cultural, a que se refere o § 1o, atenderão exclusivamente aos seguintes segmentos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)a) artes cênicas; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)c) música erudita ou instrumental; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)d) exposições de artes visuais; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)e) doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção desses acervos; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)f) produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média metragem e preservação e difusão do acervo audiovisual; e (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)g) preservação do patrimônio cultural material e imaterial. (Incluída pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001)
h) construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar também como centros culturais comunitários, em Municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes. (Incluído pela Lei nº 11.646, de 2008)
Fica nítido que o espírito geral da lei é financiar expressões que a
princípio não seriam viabilizadas por seu interesse mercadológico. E a lei, quando trata de música, considera financiável a música erudita ou instrumental. Não vou discutir aqui se é acertado ou não [poderei fazê-lo noutro momento] mas depreende-se que o foco é para estas manifestações. Mais um elemento que dificulta enxergar o valor artístico maior dessa entrevista exclusiva a ser publicada seguida de acompanhamentos. O ponto aqui não é dizer se Cláudia Leitte é uma artista - efetivamente ela é, independentemente da qualidade do que ela faz - mas sim se a referida proposta editorial tem "valor" nos termos da lei para ser aprovada em detrimento de outras. Efetivamente não é o caso, e para isso contribuí, o que digo sem qualquer intenção de constranger pessoalmente a cantora, que a biografia dela ou seus feitos como artista não alcançam uma dimensão cultural, histórica ou estética suficiente para justificar que o Estado permita que seja gasto dinheiro público com a tal impressão. Repare-se ainda que o projeto está autorizado a captar para renúncia fiscal 100% do valor aprovado - lembrando que o valor solicitado foi R$ 540.000,00. Vendo o valor, já em si exorbitante para uma tiragem pequena, acaba pairando sobre esse tipo de projeto uma sombra que obscurece a lógica da seleção pois parece que não vem ao caso o ajuste entre o montante solicitado e a natureza da proposta no que tange à sua aprovação. No máximo o que se faz são aqueles cortes "pré-fabricados", que aparentemente são como álibis plantados para que se justifique o ministério quando alguém questionar a discrepância: "mas nós até cortamos"...
Vejo tudo isso e me assombro com a constatação de que enquanto um projeto desse deverá facilmente realizar a captação, o acervo de Edu Lobo sob a guarda do Instituto Tom Jobim não conseguiu fazê-lo e assim não pode ser digitalizado para que se torne acessível gratuitamente pela internet. Enfim, as leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal promovem muitas distorções, e críticas bem mais densas do que essas que rapidamente arregimentei para avaliar um caso já foram feitas. Neste caso aqui já é leite derramado*. Esperamos providências há anos, mas trata-se, fundamentalmente, de um esquema que permite retorno certo na forma de publicidade que as empresas realizam com o dinheiro dos cidadãos e ainda lhes devolvem, via de regra, aquilo que o mercado já lhes propicia por sua própria conta, ou seja, a renúncia, do ponto de vista público (favor não confundir com massa, ou com público consumidor) - é o único ponto de vista que conta quando a finalidade e o dinheiro são públicos - não compensa.
*P.S. "Não foi leite derramado"
Hoje saiu a notícia do arquivamento do projeto, a pedido do proponente. Sem dúvida efeito da enorme pressão feita através das críticas que circularam nas redes sociais, na qual esse blog modestamente deixou sua contribuição. No grosso, não faz muita diferença, mas essas pequenas escaramuças dão a medida de que ainda é possível fazer alguma frente aos desvirtuamentos e equívocos na aplicação dos recursos públicos, aqui no caso, na área da Cultura. Vale sim comemorar essa pequena vitória, mas continua a luta para que as políticas públicas sejam democráticas e efetivas, bem concebidas e aplicadas.
*P.S. "Não foi leite derramado"
Hoje saiu a notícia do arquivamento do projeto, a pedido do proponente. Sem dúvida efeito da enorme pressão feita através das críticas que circularam nas redes sociais, na qual esse blog modestamente deixou sua contribuição. No grosso, não faz muita diferença, mas essas pequenas escaramuças dão a medida de que ainda é possível fazer alguma frente aos desvirtuamentos e equívocos na aplicação dos recursos públicos, aqui no caso, na área da Cultura. Vale sim comemorar essa pequena vitória, mas continua a luta para que as políticas públicas sejam democráticas e efetivas, bem concebidas e aplicadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário