Há tempos se fala, entre os criadores e estudiosos no mais amplo aspecto do campo artístico/cultural, na carência crônica em matéria de crítica de alcance público. Chegamos a ver, inclusive, artigos que tratam justamente disso. Recentemente, foi muito saudado como exemplo de crítica um texto de Lorenzo Mammi, "A era do disco" [completo, aqui]. Parte de seu impacto, na verdade, talvez se deva mais a essa carência, uma vez que sua tese central, de que o LP é uma forma de arte, já estava enunciada há mais de 50 anos. Eu mesmo, quando escrevi minha dissertação, fiz a análise de Clube da Esquina (álbum duplo, 1972) na esteira do que já havia sido escrito sobre discos como Tropicália e Sgt. Pepper's (aliás, o incontornável objeto sim-identificado para tratar do assunto, como o próprio Mammi reconhece) repetindo, e eventualmente acrescentando alguma coisa, em relação a essa perspectiva.
O exercício da crítica em tempos atuais tornou-se por demais dificultoso, e, salvo honrosas exceções, acaba por depender também de uma figura que talvez não tenha paralelo na maior parte das cenas musicais pelo mundo afora, que é o crítico-compositor. Temos provavelmente o privilégio de contar com figuras como Caetano Veloso, Luiz Tatit e José Miguel Wisnik exercendo esse papel. No entanto, para uns mais e outros menos, esse lugar não deixa de estabelecer um certo nível de tensão entre sua atuação entre pares e a tarefa de falar do trabalho deles. As leituras mais argutas, as análises mais profundas, o comentário mais generoso ou a opinião mais aguda, todos ficam à mercê de algum incômodo que possam vir a causar.
Os meios massivos, por outro lado, pelo alto grau de comprometimento com engrenagens comerciais, não propiciam via de regra um espaço profissional para o exercício independente da crítica, por parte de jornalistas ou profissionais de formação diversa com domínio e experiência para exercer efetivamente a função de críticos. Formam-se se assim consensos fáceis e um ambiente de tapinha nas costas, embebido em altas doses de correção política.
Isso dito, acho digno de nota (e também tremendamente arriscado) que meu parceiro Pablo Castro venha dedicando parte de seu tempo à tarefa da crítica, com frutos que é possível conferir aqui mesmo no blog em diversas postagens, e especialmente na lista "As 30 + geniais do Clube da Esquina". Por isso pensei ser oportuno republicar aqui dois textos dele bastante exemplares em relação ao assunto da postagem de hoje.
Por Pablo Castro:
Sobre a recepção da crítica
O que mais me encuca é a atitude defendida por vários artistas, segundo a
qual a crítica só é válida se for positiva, caso contrário constitui
uma espécie de traição classista aos companheiros que vivem a vida
difícil de artista. Essa posição implica várias problemáticas e
contradições inerentes à própria vida de artista, e tapa o sol com a
peneira em mais de um aspecto. Por um lado, uma arte sem crítica é uma
arte que já perdeu qualquer elo com o próprio conceito de arte ; em
segundo lugar, enaltecer o espírito de companheirismo entre artistas é
importante, mas negar que todos os artistas atuam em alguma forma de
mercado (como de resto todos os indivíduos de uma sociedade capitalista)
e nesse sentido estão competindo, tanto pelo público, quanto pelo
prestígio, quanto pelas aprovações em editais, é pura hipocrisia. Isso
não significa que qualquer crítica ou qualquer forma de crítica seja
validada a priori, mas o oposto disso também deve valer, qual seja, que a
possibilidade de crítica , ainda que sob a forma de galhofa, é vital
para o desenvolvimento de qualquer campo artístico, e tanto melhor se
essa crítica for pública do que escamoteada, porque na arena pública ela
pode ser debatida, em tese.
Sobre a 'onda fofa' da nova MPB
No contexto , fazer crítica musical enquanto o sistema político está
em plena implosão pode parecer pueril, despropositado e inconveniente,
sobretudo quando o enunciador da crítica é ele também um músico.
Mas ainda assim vou falar: acho essa onda fofa no que se chama de
nova MPB um porre, e é a expressão maior da bolha em que se tornou esse
recorte super localizado que pretende alçar uma amplitude que a MPB já
teve mas não tem mais, não por culpa dela, mas por efeito da sabotagem internacional e corporativa que lhe foi feita sistematicamente desde 1985, pra marcar uma data.
Adoro a delicadeza, eu mesmo me esmero em fazer coisas delicadas, mas
esse hedonismo em redomas com perfume é a antítese de tudo que realmente
se fez perene na produção da moderna canção brasileira : além da
ousadia formal, tanto na música quanto na letra, quanto nos seus
aspectos de expansão, arranjo, interpretação, gravação, fonografia, etc,
a MPB sempre tensionou as questões sociais e culturais, regionais e
nacionais, políticas e antropológicas, de uma forma brilhante, para
agora se restringir a um paraíso artificial e estéril, asséptico e bunda
mole de um romantismo burguês que não leva a lugar nenhum.
É preciso ir além da adequação letra e música, da inteligência dos efeitos de produção sonora, dos timbres modernos, pra fazer jus à moderna tradição do maior cancioneiro do planeta, sobretudo num momento histórico surreal que estamos vivendo.
É preferível ousar e exagerar do que se conformar com uma felicidade de plástico enlatada para consumo gourmet.
É preciso ir além da adequação letra e música, da inteligência dos efeitos de produção sonora, dos timbres modernos, pra fazer jus à moderna tradição do maior cancioneiro do planeta, sobretudo num momento histórico surreal que estamos vivendo.
É preferível ousar e exagerar do que se conformar com uma felicidade de plástico enlatada para consumo gourmet.
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