Motivado por uma conversa recente com o colega pesquisador e igualmente beatlemaníaco de carteirinha Lauro Meller, que não por acaso encontra-se atualmente em Liverpool fazendo o pós-doutorado, lembrei-me de uma pesquisa em campo realizada no final de 2013, por ocasião da 2a. edição da BH Beatleweek. Esse trabalho acabou sendo apresentado em alguns eventos acadêmicos e foi finalmente publicado esse ano, no artigo que escrevi junto com o Pedro Marra, pesquisador e coautor em várias empreitadas e colega de grupo de pesquisa no Nucleurb/CCNM da UFMG. O artigo completo, Praças polifônicas: o som e a música popular como tecnologias de comunicação no espaço urbano, publicado na Revista FAMECOS do PPGCOM da PUC do Rio Grande do Sul, pode ser acessado aqui.
O trecho que destaco acho bem expressivo da nossa metodologia, da forma como procuramos pensar a articulação entre o espaço urbano e o som simultaneamente em seus aspectos materiais e simbólicos, e passa de uma descrição mais geral do ambiente (complementada pelas fotografias que tirei) para a análise de uma situação bem particular, ocorrida dentro do evento, para em seguida, na análise, adotar uma perspectiva panorâmica, global, sem contudo descuidar do objeto em seu contexto micro, local:
"Deve notar-se que os quarteirões fechados proporcionam
uma acústica adequada da forma como configuram lacunas entre duas fileiras de
edifícios que não são altos, mas atuam como paredes. Os bares ou cafés que
promovem apresentações de música ao vivo aproveitam-se dessa arquitetura,
posicionando palcos improvisados e equipamentos de som dos músicos de costas
para as avenidas e para o interior das ruas fechadas, onde estão posicionadas
as suas mesas e cadeiras dobráveis. Percebemos, por um lado, um esforço para
demarcar os limites da propriedade – o que amplia
para o espaço da rua a fronteira do bar e reproduz, portanto, a lógica privada
dos espaços comerciais – e
marcar o perfil do público que se sentam em suas mesas para comer enquanto
conversa e ouve música, e, do outro lado, uma série de práticas que desafiam ou
tentam adaptar-se aos limites impostos. O caso da Status parece particularmente significativo:
As divisórias ostensivas de fato reforçam a
divisão que de alguma forma já opera ali no quarteirão fechado da Status e do McDonald’s. Os meninos pobres, catadores, moradores de rua, hippies
e pedintes ficavam nas margens, embora por vezes se aventurassem em passar
entre as mesas e pessoas que estavam em pé na área delimitada por elas em
frente aos bares. Em geral para pedir dinheiro ou catar latinhas. Um deles
interagiu comigo, um senhor que carregava um saco de lixo nas costas, mas não
catava nada. Bebia uma cerveja e ofereceu colocar um pouco no meu copo, mas
neste havia pequenos churros que comprara no Fujiama, na esquina seguinte à do
quarteirão fechado. Ofereci e ele aceitou um, trocamos sorrisos, e ele seguiu
passando no meio das pessoas. Em outro momento, enquanto uma das bandas (Nélson
e os Besouros - RS) tocava Twist and
Shout, passou por mim um adolescente, descalço, sujo e maltrapilho,
tentando acompanhar a canção num “falso inglês” como aquele que utilizam os
lavadores de carro “otcheiquirobeibe/ pissensau...[well, shake it up,
baby/twist and shout]” e coisas do tipo.[1]
A atividade de catar
latinhas assinala uma liminaridade aí, na medida em que as latas são
simultaneamente o resto do consumo dos clientes do bar e o ganha pão dos
catadores (figura 6). O ‘falso inglês’ por sua vez representa um marcador de
diferença. A apropriação realizada pelo jovem que passou por mim demarca a
tensão entre o inglês globalizado que circula através de uma canção muito
veiculada pela indústria cultural e sua forma “localizada” em que se guarda a
sonoridade mas se impõe uma dicção abrasileirada. Ao cantá-la desse modo o
rapaz não deixa de assinalar que encontra uma forma de integrar o fluxo global
do qual a canção participa, ao mesmo tempo em que se encontra desprovido do
capital cultural/social que o habilitaria a estudar inglês regularmente para
apropriar-se com precisão do que está cantando. Usamos “localidade” aqui como
categoria relacional e contextual, “[...] constituída por uma série de elos
entre o sentido de imediaticidade social, as tecnologias de interatividade e a
relatividade dos contextos” (Appadurai, 1996, p.178). Neste sentido, ao
apropriar-se e “transcultural” em seu contexto o que emite a aparelhagem de
som, esse sujeito participa da produção espacial da “localidade” (Appadurai,
1996, p.179)."
[GARCIA e MARRA, 2016]
Fig.
6: Público nas mesas da Status durante a BH BeatleWeek,
com palco ao fundo; Plano mais próximo da borda do quarteirão fechado,
mostrando artesãs e ambulantes nos bancos de pedra,
14 de dezembro de2013. Detalhe para as grades
de separação em 2° plano.
Fotos: Luiz Henrique Assis Garcia
[1] Luiz Henrique Assis
Garcia. A. Relato de campo, durante a BH Beatle
Week. Praça da Savassi. Belo Horizonte, 14 de dezembro de 2013. 1p.
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