Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

27 de maio de 2016

O "falso inglês" na BH Beatleweek

Motivado por uma conversa recente com o colega pesquisador e igualmente beatlemaníaco de carteirinha Lauro Meller, que não por acaso encontra-se atualmente em Liverpool fazendo o pós-doutorado, lembrei-me de uma pesquisa em campo realizada no final de 2013, por ocasião da 2a. edição da BH Beatleweek. Esse trabalho acabou sendo apresentado em alguns eventos acadêmicos e foi finalmente publicado esse ano, no artigo que escrevi junto com o Pedro Marra, pesquisador e coautor em várias empreitadas e colega de grupo de pesquisa no Nucleurb/CCNM  da UFMG. O artigo completo, Praças polifônicas: o som e a música popular como tecnologias de comunicação no espaço urbano, publicado na Revista FAMECOS do PPGCOM da PUC do Rio Grande do Sul, pode ser acessado aqui
O trecho que destaco acho bem expressivo da nossa metodologia, da forma como procuramos pensar a articulação entre o espaço urbano e o som  simultaneamente em seus aspectos materiais e simbólicos, e passa de uma descrição mais geral do ambiente (complementada pelas fotografias que tirei) para a análise de uma situação bem particular, ocorrida dentro do evento, para em seguida, na análise, adotar uma perspectiva panorâmica, global, sem contudo descuidar do objeto em seu contexto micro, local:


"Deve notar-se que os quarteirões fechados proporcionam uma acústica adequada da forma como configuram lacunas entre duas fileiras de edifícios que não são altos, mas atuam como paredes. Os bares ou cafés que promovem apresentações de música ao vivo aproveitam-se dessa arquitetura, posicionando palcos improvisados e equipamentos de som dos músicos de costas para as avenidas e para o interior das ruas fechadas, onde estão posicionadas as suas mesas e cadeiras dobráveis. Percebemos, por um lado, um esforço para demarcar os limites da propriedade – o que amplia para o espaço da rua a fronteira do bar e reproduz, portanto, a lógica privada dos espaços comerciais – e marcar o perfil do público que se sentam em suas mesas para comer enquanto conversa e ouve música, e, do outro lado, uma série de práticas que desafiam ou tentam adaptar-se aos limites impostos. O caso da Status parece particularmente significativo:

As divisórias ostensivas de fato reforçam a divisão que de alguma forma já opera ali no quarteirão fechado da Status e do McDonald’s. Os meninos pobres, catadores, moradores de rua, hippies e pedintes ficavam nas margens, embora por vezes se aventurassem em passar entre as mesas e pessoas que estavam em pé na área delimitada por elas em frente aos bares. Em geral para pedir dinheiro ou catar latinhas. Um deles interagiu comigo, um senhor que carregava um saco de lixo nas costas, mas não catava nada. Bebia uma cerveja e ofereceu colocar um pouco no meu copo, mas neste havia pequenos churros que comprara no Fujiama, na esquina seguinte à do quarteirão fechado. Ofereci e ele aceitou um, trocamos sorrisos, e ele seguiu passando no meio das pessoas. Em outro momento, enquanto uma das bandas (Nélson e os Besouros - RS) tocava Twist and Shout, passou por mim um adolescente, descalço, sujo e maltrapilho, tentando acompanhar a canção num “falso inglês” como aquele que utilizam os lavadores de carro “otcheiquirobeibe/ pissensau...[well, shake it up, baby/twist and shout]” e coisas do tipo.[1]

A atividade de catar latinhas assinala uma liminaridade aí, na medida em que as latas são simultaneamente o resto do consumo dos clientes do bar e o ganha pão dos catadores (figura 6). O ‘falso inglês’ por sua vez representa um marcador de diferença. A apropriação realizada pelo jovem que passou por mim demarca a tensão entre o inglês globalizado que circula através de uma canção muito veiculada pela indústria cultural e sua forma “localizada” em que se guarda a sonoridade mas se impõe uma dicção abrasileirada. Ao cantá-la desse modo o rapaz não deixa de assinalar que encontra uma forma de integrar o fluxo global do qual a canção participa, ao mesmo tempo em que se encontra desprovido do capital cultural/social que o habilitaria a estudar inglês regularmente para apropriar-se com precisão do que está cantando. Usamos “localidade” aqui como categoria relacional e contextual, “[...] constituída por uma série de elos entre o sentido de imediaticidade social, as tecnologias de interatividade e a relatividade dos contextos” (Appadurai, 1996, p.178). Neste sentido, ao apropriar-se e “transcultural” em seu contexto o que emite a aparelhagem de som, esse sujeito participa da produção espacial da “localidade” (Appadurai, 1996, p.179)."
[GARCIA e MARRA, 2016]

Fig. 6: Público nas mesas da Status durante a BH BeatleWeek, com palco ao fundo; Plano mais próximo da borda do quarteirão fechado, mostrando artesãs e ambulantes nos bancos de pedra,
14 de dezembro de2013. Detalhe para as grades de separação em 2° plano.
Fotos: Luiz Henrique Assis Garcia





[1] Luiz Henrique Assis Garcia. A. Relato de campo, durante a BH Beatle Week. Praça da Savassi. Belo Horizonte, 14 de dezembro de 2013. 1p.

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