Enorme satisfação em compartilhar aqui essa canção, ainda que o mote dela seja, na verdade, insatisfação. A parceria é algo realmente empolgante pra mim, porque se trata de colocar pedaços de nós numa terceira coisa. Cada parceiro que tenho é igualmente um amigo e cada qual a seu modo um comparsa, inclusive na catarse, nos protestos, nas lutas. Nesses dias temerários não tem nada que venha me dando tanto alento quanto escrever, ainda mais canções. Como tenho feito, vou tentar aqui revelar uma parte do processo de criação, sem tirar a graça e o mistério que o rondam.
Tem hora que tudo pode ficar impregnado pelo momento, ou, abrindo um pouco mais o escopo em que entendemos como o presente nos afeta, pela conjuntura, como diriam @s colegas historiadores/as. A guinada à direita que vem ocorrendo nos últimos anos, coroada com o golpe político-jurídico e que atualmente se desdobra numa pletora de absurdos em formas de PECs, MPs, sei-lá-mais-o-quês, posturas autoritárias à luz do dia no judiciário, na polícia militar, enfim, toda uma verdadeira peça macabra, inspira porque a arte em que acredito não deve jamais estar à parte do mundo social, e sim no seu âmago. Foi nesses dias, de um outubro um tanto sonâmbulo, que o meu parceiro Raul Mariano me propôs a tarefa de desenvolver uma letra a partir do que já iniciara. Deixo ele mesmo contar:
"Aos réus nasceu da ideia de compor um afrosamba apocalíptico, falando desse estado de coisas, desse mal-estar coletivo, que vivemos agora. A canção é tocada com o mizão afinado em ré, uma afinação muito usada por baluartes como Baden Powell. Iniciei essa letra tomado por um sentimento de impotência diante dos inúmeros episódios negativos que o Brasil tem vivido nos últimos dois anos no campo social, econômico, político. Com algumas estrofes e a melodia quase toda pronta, convidei o Balu [apelido de longa data deste que vos escreve] para "fazer a coisa crescer" e ele, como de praxe, concluiu a letra brilhantemente. Inclusive trazendo o refrão que ainda não havia."
Assim, peguei a coisa já delineada, e seguramente mais com o fígado do que com as mãos. A forma proposta era basicamente a seguinte A-A-B-A-A'-B-C-C. Blocos pequenos, mas distintos, para cada parte da música, com as 5 primeiras estrofes escritas e o 2° B e a terceira parte (C) sem letra ainda. Um afrosamba apocalíptico, literalmente, tinha um tom meditativo e grave, mas simultaneamente era uma reflexão especulativa, uma tentativa de entender um suposto fim do mundo já decorrido. Daí o fatalismo inevitável, mais conformista impossível, que acabei adotando especialmente na parte C que acaba servindo como refrão ainda que não fosse necessariamente sua vocação. É como uma anúncio de arauto - o dia chegou. Tem umas jogadinhas formais por toda a letra, e aí também (a deus/adeus, por exemplo), que tenho a obrigação de reputar à influência de estar lendo por esses dias a poesia completa de Leminski. Há tempos tinha lido alguma coisa, sempre gostei, mas é diferente quando a gente resolve realmente mergulhar na obra de um poeta. Não tenho a menor pretensão de me colocar como estudioso dele, mas nesse momento a combinação de relaxo e capricho, de humor levado e disciplina formal, sempre ronda enquanto procuro pelas palavras pras canções. Como nessa estrofe, que particularmente adorei ter escrito, e que me passa a sensação de ser um hai-kai que aconteceu no meio da letra toda.
talvez deus tenha ficado nu
ou apressado
comeu o cru
ou apressado
comeu o cru
Trabalhei bem rápido, diga-se de passagem, como parece ser o caso quando a gente está tão tomado por emoções, e meio que molhando a pena em ácido. Mas ao mesmo tempo mantive com a ironia e com o coloquial que o Raul já tinha lançado um certo respiro. Como parece nesse mundo cão que só resta rir, talvez diante da Revelação não seja muito diferente. Nesse sentido, foi uma coincidência incrível ter assistido o filme O novíssimo testamento, em que deus aparece como um destemperado morador de Bruxelas. Outra inspiração inevitável é O Evangelho segundo Jesus Cristo de Saramago. Aqui não se trata de teologia, mas de uma crítica da representação do divino feita por nós, os réus. Nesse sentido, é altamente profana. É quiçá, filosofia de butiquim, como bem convém a um afrosamba. Bebamos a isso. E saravá, Raul Mariano!
Aos réus
(Raul Mariano/Luiz H. A. Garcia)
talvez deus tenha perdido a voz
por um instante
e aconteceu
um descuido e o fim de todos nós
ninguém previu
escureceu
nem suspiro de alma viva vadiando sem lugar
à procura de algum corpo pra poder reencarnar
talvez deus tenha errado a mão
quando moldou
a criação
ou perdeu o juízo e prosseguiu
amou a criatura
e a imperfeição
no sussurro da serpente a ruína já se deu
pelo sangue de seu filho se matou e se morreu
ó céus, abriu-se o véu
a deus
ó réus, o dia chegou
ó céus, abriu-se o véu
adeus
ó réus, o dia chegou
talvez deus tenha ficado nu
ou apressado
comeu o cru
se encheu a cara e riu de nós
trocando as próprias pernas
no paraíso
do zumbido de uma mosca à hecatombe nuclear
fez soar tanta trombeta, fez o copo entornar
talvez deus tenha ficado só
com seus botões
e se esqueceu
vai-se o tempo e tudo volta ao pó
eis o destino
condenação
um silêncio sem tamanho, no dobrar da execução
na derrama dessa trama, já não pode haver perdão
ó céus, abriu-se o véu
a deus
ó réus, o dia chegou
ó céus, abriu-se o véu
adeus
ó réus, o dia chegou
Demais! Que belo registro!
ResponderExcluirValeu mesmo, parceiro!
ExcluirMuito bom. Parabéns aos dois!
ResponderExcluirObrigado pela escuta atenta, meu caro!
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