A terceira* da minha leva de 30 canções sobre o Eldorado Subterrâneo da Outra Cidade é o clássico instantâneo Em Pé no Porto, de Kristoff Silva e Makely Ka . Clássico porque tem aquela fina arquitetura perfeita, irrepetível , de uma letra inspirada com uma música inspirada, em que uma parece tão imbricada na outra que não se sabe quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. (Aliás, se os dois parceiros se dispuserem, seria legal saber quem veio antes, a letra ou a música) .
Se Minas fosse um país separado, Em Pé No Porto já estarei no cânone das nossas maiores canções nacionais. Algo para figurar no panteão das grandes obras. Ao mesmo tempo irônica e lírica, leve e profunda, discreta e vigorosa, Em Pé No Porto foi feita para a Ná Ozzetti cantar, mas quem acabou cantando foi o próprio Kristoff. Ná participou do disco homônimo [aqui, mais faixas do disco], mas cantando outra canção.
Essa linha tênue entre o humor e o lirismo é o fio condutor da canção, cujo desenvolvimento se dá numa primeira sessão de 6 compassos, dois além do 4 para caber a retificação : "muito romântico , muito específico" , o que dá a singularidade arquitetônica da forma dos versos da canção. Depois a música se entrega às quadraturas mais clássicas.
Na primeira parte, "você veio num navio transatlântico", Kris usa tríades maiores, com o Fá de empréstimo maior em tom de Lá Maior. ( A / F / D / D F / D / % ) Depois faz a variante do gambito clássico do A | A7M | A7 ( Something é um exemplo) , invertendo a ordem dos últimos dois acordes, A | A7 | A7M , o que , é claro, muda o efeito , deixando o último acorde com uma ideia de suspensão mais do que de tensão clara. O movimento pendular D7M / F#m6 / , que espelha a pequena titubeação do primeiro verso, dá lugar a uma inclinação , passando pelo empréstimo G7M, ao segundo grau do campo harmônico, de Lá Maior, tonalidade da canção, que é Si Menor. No ritornello, Kris define por se despedir em Fá Sustenido Menor, relativo do tom. Clássico e lindo .
De saída, é uma letra que se coloca da perspectiva feminina, da mulher apaixonada que rumina a falta de um marinheiro que veio do Pacífico e não volta mais. O leve toque de humor vem das rimas em proparoxítonas . É de se notar a artesania fina das aliterações : "você veio num navio" , "ávido de aventuras " " náufraga dos afagos " " partiu numa manhã sem sol , eu fiquei soluçando ali sozinha".Mais do que isso, o ponto de vista da narradora dá, curiosamente, um toque feminino no tal marinheiro, "grávido de segredos" . É como se a mulher compreendesse e antevisse no homem um mistério insondável, no limite feminino, de onde ela busca alento pelo sumiço definitivo de seu amor. Em Pé no Porto foi regravada de imediato por Elisa Paraiso, que já reconheceu nela essa estatura superior de "standard". Depois voltou a ser tocada e regravada, e merece ainda mais.
Pablo Castro
Em Pé No Porto ( Kristoff Silva e Makely Ka )
Você veio num navio transatlântico,muito romântico,
e me olhou com os olhos do fundo do mar...
Eu náufraga dos afagos,
ébria dos abraços,
senti o gosto do seu sal.
e me olhou com os olhos do fundo do mar...
Eu náufraga dos afagos,
ébria dos abraços,
senti o gosto do seu sal.
Você falava de umas ilhas no pacífico, muito específico,
e dos tesouros que haveria por lá...
Tão grávido de segredos, ávido de aventuras,
partiu numa manhã sem sol.
Eu fiquei soluçando ali sozinha,
meu olhar além da linha do horizonte,
sempre o cais.
e dos tesouros que haveria por lá...
Tão grávido de segredos, ávido de aventuras,
partiu numa manhã sem sol.
Eu fiquei soluçando ali sozinha,
meu olhar além da linha do horizonte,
sempre o cais.
Envelheci vendo a maré em pé no porto,
veio um dia após o outro e você nunca,
nunca mais."
veio um dia após o outro e você nunca,
nunca mais."
*N.E.: Considerando que a análise da canção "O princípio da incerteza", da mesma dupla, foi publicada aqui como parte da série mas a antecedeu. Seria, por dizer assim, seu marco zero.
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