Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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11 de março de 2018

O esmero não tem classe

O equilíbrio entre o ensaio de ocasião e o estudo de fundo é precário. Escrever neste blog tem sido para mim uma forma de exercitá-lo, desde sempre. Sem dúvida ainda não alcancei o ponto que idealizo, mas tem havido um trânsito interessante, com textos que nascem aqui amadurecendo e se tornando parte de reflexões mais delongadas, que tenho apresentado em eventos ou mesmo aproveitado na feitura de artigos, como no que recentemente publiquei em parceria com o amigo crítico musical, blogueiro de mão cheia e profundo conhecedor da música popular brasileira, Túlio Ceci Villaça, tratando do disco Todo mundo é bom (2016), do Coletivo Chama [aqui]. 

Neste último sábado tivemos, em horários praticamente simultâneos, dois lançamentos de artistas da mais alta estirpe do cenário musical dessas Minas, o que obviamente é dito sem desconsiderar a dimensão nacional e universal de seus trabalhos. Falo de "Titane canta Elomar na estrada das areias de ouro" no Palácio das Artes e "O anjo na varanda", de Tavinho Moura, no no Bar do Clube da Esquina, ambos em Belo Horizonte. Num daqueles dias em que a gente gostaria de se dividir em dois, compareci ao belíssimo show de Titane e não pude estar no de Tavinho, um lançamento de grande importância. O que já saquei do disco achei de alto gabarito, aliás falar isso do trabalho de Tavinho Moura é chover no molhado.






Aliás, para não ficar redundante, cito as resenhas feitas por meus parceiros Makely Ka para o disco de Titane e Pablo Castro para o show e disco de Tavinho, ambas disponíveis na página de Facebook deste mesmo blog. Obviamente, sugiro que aproveitem o ensejo para conhecer o trabalho de ambos, cuja qualidade os leitores que ainda não conhecem facilmente constatarão. Vamos a elas:

"A proposta de gravar um álbum com a obra do compositor preenche uma lacuna no nosso cancioneiro e se justifica pelo ineditismo do registro de um conjunto de suas canções com forte herança ibérica numa voz feminina de tradição popular. Na linhagem trovadoresca que remete aos provençais e galego-portugueses, Titane estabelece um arco atemporal atualizando a força ancestral dessa obra contemporânea no universo cancional brasileiro. A obra de Elomar é um portal entre dois universos, dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo para penetrar em um imaginário mítico-poético atemporal. A localização geográfica habitada por seus personagens pode ser visualizada facilmente nos mapas, na divisa entre o norte de Minas e o sudeste da Bahia, mas através do prisma elomariano tudo parece transmudado e se desvela um outro universo.
Titane por sua vez sempre pautou sua carreira pelas escolhas rigorosas, do repertório aos arranjos, tudo sempre foi feito de forma a desafiar os limites de sua interpretação, sustentada por uma voz afiada como lâmina. Seu caminho até aqui é único e seus passos sempre foram firmes a ponto de transformá-la numa das mais importantes intérpretes brasileiras. Ela agora se embrenha nas estradas das areias de ouro, no sertão profundo, provavelmente um de seus maiores desafios, trazendo de sua viagem ecos de outrora, visagens do futuro, regalos do presente.
Titane, em trinta anos de carreira ainda não havia se dedicado a um único compositor. Da mesma forma não há registro fonográfico de outra cantora que tenha realizado um trabalho a partir de um conjunto de canções selecionadas da obra de Elomar. É um encontro especial que celebra outros encontros.
Entre eles, o encontro de Titane e Hudson Lacerda, violonista de grande precisão técnica, compositor erudito impregnado pela música popular brasileira, Hudson é um dos responsáveis pela transcrição de partituras do rigoroso Cancioneiro de Elomar Figueira Mello, obra fundamental de registro com um recorte específico e imprescindível da produção elomariana.
Celebra ainda o encontro do erudito com o popular em uma perspectiva subliminar ao optar por um formato acústico que remete tanto à sofisticação das formações camerísticas quanto à simplicidade de um recital de música popular, destacando a arquitetura dos arranjos já intrínsecos às composições e valorizando a imponência da voz em estado bruto.
Cruzando referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste com a herança hibérica disseminada pelos europeus no Nordeste brasileiro, o encontro da cantora mineira da cidade de Oliveira e do compositor baiano de Vitória da Conquista promove uma aproximação de universos diferentes mas complementares, do ancestral com o contemporâneo, do sertão com o cerrado." Por Makely Ka
Sobre o show em si, acrescento que a performance segura de Titane, sempre em contato direto com a terra e encantando o público com a presença cênica e a força de sua voz, completou-se com a poderosa inserção de trecho do Dom Quixote de Cervantes tratando da condição feminina, como a própria cantora explica nessa boa matéria do Estado de Minas. O desempenho dos músicos que lha ladearam no palco foi impecável, e ela gentilmente reservou a cada um uma apresentação especial, mais que devida. Foram eles meu Hudson Lacerda (violão)e André Siqueira(bouzouki), meu querido parceiro Kristoff Silva (diretor musical do álbum, que cantou lindamente e percutiu delicadamente marimba), Aloízio Horta (contrabaixo acústico) e Toninho Ferragutti (acordeom). Nesta apresentação no Programa Sr Brasil é possível ter uma pequena provinha:



O mestre Tavinho Moura lançou mais um disco ontem, O Anjo na Varanda, modestamente e discretamente no Bar do Clube da Esquina. Sua obra parece marcenaria musical. Ele faz canções com um frescor, aparentemente sem nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deveria ser uma canção, que tipo de letra e forma e mesmo harmonia deve ter uma canção. Ele faz canções como objetos sensíveis, como móveis, quadros, cadeiras, mas nada funcionais , apenas objetos nutridos de uma integridade de uma originalidade acachapantes.
O seu canto é rigorosamente atado à melhor prosódia possível, um cuidado metódico. É sempre notável como, em comparação com versões de suas canções na voz de Beto Guedes, um cantor mais animado e emocionado, Tavinho imprime uma sobriedade, um certo comedimento, como para que evitar que a música se superponha à palavra.
Acompanhado pelo insubstituível Beto Lopes , com participações vocais especialíssimas de Mariana Brant, Bárbara Barcellos e Amaranto, Tavinho Moura fez um show bonito, mas o que interessa em sua apresentações é a sua obra, antes de mais nada : trata-se de um criador talhado, mas com temperamento de artesão , com uma profundidade e uma convicção que não dá espaço para qualquer tipo de exagero ou afetação.
Eu aconselho vocês ouvirem esse disco recém-lançado, mas também toda a obra desse compositor extremamente original que temos. Tavinho é gênio. Por Pablo Castro
Do mesmo modo, para completar a apreciação, encaminho aqui um belo texto de apresentação escrito pelo próprio Tavinho e uma pequena provinha.





Para além dos evidentes laços geográficos, que demonstram a incontestável pujança da música popular feita em nosso estado, no contexto nacional e internacional - e deixo a provocação: vejamos a frequência com que ambos os discos serão lembrados naquelas famigeradas listas de melhores ao final deste 2018 - o que quero ressaltar é essa qualidade compartilhada em ambos e afirmada em tantas obras que integram a história de nossa música popular: o esmero, o apuro, o rebuscamento, a elaboração que perpassa esse grande oceano de canções, arranjos, gravações, interpretações e apresentações. Dentre os grandes fenômenos da história da cultura no século XX certamente poderemos posicionar a explosão das distinções apriorísticas entre as hierarquias socialmente construídas para criar, reproduzir, circular e ouvir música. Não resta dúvida de que o desafio às fronteiras previamente estabelecidas, valor estético consagrado na modernidade, teve nos músicos populares alguns de seus melhores protagonistas (aqui não resisto a uma ponte com a trajetória de Piazzolla, cuja biografia foi alvo de uma recente postagem, mas remeto-me ainda à resenha que escrevi do livro O triunfo da música, de Tim Blanning). Mas se o liquidificador energizado pela indústria fonográfica tritura ingredientes e põe no balcão tantos milkshakes cuja variação de sabor mal esconde sua semelhança, não a livra, definitivamente, das contradições que são necessárias admitir para que uma certa magia ponha em movimento o câmbio dos gostos. Seu sabor de mercadoria não pode descartar a insistência de outros códigos concomitantes, de outras ordens que não lhe são completamente coincidentes, como as que regem o campo das artes (ver Artistas da fome e o valor da bolacha) ou o do trabalho do artesão, com seus modos de fazer, estética e esmero. É um lugar comum dizer que a música popular historicamente foi definitivamente imbricada à fonografia. Mas como historiador tenho o cuidado de notar que a primeira antecede à segunda, e de que na receita que a compõe há traços de fazeres musicais anteriores e contrastantes à própria modernidade, ao capitalismo e seus valores. Há gente que esquece disso. E o esquecimento é um dos grandes males de nosso tempo. Aparece, por exemplo, quando se constitui uma percepção binária sobre o objeto música, através de associações mecânicas entre os sujeitos em seus lugares sociais de origem e a lógica de sua produção e consumo. Criou-se uma espécie de fronteira artificial, felizmente desconhecida pela maioria dos músicos, mas obviamente muito conveniente para a vida dos críticos e também dos tais "influenciadores de rede social", cujas opiniões são tão estereotipadas quanto a do um fantasioso bunker  de defensores do bom gosto que pretendem explodir, ignorando que tal já foi feito ao longo do próprio século XX. Uma boa mostra disso se encontra nesta postagem recente, crítica de uma crítica ao último single da cantora Marina Lima. A revolta extemporânea contra o elitismo que pauta tais críticos e de modo geral nuns tantos autointitulados ativistas da cultura, ao desconhecer as rupturas e aproximações materializadas claramente na obra de um Elomar, de um Tavinho, e de resto  um sem número de criadores que povoam a grande galáxia de nossa música popular, aparenta ser inclusiva e tolerante, mas é finalmente conformista, paternalista e excludente, pois sua consequência é subestimar as possibilidades de fruição e elaboração daqueles que supõe defender, além de manter canais fechados onde deveria querer abri-los, como eu já havia considerado nessa postagem em comentário a um texto do Hermano Vianna. Este é um esforço em andamento para superar generalizações e relativizações, e nesse sentido as apreciações dos trabalhos de Titane e Tavinho Moura me pareceram ótimos catalizadores de um raciocínio que ainda preciso burilar, mas que essencialmente trata de reconhecer que o esmero não tem classe, o que não equivale nem de longe a desconsiderar a importância da classe como categoria para pensar sobre estética e criação - o mesmo para qualquer outra categoria chave como gênero, etnia, espaço, campo, tempo, etc. - mas sim entender que a limite para sua influência, como apontei anteriormente em A origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Na verdade, me parece estratégico para a compreensão da vitalidade das culturas populares reconhecer que o esmero não é um elemento estranho a elas, incorporado num enxerto de erudição, de valores elitistas. É mais lógico reconhecer que ela tem suas próprias maestrias e sofisticações, através das quais muitas pontes foram construídas como podemos constatar através de estudos tão diversos como os de Ariano Suassuna ou de Peter Burke. Eventualmente imperceptíveis ao ouvido academicista de anteontem, mas que paradoxalmente hoje estão inaudíveis para a crítica pós-modernosa. Se queremos entender as hibridações e trânsitos que de fato foram responsáveis pela demolição de barreiras culturais e consequente polinização mútua de tantas expressões que nos movem, é preciso superar essa audição folclorista invertida, que na prática expropria todo o oceano de variedade e qualidades de ouvintes que são convencidos que a poça d'água que lhes é oferecida lhes basta porque é sua, quando na verdade é deles tanto o mar quanto o sertão.

1 de novembro de 2016

Eldorado subterrâneo da canção - Em pé no porto

A terceira* da minha leva de 30 canções sobre o Eldorado Subterrâneo da Outra Cidade é o clássico instantâneo Em Pé no Porto, de Kristoff Silva e Makely Ka . Clássico porque tem aquela fina arquitetura perfeita, irrepetível , de uma letra inspirada com uma música inspirada, em que uma parece tão imbricada na outra que não se sabe quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. (Aliás, se os dois parceiros se dispuserem, seria legal saber quem veio antes, a letra ou a música) .
Se Minas fosse um país separado, Em Pé No Porto já estarei no cânone das nossas maiores canções nacionais. Algo para figurar no panteão das grandes obras. Ao mesmo tempo irônica e lírica, leve e profunda, discreta e vigorosa, Em Pé No Porto foi feita para a Ná Ozzetti cantar, mas quem acabou cantando foi o próprio Kristoff. Ná participou do disco homônimo [aqui, mais faixas do disco], mas cantando outra canção.
Essa linha tênue entre o humor e o lirismo é o fio condutor da canção, cujo desenvolvimento se dá numa primeira sessão de 6 compassos, dois além do 4 para caber a retificação : "muito romântico , muito específico" , o que dá a singularidade arquitetônica da forma dos versos da canção. Depois a música se entrega às quadraturas mais clássicas.
Na primeira parte, "você veio num navio transatlântico", Kris usa tríades maiores, com o Fá de empréstimo maior em tom de Lá Maior. ( A / F / D / D F / D / % ) Depois faz a variante do gambito clássico do A | A7M | A7 ( Something é um exemplo) , invertendo a ordem dos últimos dois acordes, A | A7 | A7M , o que , é claro, muda o efeito , deixando o último acorde com uma ideia de suspensão mais do que de tensão clara. O movimento pendular D7M / F#m6 / , que espelha a pequena titubeação do primeiro verso, dá lugar a uma inclinação , passando pelo empréstimo G7M, ao segundo grau do campo harmônico, de Lá Maior, tonalidade da canção, que é Si Menor. No ritornello, Kris define por se despedir em Fá Sustenido Menor, relativo do tom. Clássico e lindo .
De saída, é uma letra que se coloca da perspectiva feminina, da mulher apaixonada que rumina a falta de um marinheiro que veio do Pacífico e não volta mais. O leve toque de humor vem das rimas em proparoxítonas . É de se notar a artesania fina das aliterações : "você veio num navio" , "ávido de aventuras " " náufraga dos afagos " " partiu numa manhã sem sol , eu fiquei soluçando ali sozinha".Mais do que isso, o ponto de vista da narradora dá, curiosamente, um toque feminino no tal marinheiro, "grávido de segredos" . É como se a mulher compreendesse e antevisse no homem um mistério insondável, no limite feminino, de onde ela busca alento pelo sumiço definitivo de seu amor. Em Pé no Porto foi regravada de imediato por Elisa Paraiso, que já reconheceu nela essa estatura superior de "standard". Depois voltou a ser tocada e regravada, e merece ainda mais. 

Pablo Castro

Em Pé No Porto ( Kristoff Silva e Makely Ka

Você veio num navio transatlântico,muito romântico,
e me olhou com os olhos do fundo do mar...
Eu náufraga dos afagos,
ébria dos abraços,
senti o gosto do seu sal. 
Você falava de umas ilhas no pacífico, muito específico,
e dos tesouros que haveria por lá...
Tão grávido de segredos, ávido de aventuras,
partiu numa manhã sem sol. 


Eu fiquei soluçando ali sozinha,
meu olhar além da linha do horizonte,
sempre o cais. 
Envelheci vendo a maré em pé no porto,
veio um dia após o outro e você nunca,
nunca mais."



*N.E.: Considerando que a análise da canção "O princípio da incerteza", da mesma dupla, foi publicada aqui como parte da série mas a antecedeu. Seria, por dizer assim, seu marco zero.

22 de outubro de 2016

Eldorado Subterrâneo da Canção - O princípio da incerteza

Há bastante tempo meu parceiro Pablo Castro aventava a ideia de criar uma série de análises - agudas e holísticas, mas não herméticas ou pesadas - de canções de lavra recente, especialmente aquelas compostas por cantautores nossos contemporâne@s da cena mineira que por 'n' razões - que poderão até vir a ser debatidas por aqui - permanecem ainda alheias dos ouvidos de uma parte substancial do público, certamente sem merecer tal destino. Convencionou denominar esse enorme estoque da produção criativa apartada das ondas mais pujantes dos meios massivos de "eldorado subterrâneo da canção". Considerando tal iniciativa mais que urgente e necessária, além de reconhecer nela a correspondência direta com minhas preocupações com o entendimento da música popular como patrimônio cultural, já estava o blog de antenas atentas para a primeira extração de textos trouxesse os tesouros do subsolo às orelhas e olhos de seus leitores. Ei-la:
Luiz H. Garcia (editor)

--\\//--


Comentei hoje com um amigo uma tese que tenho : pra mim , a grande riqueza harmônica que a música brasileira carrega tem muito a ver com o violão, que é um instrumento barato e portátil, que permite ao músico dedicado e criativo um mundo de combinações de acordes que basta perspicácia e vontade pra explorar.
Não é necessário um grande investimento financeiro para que se busquem nova soluções harmônicas. E elas se expandem para várias direções, não apenas no sentido da complexificação dos acordes e da abundância de dissonâncias.
São minúcias misteriosas que conferem à narrativa afetiva da música novas experiências de fruição. Portanto, eu continuo valorizando esse aspecto da música, sobretudo da música popular. É claro que a música não se resume a harmonia, e muitas e muitas pérolas foram compostas sobre as bases mais simples do tonalismo e do modalismo.
Mas frequentemente vejo novos artistas negligenciando esse aspecto, das possibilidades criativas da harmonia. E pra enriquecer a sua harmonia há tantas possibilidades que me parece, mais do que tudo, preguiça de sequer tentar. 


Pablo Castro entre os parceiros Kristoff Silva e Makely Ka 

Vejo isso também como um subproduto do eterno processo de imposição estrangeira imperialista sobre a música popular. Porque, com a exceção do jazz, e em boa medida do rock sessentista e setentista, a inovação harmonia foi suprimida dos ouvidos das massas.
Digo isso apenas como um preâmbulo para a audição da grande canção O Princípio da Incerteza, dos meus parceiros Kristoff Silva e Makely Ka .
É sabido que Kris quase nunca faz a música antes da letra, prefere quase sempre musicar uma letra pronta. E é notável como ele colore os sentimentos da letra com passagens harmônicas nebulosas, intangíveis, para dar incisividade ao discurso do parceiro. 

Essa é apenas uma das formas geniais de preparar Neston. 
Pablo Castro  




O Princípio da Incerteza ( Kristoff Silva e Makely Ka)
[álbum: Deriva, de Kristoff Silva - ouça aqui]



nossa única certeza é a morte
um princípio e razão fundamental
sua fria beleza é uma arte
nosso elo final com a perfeição
sutileza cirúrgica de um corte
a navalha de Ockan na razão


todo o resto é incerto e duvidoso
um deserto sem sol na escuridão
uma voz de dentro de um fosso
numa língua que não tem tradução


quando tudo jazer inerte
como a lâmina dura do metal
quando o sangue
estancar sua corrente
e então soçobrar respiração
viver cada segundo eternamente
sem sofrer por antecipação

não vai haver qualquer despesa
nem sequer um funeral
um átimo de delicadeza
o peso a entrar em suspensão
21 gramas de leveza
nossos pés já não mais
ao rés do chão 


e se a vida for como uma brisa
um sopro reverso e terminal
o pescoço não sustentar cabeça
o esforço não encontrar ação
esse é o princípio da incerteza
essa é a nossa condição


22 de julho de 2013

Sonhando com outra cidade

Impossibilitado de comparece ao imperdível show 10 anos de A outra cidade [confira reportagem do Hoje em Dia aqui e de O tempo aqui], em razão de ter viajado para participar do Simpósio Nacional da ANPUH em Natal - e de ainda não ter sido inventado o teletransporte - só posso daqui desejar o melhor aos meus amigos / parceiros Kristoff Silva, Makely Ka e Pablo Castro + todos os músicos convidados, um grande show. E dizer que continuamos todos nós sonhando com outra cidade. Nessa cidade (Alteria pode ser seu nome)  o Andante chega sempre ao seu destino. Numa casa de forró, um migrante nordestino toca Xote polaco na sanfona, todo mundo dança. Um estudante, sentado na parada de ônibus, pensa na vida e decide que, de agora Em diante... Do outro lado da rua para um rapaz que lê uma carta, aquela que confirma sua Intuição e o faz rever seus conceitos sobre o amor. Mal sabe ele que Perto daqui passa uma Mulher (vinda) do Norte, aquela que foi salva de Morrer no Mar quando entrou no cinema e ouviu o Tema do mergulhador. Aconteceu no dia em que estava acometida de uma Monotonia gris, pensando em como a delicadeza se desmancha, qual Outra flor de cal. Bem diferente é a menina sentada na esquina que remexe suas Madeixas, tudo pra chamar a atenção, e ficar na Mira do olhar do jovem guerreiro observador das tradições, O chamador tatuado no braço, protegido por um Santo Forte. Mas olha a Volta barroca que a vida dá, justamente esse era o filho de um marinheiro que não tinha porto que prendesse, homem sem deus, adepto do Carpe Diem. Nessa cidade os nexos que ligam as pessoas são paradoxais, mas sua ânsia de ocupá-la e fazer dela seu lugar é Atemporal.


29 de abril de 2012

A outra cidade no Palavra Som

Três momentos ímpares com esses três cantautores ímpares parceiros relembrando A Outra Cidade no Palavra Som.
Para relembrar um pouco mais dessa história, aqui.
Intuição (Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia/Kristoff Silva, Makely Ka)
Mira(Pablo Castro/ Makely Ka)
Andante (Pablo Castro/ Makely Ka)

15 de abril de 2012

Relembrando Outra Cidade


Aproveitando o ensejo, no embalo do Palavra Som, eu e meu parceiro Pablo Castro resolvemos gravar um bate-papo falando sobre a história do Reciclo Geral,  relembrando a concepção e gravação do disco A Outra Cidade (ouvir) e avaliando o significado desses eventos em nossa própria trajetória e no cenário musical, refletindo ainda sobre o ofício de compor canções. Este é apenas um trecho de uma conversa longa, uma parcela da nossa versão de uma história que muita gente pode contar. [Outras conversas como essa...]
Um marco na vida de todos nós o disco A Outra Cidade! Mudamos todos, mudou a cidade e aqui estamos revendo esse caminho percorrido. As sementes plantadas floresceram porque foram regadas, todo mundo continuou fazendo as canções daquela outra cidade. 

Era isso "se a rota torta nos pés a perder / olhar o chão e o grão que ainda vai nascer":



Relembrando Outra Cidade - Pablo Castro & Luiz H Garcia by Luiz Henrique Garcia

7 de abril de 2012

Uma ponte entre a palavra e o som

Aproxima-se um evento que sem dúvida será uma mostra fidedigna da pujança da autoria de canções em Belo Horizonte nos últimos tempos. O Palavra Som celebra essa efervescência, seja ao remeter aos 10 anos do Projeto Reciclo Geral ou ao promover o diálogo entre a geração de artistas que se projetou a partir dali e as novas levas de desbravadores dessas "tortuosas trilhas". Curti muito o videozinho (ver) [e agora mais essa a-mostra]. Me emocionou particularmente a notícia do reencontro em palco de Kristoff Silva, Makely Ka e Pablo Castro, trio responsável pelo já antológico A outra cidade (ouça muito), do qual me honra muito ter participado como letrista em duas canções. De quebra ainda estão programadas oficinas na Funarte MG, para tratar justamente da união da palavra com o som.


Ten years ago today...

Falar disso é um dos meus assuntos preferidos, como pesquisador e como autor. Jogo nas duas, como se poderia dizer em linguagem futebolística. Há mais tempo até ficava querendo separar um pouco essas duas facetas, receoso de uma interferir com a outra. Hoje vejo que a interferência é inevitável e benéfica. E às vezes acontece de forma inesperada. Motivado pelo Palavra Som acabei decidindo contar como surgiu uma canção (de fato  a última que fizemos eu e Pablo) justamente no contexto de um debate sobre a criação das mesmas. Foi assim...

Nos idos de 22 de fev/2012, o Pablo postou e comentou via Facebook uma entrevista n'O Globo com novos expoentes da cena musical carioca. Em torno de temas como cânone, vanguarda, pop, contexto, transcendência, crítica, mercado, arte, técnica, opções estéticas, políticas, "o eixo", Minas, polêmicas muitas (assunto pra várias postagens futuras), pontuadas por provocações mais ou menos intensas, compositores das várias cenas debatendo. Até meti a colher rapidamente, mas curiosamente foi surgindo uma disposição diferente. Três elementos, dentro da intensa discussão, acenderam o pavio da inspiração. Começou com a expressão usada pelo Pablo para pensar a posição de Minas entre a "profundidade" e a "superfície" (e problematizando um certo binarismo repaginado entre Rio e São Paulo). Talvez sejamos uma ponte oculta, ele escreveu.  Deu na hora vontade de ter uma música com esse título. Depois o Flávio Henrique disse que achava que a música diz bem mais que as palavras. Sou de escrever muitas palavras sobre música, mas concordo com isso e aí já estava me sentindo desafiado a fazer justamente uma música. E depois, ainda por cima, Renato Villaça botou que a História iria bater o martelo. O historiador aqui achou a mesma coisa. A comichão converteu-se em dedos ágeis no teclado. Queria colocar as ideias a partir do debate, mas a coisa foi ficando meio enigmática...a letra foi se escrevendo, em torno da ideia de oculto e visível, e a ponte entre opostos, o debate contexto x atemporal e a imagem central é isso, o monolito (trascendência) assiste a estrela cadente (momento)  - acho que dá pra entender a "astronomia" da coisa. Ao mesmo tempo é uma imagem que eu puxei de 2001 com o lance do monolito, tinha pensado no filme como cruzamento de vanguarda e atemporalidade. E no fim a história continua... (aliás, parei por aqui porque senão é como contar o fim do filme para quem vai ler/ouvir). Bem, como fiz a letra e depois o Pablo pôs a música, aqui vai nessa ordem também (daqui uns dias arrumo com a música):

Ponte oculta

A ponte oculta
do canto que partiu
a parte alguma
da nuvem que pariu
do céu ao chão a chuva

que lava a superfície nua
da rua
que leva ao oceano solo
da lua

um monolito transcedente
assiste a estrela cadente
e a história continua

A ponte oculta
da linha que cerziu
a tela rôta
a outra que emergiu
pincel a mão a luva

que pinta o sol fenol na finda
esquina
que limpa a poeira fina da
ruína

um monolito transcendente
assiste a estrela cadente
e a história continua

15 de fevereiro de 2012

Loja Música que vem de Minas: A Música de Makely Ka (2012)

No mês passado eu fiz uma homenagem o nosso querido compositor Mestre Jonas com uma coletânea de músicas dele que haviam sido gravadas por outras pessoas, em CDs de vários artistas/bandas de Belo Horizonte. Foi dai que nasceu a idéia de todo mês homenagear um compositor da nova safra da música mineira, no mês de fevereiro o escolhido foi Makely Ka, nascido em Valença do Piauí e criado em Barão de Cocais, no interior de Minas, ele chegou em Belo Horizonte em 1991 para fazer eletrônica no CEFET. Makely Ka é um dos principais compositores de sua geração. Lançou os livros de poemas Objeto Livro (1998) e Ego Excêntrico (2003). Ao lado dos parceiros Kristoff Silva e Pablo Castro, lançou em 2003 o CD A Outra Cidade.
Comentários de Pablo Castro:
"Só mesmo o Edu Pampani, um dos verdadeiros conhecedores da música contemporânea belorizontina, pra ter uma idéia brilhante como essa : coletâneas de nossos principais compositores.(...) Makely Ka é, sem dúvida, um dos maiores letristas brasileiros da contemporaneidade, se o resto do Brasil não conhece seu trabalho, isso não lhe tira o título. Como se não bastasse, ele também é compositor de música, com seus arpeggios inimitáveis ao violão, e uma aridez melódico-harmônica que vem de outro canto (...)"
Assino embaixo e faço questão de divulgar via Massa Crítica MPB. Vida longa a essa iniciativa do Edu.