Como geralmente costuma ocorrer na minha vida dupla como professor e compositor, justamente quando eu mais preciso me concentrar num desses lados o outro parece que resolve se manifestar com força. Final de semestre portanto é de lei, preciso corrigir trabalhos, lançar notas, cuidar do fechamento de disciplinas, mas as demandas para novas letras e canções costumam aparecer com força. E são inclusive, muito mais prazerosas de se atender, via de regra. Em meio a trabalhos e parcerias sou brindado com esse vídeo do Raul Mariano tocando a primeira que fizemos, Cidade de aço. Posso dizer que foi um começo muito promissor. Como já devo ter escrito algumas vezes, não sou daqueles letristas por encomenda, que encaram a coisa de um ponto de vista estritamente profissional. Pra mim é uma aproximação na arte e na vida. A parceria só rola com quem eu sinto essa afinidade e compartilho perspectivas estéticas e visões de mundo, além de uma admiração mútua. Tenho sido muito felizardo quanto a isso, e meu leque de parcerias aumentou muito nos últimos anos. Cada parceria é uma história, uma alquimia diferente. E também os métodos de composição podem variar de acordo com essa química.
Não sei de estatísticas mas é muito provável que em canção popular seja mais raro que um texto seja musicado do que o inverso. Até mesmo quando a mesma pessoa faz letra e música, é mais corriqueiro que surja primeiro a música. Estou certo que já coloque mais palavras para os sons que me chegaram, também. Mas tenho o hábito de, vez por outra, escrever algo que eu imagino ser uma letra de canção, ainda que a música seja algo subentendida, insinuada. Não considero isso de forma alguma um poema, porque eu costumo pensar num gênero, nas suas convenções, e também na forma, colocando muitas vezes um refrão, ou indicando um "B", enfim, já pensando que o destino daquele texto é ser derramado num canal melódico. Cidade de aço foi assim. Parti de uma experiência bem pessoal, que foi ter lecionado no Vale do Aço, em Minas Gerais, cuja cidade mais populosa é Ipatinga. Claro que isso é apenas um mote inicial, e evidentemente a escrita não está presa à concretude do que se vive.
Comecei a pensar em toda uma tradição do cancioneiro popular sobre migrantes, êxodo rural, a dureza da vida nas grandes metrópoles para quem saiu da sua terra em busca de dias melhores. Usei nas estrofes iniciais o esquema ABBA, ou seja, rimas interpoladas. e no refrão fui menos formalista, ainda que haja rimas intercaladas. Enfim, é um lance muito simples e direto, uma canção engajada bem básica. Quando o Raul me pediu um material para arriscarmos sair uma canção, remexi no baú e encontrei essa, que tinha sido feita por volta de 10 anos antes, na época. A gente nunca sabe quando essa semente vai brotar. Me impressionei logo pois não demorou muito pra ele me devolver uma primeira investida na feitura da canção. Ouvi, curti o balanço, mas achei que não era por ali. E aí pinta aquele momento chave em que descobrimos se a parceria funciona ou não, quando a gente precisa falar o que pensa para o parceiro e sentir que há uma confiança mútua, feita para encarar de peito aberto as dúvidas e desafios da criação. Expliquei melhor o que tinha imaginado musicalmente enquanto escrevia e o Raul captou muito bem, tanto que logo em seguida veio com o andamento e interpretação mais afinada ao que eu tinha pensado. Trocamos ainda ideias sobre possíveis arranjos, algumas delas talvez perdidas no limbo das conversas no ciberespaço. Juntando tudo no que, depois de tanto tempo da letra que ficara hibernando numa pasta do meu computador num arquivo txt, foram alguns dias de trabalho dele, sem que eu tenha feito qualquer revisão notável do que havia escrito, e finalmente deu-se por inaugurada essa parceria que já rendeu outras tantas, e certamente ainda tem muito que gerar pela frente.
Cidade de aço (Luiz H. Garcia/ Raul Mariano)
Pelas curvas traiçoeiras
eu sigo no meu caminho
qual quixote sem moinho
mercador sem algibeiras
Trago nada que não seja
o sol brilhando na testa
e a esperança quinda resta
no punho de quem peleja
> refrão
Muita gente que nem eu
já veio no mesmo traço
fiando de fazer a vida
na cidade de aço
> *2 parte refr:
E na hora derradeira
o corpo sente cansaço
a vida perdeu seu fio
na cidade de aço
Ao longo das ruas frias
o sol lambendo vitrine
antes que o dia termine
volto ao lar de mãos vazias
Sei que lutar é preciso
contra o que não sei direito
mas tiro esse grito do peito
no semblante boto aviso
> Muita gente que nem eu
já veio no mesmo traço
fiando de fazer a vida
na cidade de aço
> Mas na hora verdadeira
de erguer tudo no braço
tô firme na dura lida
da cidade de aço
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