Faz tempo que não posto aqui uma novidade da produção cancional. Para matar a saudade, eis que pintou um vídeo de uma parceria nova, saindo do forno, que fizemos por esse dias eu e o Pablo Castro. As inspirações iniciais são óbvias, o violãozinho gilbertiano filiado em Refavela e a letra, iniciada pelo Pablo - como de resto tem sido várias de nossas últimas parcerias - começou, nas palavras dele, "(...) querendo escapar desse cárcere tenebroso do presente histórico, tentando entender as grandes linhas da história. Em vez da terra prometida, comecei a aspirar pelo povo prometido". Tenho sempre em mente que ser historiador claramente me afeta enquanto compositor também. Mas poucas vezes isso fica tão evidente no que eu faço como nessa. O mote estava ali e eu não poderia deixar de segui-lo. Era uma canção já redondinha, no formato A-A-B, repetido 3 vezes. Partindo de uma arguta apropriação do mote bíblico da terra prometida, a letra propunha uma visada de longo alcance sobre a História, partindo das cruzadas e caminhando rumo à colonização - ia até o "idílio dos tupinambás" - e sugeria uma leitura crítica que desembocaria numa outra promessa. Meu trabalho portanto era conduzir adiante esse esforço de síntese - o que é a canção senão síntese? Nesse sentido o historiador teve que se permitir muitas licenças poéticas, caso contrário iria ter que escrever um livro e não uma letra de música. Consegui fazer o foco ir se deslocando entre a História do Brasil e contextos mais amplos, ainda que definitivamente pesando mais pra cá. É certamente uma interpretação muito crua e altamente politizada, provavelmente panfletária, que apela sem constrangimento para a saída da revolução popular e lança mão de um sem número de imagens recorrentes na tradição das canções de protesto e do engajamento político na arte. Sem culpa nenhuma, diga-se de passagem. É meio uma mistura de discurso de Antônio Conselheiro em filme de Gláuber Rocha com trechos de Caio Prado Jr. discutidos na cantina da Fafich. Lembrei de muita coisa que li sobre movimentos milenaristas, revoltas populares e afins. Inclusive o livro do historiador britânico Christopher Hill, de onde eu saquei a expressão "O mundo de ponta-a-cabeça", que ele mesmo explica ser um clichê de movimentos populares diversos, chamado por inversão da ordem como na conhecida frase atribuída ao Conselheiro, "O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão". É impressionante a radicalidade desses movimentos. Nenhuma revolução prescinde dessa ideia de inversão dos termos, de reordenação do mundo. É possível reconhecer um eco de canções brasileiras dos anos 1960, e eu certamente me lembrei de várias delas enquanto bolava os últimos versos. Deixei por outro lado um distanciamento irônico - se é com deus ou sem - mas aquela certeza redentora, o povo prometido chega e canta. Provavelmente poderão chamar tudo isso de panfletário, idealista, ingênuo, populista. Nem sempre isso será um demérito, mas quando for eu creio que é o caso de assumir a decisão de dizer algo com um pouco mais de convicção num tempo abarrotado de incerteza e de discursos ambíguos e enviesados, quando não desonestos. Nesse sentido, para o melhor e o pior, isso é uma canção popular e não uma tese de doutorado.
Sobre aspectos mais formais, não tem tanto o que dizer. Algumas brincadeiras aqui e ali, rimas internas, citações, e um detalhe que vale a pena mencionar que é a inserção marota de todas as peças do tabuleiro de xadrez - jogo pelo qual nós dois nutrimos grande apreço há bastante tempo. Claro que não se trata só de um lance formal, já que o xadrez é ele próprio uma representação da sociedade e uma encenação de uma batalha.
O povo prometido
(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
(Pablo Castro/Luiz Henrique Garcia)
As narrativas que a História traça
da terra prometida pra ninguém
montanhas removidas, vãs batalhas
pelo domínio de Jerusalém
da terra prometida pra ninguém
montanhas removidas, vãs batalhas
pelo domínio de Jerusalém
Em nome da rainha os seus piratas
garantiam sempre o chá das seis
e os alemães, franceses e batavos
cavalos a serviço de outros reis
garantiam sempre o chá das seis
e os alemães, franceses e batavos
cavalos a serviço de outros reis
Aqui a América era um mundo longe
um estranho idílio dos tupinambás
fincaram a cruz no coração da terra
a sugar
um estranho idílio dos tupinambás
fincaram a cruz no coração da terra
a sugar
As feitorias, chagas pela costa
a escravidão verteram pelo mar
um oceano negro então se espalha
dos desterrados filhos de Oxalá
a escravidão verteram pelo mar
um oceano negro então se espalha
dos desterrados filhos de Oxalá
Por ordem da Coroa a Companhia
lavrou a gente, a planta e o animal
os galeões no porto abarrotados
da conversão de sangue em vil metal
lavrou a gente, a planta e o animal
os galeões no porto abarrotados
da conversão de sangue em vil metal
Aqui o Império feito uma aquarela
pros pretos, pardos, pobres n'aguarrás
a fé, café, moinho, latifúndio
açúcar
pros pretos, pardos, pobres n'aguarrás
a fé, café, moinho, latifúndio
açúcar
Entre monarcas e usurpadores
Sebastiões que nunca voltarão
muitos peões pedindo aos pés das torres
numa revolta o céu assaltarão
Sebastiões que nunca voltarão
muitos peões pedindo aos pés das torres
numa revolta o céu assaltarão
Sem coronéis nem gringos conspirados
os desprovidos podem prosperar
botar o mundo de ponta-a-cabeça
meter as mãos na prata do jantar
os desprovidos podem prosperar
botar o mundo de ponta-a-cabeça
meter as mãos na prata do jantar
Aqui os canibais devoram bispos
Macunaímas sorvem guaranás
Macunaímas sorvem guaranás
Revolução do povo prometido
a cantar
a lutar
Vale observar que mudamos o último verso já dentro do estúdio, no dia da gravação com participação especial do cantor Sérgio Pererê.
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