Acabei de saber que a cantora Marina Lima está para lançar disco novo e soltou ontem para o público a primeira amostra deste trabalho, o funk Só os coxinhas, que assina junto com seu irmão e parceiro Antônio Cícero. Provavelmente eu teria deixado passar batido,não fosse pela crítica de Mauro Ferreira [completa, aqui]. Reputo Mauro com um dos poucos bons críticos musicais que estão aí na grande imprensa. Costumo gostar de seus textos , independente de concordar ou não, e muitas vezes concordo. Dessa vez não gostei nem concordei. Tem suas qualidades e fez o que se espera de uma crítica decente. Fui levado por ela a ouvir a faixa. E foi aí que a porca torceu o rabo, porque a propaganda me pareceu muito enganosa. Vamos ver se me explico.
Antes de qualquer coisa deixo bem claro ao meu leitor que não sou versado em boa parte do repertório do funk, um gênero que não me atrai e do qual conheço basicamente aquilo que circula pelas cadeias midiáticas ou que eventualmente sou levado a ouvir na condição de pesquisador. Estarei a partir daí sob a exigência de não deixar qualquer antipatia implícita ou explícita nublar o teor dos meus argumentos. Há portanto pontos cegos sobre os quais eventualmente algum leitor poderá esclarecer e até encontrar por eles inconsistências no que vem abaixo. Enfatizo também que isso aqui não é um tribunal de julgamento de um gênero musical como um todo, e sim uma simultânea crítica da crítica e crítica do objeto da crítica, portanto, dessa canção especificamente.
Começo do começo, ou seja, do título da crítica: Marina faz história ao reproduzir códigos e linguajar do funk com o imortal Cicero. Achei extremamente exagerado. Como historiador eu poderia adentrar numa enorme digressão sobre o significado modernamente fetichista da expressão "fazer história". Tentarei evitá-la. Trata-se um clichê conveniente que serve para rapidamente afirmar a importância de algo a partir da percepção linear sobre o tempo. Vou me abster de elencar toda a historiografia do século XX dedicada a mostrar que qualquer um de nós, notório ou anônimo, "faz história". A expressão tem uso corrente e fácil quando se trata de um objeto estético qualquer, e nesse sentido fazer história seria inovar, fazer o que ainda não foi feito, surpreender. Ora, justo o primeiro parágrafo do texto contradiz seu título. Nada mais banal do que 'n' artistas brasileiros que não pertencem ao universo imediato do funk praticarem o diálogo com o mesmo. Não tenho receio em cravar, assim, que esse funk não 'faz história' no sentido em que o Mauro reivindica. Nem mesmo pelo argumento mais que furado de assinalar a erudição do "imortal" Antonio Cicero. Ora, antes de mais nada é curioso reivindicar numa crítica que pretende questionar uma "elite cultural" [as viúvas da MPB, assunto que ainda retomarei] tomando como crivo uma instância caquética (ABL) que esta mesma elite não tem o costume de reconhecer. Acredito que não preciso provar que Chico Buarque ou Caetano Veloso - pra ficar em dois grandes nomes do panteão da MPB - teriam méritos suficientes para figurar entre 'imortais' se fosse o caso, os dois já buliram com o funk e nem por isso fizeram história. Também não causa choque nenhum o encontro entre a Academia e o Funk a essa altura. Há teses e dissertações de sobra sobre o tema, e já faz tempo que a Popuzuda virou 'professora' de filosofia. Marina, por outro lado, não faz nada de novo, nada "de/mais" nesse flerte, afinal sua carreira navega nas ondas do pop desde sempre, como o próprio texto mostra muito bem. Não vai aqui nenhuma intenção de jogá-la na vala comum - onde não está - mas simplesmente de relativizar o peso da sofisticação (eu nem colocaria aspas) no todo de sua obra. Trata-se de uma crítica, e não de "jogar pedra". Aliás, sintomático que a resenha venha com esse contra-ataque preventivo. Numa retórica equivocada, pretende antecipar que a crítica que venha seja enquadrada como reação impertinente, careta. Careta é a tentativa de vedar a crítica a priori.
Entrando na gravação em si, parece acrescentar muito pouco à obra dela e também ao funk. Porque, me parece, é tão exterior, tão pouco orgânico quanto ao mundo do funk, que se apresenta como algo no meio do caminho. É ruim como funk e ruim como uma outra coisa que estivesse se apropriando do funk. Apesar da produção, de repente ter um timbre que lembra uma guitarra distorcida fazendo um 'prefixo' que em quase todas as ocasiões seria realizada através de um som mais 'eletrônico' que propriamente 'elétrico', de fato é uma emulação - é significativo que seja esse o termo empregado pelo Mauro Ferreira. Talvez toque mesmo nos bailes, provavelmente nas "baladinhas top" frequentadas predominantemente pelos coxinhas que ironiza, mas certamente não rivaliza com o poder de embalo e de detecção dos grandes pontos de tensão da existência contemporânea e do conflito social, como alguns funks efetivamente conseguem. A questão não tem muito a ver com 'vulgaridade', e sim com contundência. A interpretação dela, sem energia, cansada, só corrobora essa sensação. A letra é igualmente uma emulação do estilo falsamente infantil, com as rimas reiteradas em 'inho' a coloquialidade, a narrativa coreográfica em imperativos e explicitamente sexual, 'realista', mas a esta altura do campeonato, ingênua, educadíssima. "Pagar cofrinho" e "abaixar um pouquinho" não escandaliza ninguém. Não há uma aproximação antropológica ou pesquisa, por assim dizer, do que está em uso corrente. Tanto que eu, assumido desinformado em matéria das expressões que circulam nas quebradas, reconheço todas. Poeticamente, portanto, não há trabalho além da compilação de expressões que já caíram em desuso em vários funks correntes. Aliás, nada mais demonstrativo disso que a citação de "O baile todo" (2001) do Bonde do Tigrão e seu bordão mais consagrado, "só as cachorras". Ironicamente "Só os coxinhas" chega a ser, musicalmente, um funk retrô. Se o intuito é chocar fica difícil de saber quem ficará chocado. Por outro lado, me parece que o efeito mais provável será bem diferente, agradar aos ouvidos de uma certa fatia de ouvintes de classe média que já conhece o trabalho da Marina e se regozijará com sua investida no gênero, ao qual estão mais que acostumados, e a provocação direcionada aos coxinhas, os quais provavelmente não darão a menor bola. Ou dançarão como se a letra não tivesse importância (uma possibilidade real quando se trata de música dançante), ou não chegarão a ouvi-la porque pelas razões expostas acima pode ser que o vaticínio de que venha a ser um hit não se confirme. Espero até estar errado mas parece improvável que essa investida angarie novos fãs para Marina. Temo que o tiro saia até pela culatra, ou, quando muito, que o revólver esteja sem balas. Não fica claro pra mim o que acrescentam dois artista do calibre de Marina e Antônio Cícero (nisso corroboro a apreciação do autor da crítica) com "Só os coxinhas", no final das quantas. A provocação é inócua quanto ao seu objetivo.
Como também dispensável, voltando à crítica, o queixume sobre uma suposta "elite cultural" que pretende impor os parâmetros de qualidade da MPB à toda apreciação musical. Além de lugar comum, acho desnecessária por dois motivos. O primeiro é que essa suposta elite, se existe, não apita nada, não tem influência sensível no que toca nas grandes mídias e portais das redes, não orienta a produção mais do que no alcance do pequeno nicho que lhe presta atenção. Estou certo que a Marina não precisa se preocupar em nada com supostos detratores, desempoderados que são. Segundo, e muito mais sério, é um desserviço apontar as baterias a quem já perdeu hegemonia no mercado (e daí?) e nunca pretendeu ser o único parâmetro. Atribuir a pecha de 'viúvas' a seus apreciadores e praticantes, nos quais me incluo duplamente e sem o menor constrangimento, é um grande equívoco. A MPB está vivíssima, provavelmente mais como bichos livres nas matas do Brasil do que como animais de zoológico. Acho uma tremenda falta de compreensão sobre o que representa a MPB na história da nossa música popular esse tipo de comentário. Como escrevi nas notas a O pós-futuro do pós-brasil, em esforço combinado com o crítico Túlio Ceci Villaça, nos anos 1970 até a subversiva e includente Tropicália "passou de supernova a anã branca, foi inevitavelmente atraída pelo campo gravitacional da galáxia MPB em expansão"[aqui o artigo completo]. Diante da responsabilidade do crítico com a história e com a formação dos ouvintes me sinto obrigado a ressaltar que Chico e Caetano, "imortais" da MPB, chegaram antes de Marina e Antonio Cícero.Seria mais adequado convidar os interessados em funk em procurar saber disso. Não acho que funkeiros tenham que pedir a bênção nem nada do gênero. É até normal que rejeitem quem vem antes, eis aí uma das mais manjadas estratégias de aparecer no campo da arte, tanto quanto se afirmar como continuador, e, desde a modernidade, bem mais eficaz. Mas pode ser um trabalho válido da crítica justamente questionar toda forma de "guetificação" da criação e da audição, e não só, num indisfarçável paternalismo, a que supostamente é praticada pela tal "elite cultural". Identifico em muitos músicos que reverenciam a MPB uma atitude bem mais aberta ao que está fora do seu escopo do que em outros gêneros. Bater nela com esse pau parece muito clichê, e lamentavelmente ganha o aplauso fácil de desavisados que recaem, eles sim, num binarismo condenável.
Numa uma última volta crítica, digamos que eu não esteja percebendo (e nesse sentido o Mauro também não teria percebido) que tudo isso, como a coxinha, tem uma outra massa, envolta na capa. Haveria aí uma crítica à massificação, à fórmula pronta, ao entupir o ouvinte com os clichês? A provocação ao consumo fácil? Talvez a obviedade ululante da letra permitisse essa leitura. Mas aí não fazem sentido as menções aos elogios de Marina direcionados a Anitta, por exemplo. Parece mais uma tentativa sincera, e mal sucedida, de produzir um funk irônico em relação aos coxinhas, sem caninos suficientes para dar a dentada, tornando-se assim uma bem comportada provocação de supermercado.