Parece ser um fenômeno recorrente da História da Cultura que, se de um lado haverão aquelas expressões que tentarão expressar o mais acuradamente possível aquilo que se pode chamar de zeitgeist, ou visão de mundo, imaginário, enfim, o que busca de algum modo capturar o que podem modos socialmente compartilhados de traduzir a experiência social num determinado contexto histórico (portanto, de forma sincrônica, como poderia pensar junto com Carl Schorske), haverá também resíduos ou retomadas de outras que, desse modo, retornam do fundo dos oceanos do esquecimento cultural no refluxo de uma vaga nostálgica. Evidentemente, haverá aí algum grau de anacronismo, mas simultaneamente esse movimento na diacronia revela um dos muitos modos pelos quais o passado não morre simplesmente, não por completo. Caberá à crítica da História da Cultura compreender o que representa, no presente, a reentrada de meteoros que pareciam há muito resfriados. Seja qual for a razão, terá que revelar o nexo, que mesmo esquecido não desvanece por completo, entre duas épocas, sejam elas mais ou menos distantes entre si.
E nos tempos correntes, e já desde pelo menos os anos 1960s, o fenômeno cultural da nostalgia se intensificou na forma que tomou inserido na indústria cultural e na configuração do "modo" pós-moderno da experiência histórica, em que um presente onívoro e regorgitante absorve e despeja incessantemente versões recicladas de fragmentos do passado e reedições do futuro distópico cuja distância em relação à atualidade parece reduzida a quase nada. Vencida a confiança inabalável que a modernidade promovia em relação a um supostamente inevitável "novo", somos compensados pela insistente reapresentação do "antigo" recoberto de por uma camada de sonho e açúcar.
O recente frisson em torno do retorno da dupla Sandy e Júnior nada mais é que uma demonstração empírica dessa busca pelo conforto de "reconsumir" o que já foi consumado [notícias a respeito: aqui e aqui]. Ruminar (o que também seria próprio dos unicórnios caso existissem) é o estágio atual do entretenimento em escala planetária. Não vou, claro, gastar os meus dedos fazendo discussão do pretenso show, dos comentários das colunas de imprensa que dificilmente poderemos chamar de crítica. A música de Sandy e Júnior não merece muito mais comentário que isso. Sua longevidade terá sido muito mais em função do conhecimento das engrenagens que literalmente herdaram do pai Xororó, mais do que qualquer eventual habilidade musical. A dupla, entre outras tantas "atrações" montadas pela indústria fonográfica e jabafaraônica dos anos 1990 para atender o mercado infanto-juvenil e adolescente, cujo maior fenômeno de vendagem foi Xuxa, nada tem a acrescentar do ponto de vista do que pode durar para além de espasmódicas vontades acionadas nessa chave retrô. Especialmente diante de um patrimônio inestimável de canções, desde aquelas folclóricas ou de domínio público, onde encontramos pérolas de admirável lirismo, passando pelo repertório impecável composto e apresentado para o público infantojuvenil pela nata dos nossos criadores, especialmente entre os anos 1970-80, e chegando a trabalhos recentes inspirados encabeçados pelo duo Palavra Cantada.
Adolescentes, via de regra, tornaram-se o público preferencial do pop de ocasião, e talvez tenha sido naquela geração que qualquer fio da meada possível entre os repertórios históricos da música brasileira, tão bem defendido pelos protagonistas da Era dos Festivais, inovadores que jamais descuidaram - nem mesmo os iconoclastas tropicalistas - desse elo com o repertório do passado. Não é coincidência que isso tenha sido concomitante ao esfarelamento das instâncias de consagração crítica para grande público que promoviam, todas elas obliteradas pelo ethos do sucesso de circunstância, ainda que hoje se tente fazer, também desses, uma afirmação de lastro na memória social. Diante do caos da crise, da
dissolução dos valores, das incertezas pós-modernas, consumidores
abonados e desnorteados buscam uma volta ao útero do pop unicórnico de
sua infância.