Acabei de assistir o documentário John & Yoko: above us only sky - Só o céu por testemunha. À primeira vista, pode até parecer redundante levando-se em conta a infindável massa de material audiovisual que já foi produzida, começando pelo próprio filme Imagine que acompanhou a produção do álbum homônimo, passando por outros "making offs" e documentários de cunho biográfico que inevitavelmente abordam o mesmo assunto. Com tudo isso, a produção em pauta aqui tenta trazer novos materiais de arquivo e depoimentos que possam representar algum ganho, mesmo para os beatlemaníacos mais bem abastecidos que se encontram por aí. E, ao menos em parte, alcance esse objetivo, com entrevistas mais recentes e bom aproveitamento de uma grande massa documental que foi gerada à época. Destaque para os testemunhos de músicos como Klauss Voormann e Alan White, do ativista e escritor Tariq Ali, de Julian Lennon e de engenheiro de som, fotógrafos e outras pessoas que estavam atuando nos bastidores e entorno do processo de gravação. Considerando as produções anteriores, não me pareceu que esta traz grandes novidades sobre os aspectos criativos do ponto de vista musical mesmo.
Como historiador e principalmente, como alguém atento à produção da memória social, vou ressaltar alguns aspectos que subjazem às recorrentes retomadas de 'objetos' e 'enredos' no cenário da indústria cultural contemporânea. Um misto de falta de assunto, renitente nostalgia e racionalidade mercadológica se combinam na persistência em polir reiteradamente um mesmo diamante. Se não se resume a isso, inegavelmente a indústria cultural tem na sua lógica um apreço pela redundância, tanto na forma quanto no conteúdo. E essa engrenagem funciona até mesmo para extrair mais alguns quilates de ouro até de um trabalho que de alguma forma almeja outro registro, como era o de Lennon e Yoko.
Precisamos saber olhar para esse acúmulo, entendendo que diferentes intenções e camadas de lembranças e contextos vão se sedimentando, se acomodando ao tempo, às mudanças de quem detém direitos e meios, e ao próprio público. De fato, cabe a reflexão que o historiador Jacques LeGoff propos através do conceito de documento/monumento. Se escolhermos como fio condutor de nossa análise de "Só o céu por testemunha" a abordagem sobre a canção título, vamos ver como existe a intenção de consagrar a recente atribuição de crédito de autoria de Yoko [aqui uma matéria que explicita, inclusive, algumas razões legais por trás dessa questão]. O argumento usado no ganho de causa é repetido exaustivamente, com aparições do livro Grapefruit [aqui] e do trecho de áudio da entrevista em que John alega que não teria dado à companheira o crédito devido anteriormente. Essa querela poderia ir mais longe, e sobre ela já me posicionei, aqui vou apenas resumir que: a) inspiração não é o bastante para caracterizar crédito autoral; b) Lennon não tomou nenhuma providência legal no tempo em que deu a declaração. Não sou dos cismados que resolvem transformar Yoko Ono em vilã, e reconheço que tem seus méritos como artista, ainda que o próprio documentário sirva também para relativizá-los quanto a questão propriamente musical e mostrar bem como ela tinha um bom entendimento dos códigos que regiam a lógica dos happenings vanguardistas da virado dos anos 1960-70s. O espectador vai reparar como ela adora colocar a palavra "conceitual" no meio de tudo. O britânico canal 4, que encomendou a produção, parece querer encerrar de vez qualquer rusga com a japonesa, e faz isso tão ostensivamente que alguns depoimentos até servem a um projetinho da Yoko de fazer o mundo achar que o John foi meio boneco de ventríloquo dela.
Seria possível fazer um longo inventário das arestas aparadas ao longo do documentário, deixando evidente a intenção de tirar fora quase toda inconstância, inquietude e temperamento forte que marcam a personalidade de Lennon. Para os conhecedores da figura isso fica evidente, para a audiência que tirar daí sua primeira impressão ele parecerá bem mais manso, gentil. O exemplo mais forte deve ser a preocupação em polir sua imagem de pai no que diz respeito a Julian, mostrando cenas de brincadeira de menino, de atenção e combinando com o testemunho mais acomodado e resolvido do filho no presente, que só muito indiretamente remete à dificuldade do relacionamento dos dois, que já foi mais do que exposta em muitas outras ocasiões. É natural que Julian agora, mais maduro, queira dar à imagem de John como seu pai uma versão mais solar que sombria, e o que cabe à crítica é justamente detectar essa forma de enredo e sua consequência para a construção da memória social. O mesmo se dá quando o documentário trata da troca de farpas entre Lennon e McCartney , ilustrada na canção How do you sleep? A briga, naquele contexto intestina entre os dois parceiros, é transformada por depoimentos pinçados a dedo em uma rusga passageiras de "irmãos".
Enfim, com um pouco mais de atenção vale ver o documentário sob a ótica dessa crítica da construção social da memória, o que certamente não tira o interesse e o prazer de acompanhar a feitura do disco e mais um recorte que mostra outro ângulo do casal Lennon & Ono, cuja parceria artística merece mesmo mais alguns capítulos. Imagine, canção do século segundo a Associação Nacional dos editores musicais dos EUA, continua atual.
Como historiador e principalmente, como alguém atento à produção da memória social, vou ressaltar alguns aspectos que subjazem às recorrentes retomadas de 'objetos' e 'enredos' no cenário da indústria cultural contemporânea. Um misto de falta de assunto, renitente nostalgia e racionalidade mercadológica se combinam na persistência em polir reiteradamente um mesmo diamante. Se não se resume a isso, inegavelmente a indústria cultural tem na sua lógica um apreço pela redundância, tanto na forma quanto no conteúdo. E essa engrenagem funciona até mesmo para extrair mais alguns quilates de ouro até de um trabalho que de alguma forma almeja outro registro, como era o de Lennon e Yoko.
Precisamos saber olhar para esse acúmulo, entendendo que diferentes intenções e camadas de lembranças e contextos vão se sedimentando, se acomodando ao tempo, às mudanças de quem detém direitos e meios, e ao próprio público. De fato, cabe a reflexão que o historiador Jacques LeGoff propos através do conceito de documento/monumento. Se escolhermos como fio condutor de nossa análise de "Só o céu por testemunha" a abordagem sobre a canção título, vamos ver como existe a intenção de consagrar a recente atribuição de crédito de autoria de Yoko [aqui uma matéria que explicita, inclusive, algumas razões legais por trás dessa questão]. O argumento usado no ganho de causa é repetido exaustivamente, com aparições do livro Grapefruit [aqui] e do trecho de áudio da entrevista em que John alega que não teria dado à companheira o crédito devido anteriormente. Essa querela poderia ir mais longe, e sobre ela já me posicionei, aqui vou apenas resumir que: a) inspiração não é o bastante para caracterizar crédito autoral; b) Lennon não tomou nenhuma providência legal no tempo em que deu a declaração. Não sou dos cismados que resolvem transformar Yoko Ono em vilã, e reconheço que tem seus méritos como artista, ainda que o próprio documentário sirva também para relativizá-los quanto a questão propriamente musical e mostrar bem como ela tinha um bom entendimento dos códigos que regiam a lógica dos happenings vanguardistas da virado dos anos 1960-70s. O espectador vai reparar como ela adora colocar a palavra "conceitual" no meio de tudo. O britânico canal 4, que encomendou a produção, parece querer encerrar de vez qualquer rusga com a japonesa, e faz isso tão ostensivamente que alguns depoimentos até servem a um projetinho da Yoko de fazer o mundo achar que o John foi meio boneco de ventríloquo dela.
Seria possível fazer um longo inventário das arestas aparadas ao longo do documentário, deixando evidente a intenção de tirar fora quase toda inconstância, inquietude e temperamento forte que marcam a personalidade de Lennon. Para os conhecedores da figura isso fica evidente, para a audiência que tirar daí sua primeira impressão ele parecerá bem mais manso, gentil. O exemplo mais forte deve ser a preocupação em polir sua imagem de pai no que diz respeito a Julian, mostrando cenas de brincadeira de menino, de atenção e combinando com o testemunho mais acomodado e resolvido do filho no presente, que só muito indiretamente remete à dificuldade do relacionamento dos dois, que já foi mais do que exposta em muitas outras ocasiões. É natural que Julian agora, mais maduro, queira dar à imagem de John como seu pai uma versão mais solar que sombria, e o que cabe à crítica é justamente detectar essa forma de enredo e sua consequência para a construção da memória social. O mesmo se dá quando o documentário trata da troca de farpas entre Lennon e McCartney , ilustrada na canção How do you sleep? A briga, naquele contexto intestina entre os dois parceiros, é transformada por depoimentos pinçados a dedo em uma rusga passageiras de "irmãos".
Enfim, com um pouco mais de atenção vale ver o documentário sob a ótica dessa crítica da construção social da memória, o que certamente não tira o interesse e o prazer de acompanhar a feitura do disco e mais um recorte que mostra outro ângulo do casal Lennon & Ono, cuja parceria artística merece mesmo mais alguns capítulos. Imagine, canção do século segundo a Associação Nacional dos editores musicais dos EUA, continua atual.
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