Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

10 de maio de 2019

Na estante - samba, patrimônio e História do Brasil

 Duas leituras recentes que merecem destaque aqui na página:

Acabei de concluir a leitura de Noel Rosa - poeta da Vila (2011), cronista do Brasil, de Luiz Ricardo Leitão, prof. da Uerj. Muito bem escrito, leve sem perder o rigor, rebuscado sem ser pedante, um ensaio bem construído amarrando a obra genial de Noel ao pensamento social e à literatura de seu tempo, evidenciando como os músicos populares são, desde sempre, argutos intérpretes do Brasil. Eu e tantos aprendemos a conhecer e gostar de Noel através de Chico Buarque, encontramos aqui um traçado bem descrito da invenção dessa estirpe de compositores que descortina o país com inteligência e ironia. O sabor ensaístico é muito adequado, sobretudo para evitar o risco de redundar a portentosa biografia de Máximo e Didier, talvez a melhor em seu gênero já dedicada a um músico popular brasileiro. E de curiosidade, já no princípio, fico sabendo que o pai de Noel era mineiro e tinha Garcia no sobrenome. Sendo assim quem sabe não sou, ainda que por retorcidos galhos de uma longínqua genealogia, parente desse bamba? Já fico sendo. 
  
E acabei de ler hoje o livro do Seminário Os Sambas Brasileiros: Diversidade, Apropriações e Salvaguarda. do evento que foi feito em Santo Amaro no contexto do registro do Samba de roda do recôncavo. Uma maravilha com Gil, Caetano, Sandroni, Wisnik, Elizabeth Travassos, Hermano Vianna, e mais gente boa,  e tem pra baixar. Ocorrido em 2007 (porém editado em 2011), durante a gestão de Gil à frente do MinC, parece que se trata de outro país, outro planeta. Os bons quadros do IPHAN, reunidos a parte da nata da nossa música popular e intelectualidade - em alguns casos, simultaneamente no mesmo indivíduo - desfiam um conhecimento absurdo sobre o samba - não exclusivamente o de roda - e outros gêneros musicais brasileiros populares e até folclóricos. E a transcrição da mesa final, com as amistosas cutucadas mútuas entre Gil e Caetano quando trataram da questão dos direitos autorais na atualidade, são exemplares da personalidade de ambos e divertidíssimas. 

Recomendo fortemente, ambos.  

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