Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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5 de maio de 2021

Bolacha completa - John Lennon/Plastic Ono Band edição de luxo

Acabou de sair uma caixa com a edição de luxo do primeiro disco de John Lennon em carreira solo - claro, com sua parceira de vida e música Yoko Ono, co-produzindo, e tocando, como está no título, com a Plastic Ono Band - o que representa, neste caso, uma banda que incluiu Ringo Starr, Klaus Voormann no baixo, Billy Preston nas teclas, uns pianos complementares do legendário produtor Phil Spector. Instado por mim e por outros internautas, meu caríssimo amigo Vlad Magalhães, músico profundo entendedor da obra de Lennon e dos Beatles, presença consagrada nas melhores formações de bandas ou em apresentações solo de tributo à obra dos quatro cavaleiros do Após-calipso, registrou sua apreciação do impressionante montante de mais de 7 horas de áudio. Ele gentilmente cedeu o texto, que disponibilizo aqui no Blog disparando foguetes. Ao Vlad meus cumprimentos e agradecimentos por esse minucioso relato, porque eis aí o mapa da mina. Além de tudo ele reuniu um extrato dos "melhores momentos" numa playlist aberta do Spotfy, que seguirá no corpo da postagem. Quando eu puder, pretendo traçar algumas linhas sobre o disco original, mas isso pode esperar.

Por agora, deleitem-se. 

"Atendendo a pedidos" aí vão minhas impressões sobre PLASTIC ONO BAND (THE ULTIMATE COLLECTION)
 Por Vladimir Magalhães 
DISC 1
é o disco oficial + 3 singles lançados na época, remasterizados. Sem grandes surpresas, diferente das novas mixagens dos Beatles que alteraram bastante vários elementos (nem sempre pra melhor). Esse foi bem mais fiel à mixagem original, claro, com mais definição na voz e nos instrumentos, como se tivessem dado uma lustrada em tudo, trazendo os graves para o século XXI.
Destaques: MOTHER - sem ruído do vinil usado na gravação do sino
Vocais de ISOLATION, REMEMBER e GOD bem mais na cara do que na mixagem original. Arrepiantes.
DISC 2
Última versão das músicas antes das versões oficiais, em suas formas definidas, com alguns pequenos detalhes que foram minimalisticamente lapidados no final
Destaques:
WORKING CLASS HERO - take 1
REMEMBER - parece ter sido a que Ringo e Klaus tiveram mais dificuldade de encontrar a melhor levada, que afinal conseguiram. Também sua introdução e final parecem ter sido conseguidos aos 48 do segundo tempo.
LOVE - levada de violão nitidamente inspirada em Yesterday
DISC 3
Destaques:
MOTHER - arrepiante vocal isolado
COLD TURKEY - sem o vocal, guitarra solo com mais feedback, num dos solos mais subestimados do rock'n'roll
Destaque negativo
REMEMBER: um efeito muito irritante (talvez uma jaw-harp). parecendo uma mola ou uma bola de desenho animado, felizmente não saiu na versão final
DISC 4
mixagens cruas das versões finais, exceto I FOUND OUT que tem uma parte a mais, cortada depois
Destaques:
GOD: a voz rouca sem o "slap echo"
GIVE PEACE A CHANCE: versão estendida
DISC 5
O mais interessante, com ensaios e conversas
Destaques:
Trechos de LOVE e LOOK AT ME com baixo e bateria
Hilária introdução de GOD
Tocante comentário de John a respeito de MY MUMMY'S DEAD
John dando instruções para a galera em GIVE PEACE A CHANCE fazendo dueto e respondendo a si mesmo no overdub
INSTANT KARMA - o ensaio mais arrepiante, com a participação de George Harrison na guitarra, que acabou sendo excluída na versão oficial.
DISC 6
demos caseiras e de estúdio
Destaques:
LOVE - harmonia diferente na parte B, demo caseira, com tremolo
WELL WELL WELL - demo caseira acústica, sem a gritaria
INSTANT KARMA - com a guitarra de Harrison e Alan White definindo as rodadas de bateria
DISC 7
jams, covers, demos, a maioria feita de forma bem avacalhada
AIN'T THAT A SHAME - no final John brinca falando "Cookie!", imitando um "monstro" do seriado infantil Vila Sésamo (na versão oficial do disco ele fala isso no solo de Hold On, mas só agora fui descobrir esse detalhe que eu nunca entendia rsrs parece que ele assistia bastante pois fala isso em outras demos desse disco)
LOST JOHN canção de Lonnie Donegan, que popularizou o skiffle na Inglaterra em meados da década de 50, levando milhares de garotos a comprarem violões, entre eles os jovens Beatles. John fica repetindo a primeira estrofe e o refrão, parece que esquentando a voz para gravar.
I DON'T WANT TO BE A SOLDIER MAMA, I DON'T WANNA DIE música sairia no disco seguinte, Imagine
DISC 8
mixagens cruas de out-takes
Destaque:
MOTHER - com violão em vez de piano, parece ter sido a mais gravada para o disco, esse é o take 91!
Criei uma playlist no Spotify chamada "POBTUC Destaques" (do disco 2 ao 8 ) caso alguém queira conferir, uma boa introdução de 1:30h para quem não quiser encarar as 7:30h de material rsrs 
 
 
 
Quem não for assim tão beatlemaniaco vá direto ao disco 1 e procure saber o que está sendo cantado nesse disco histórico, filosófico e minimalista.
Último comentário: podiam ter dividido o disco 7 em 2, aí seriam 9 discos ao todo - Lennon aprovaria com entusiasmo rsrs
I just gotta tell you goodbye!


5 de maio de 2019

1a. c/ a 7a.: John & Yoko: above us only sky - Só o céu por testemunha

Acabei de assistir o documentário John & Yoko: above us only sky - Só o céu por testemunha. À primeira vista, pode até parecer redundante levando-se em conta a infindável massa de material audiovisual que já foi produzida, começando pelo próprio filme Imagine que acompanhou a produção do álbum homônimo, passando por outros "making offs" e documentários de cunho biográfico que inevitavelmente abordam o mesmo assunto. Com tudo isso, a produção em pauta aqui tenta trazer novos materiais de arquivo e depoimentos que possam representar algum ganho, mesmo para os beatlemaníacos mais bem abastecidos que se encontram por aí. E, ao menos em parte, alcance esse objetivo, com entrevistas mais recentes e bom aproveitamento de uma grande massa documental que foi gerada à época. Destaque para os testemunhos de músicos como Klauss Voormann e Alan White, do ativista e escritor Tariq Ali, de Julian Lennon e de engenheiro de som, fotógrafos e outras pessoas que estavam atuando nos bastidores e entorno do processo de gravação. Considerando as produções anteriores, não me pareceu que esta traz grandes novidades sobre os aspectos criativos do ponto de vista musical mesmo.
Como historiador e principalmente, como alguém atento à produção da memória social, vou ressaltar alguns aspectos que subjazem às recorrentes retomadas de 'objetos' e 'enredos' no cenário da indústria cultural contemporânea. Um misto de falta de assunto, renitente nostalgia e racionalidade mercadológica se combinam na persistência em polir reiteradamente um mesmo diamante. Se não se resume a isso, inegavelmente a indústria cultural tem na sua lógica um apreço pela redundância, tanto na forma quanto no conteúdo. E essa engrenagem funciona até mesmo para extrair mais alguns quilates de ouro até de um trabalho que de alguma forma almeja outro registro, como era o de Lennon e Yoko. 

Precisamos saber olhar para esse acúmulo, entendendo que diferentes intenções e camadas de lembranças e contextos vão se sedimentando, se acomodando ao tempo, às mudanças de quem detém direitos e meios, e ao próprio público. De fato, cabe a  reflexão que o historiador Jacques LeGoff propos através do conceito de documento/monumento. Se escolhermos como fio condutor de nossa análise de "Só o céu por testemunha" a abordagem sobre a canção título, vamos ver como existe a intenção de consagrar a recente atribuição de crédito de autoria de Yoko [aqui uma matéria que explicita, inclusive, algumas razões legais por trás dessa questão]. O argumento usado no ganho de causa é repetido exaustivamente, com aparições do livro Grapefruit [aqui] e do trecho de áudio da entrevista em que John alega que não teria dado à companheira o crédito devido anteriormente. Essa querela poderia ir mais longe, e sobre ela já me posicionei, aqui vou apenas resumir que: a) inspiração não é o bastante para caracterizar crédito autoral; b) Lennon não tomou nenhuma providência legal no tempo em que deu a declaração. Não sou dos cismados que resolvem transformar Yoko Ono em vilã, e reconheço que tem seus méritos como artista, ainda que o próprio documentário sirva também para relativizá-los quanto a questão propriamente musical e mostrar bem como ela tinha um bom entendimento dos códigos que regiam a lógica dos happenings vanguardistas da virado dos anos 1960-70s. O espectador vai reparar como ela adora colocar a palavra "conceitual" no meio de tudo. O britânico canal 4, que encomendou a produção, parece querer encerrar de vez qualquer rusga com a japonesa, e faz isso tão ostensivamente que alguns depoimentos até servem a um projetinho da Yoko de fazer o mundo achar que o John foi meio boneco de ventríloquo dela.
Seria possível fazer um longo inventário das arestas aparadas ao longo do documentário, deixando evidente a intenção de tirar fora quase toda inconstância, inquietude e temperamento forte que marcam a personalidade de Lennon. Para os conhecedores da figura isso fica evidente, para a audiência que tirar daí sua primeira impressão ele parecerá bem mais manso, gentil. O exemplo mais forte deve ser a preocupação em polir sua imagem de pai no que diz respeito a Julian, mostrando cenas de brincadeira de menino, de atenção e combinando com o testemunho mais acomodado e resolvido do filho no presente, que só muito indiretamente remete à dificuldade do relacionamento dos dois, que já foi mais do que exposta em muitas outras ocasiões. É natural que Julian agora, mais maduro, queira dar à imagem de John como seu pai uma versão mais solar que sombria, e o que cabe à crítica é justamente detectar essa forma de enredo e sua consequência para a construção da memória social. O mesmo se dá quando o documentário trata da troca de farpas entre Lennon e McCartney , ilustrada na canção How do you sleep? A briga, naquele contexto intestina entre os dois parceiros, é transformada por depoimentos pinçados a dedo em uma rusga passageiras de "irmãos". 
Enfim, com um pouco mais de atenção vale ver o documentário sob a ótica dessa crítica da construção social da memória, o que certamente não tira o interesse e o prazer de acompanhar a feitura do disco e mais um recorte que mostra outro ângulo do casal Lennon & Ono, cuja parceria artística merece mesmo mais alguns capítulos.  Imagine, canção do século segundo a Associação Nacional dos editores musicais dos EUA, continua atual.

9 de outubro de 2015

Entrevistando John Lennon

Lennon faria hoje 75 anos caso estivesse por aqui. Em celebração da data a Revista Rolling Stone lançou um número especial [aqui], que inclui entre outras coisas trechos [aqui] de uma entrevista de Lennon a estudantes, concedida em 1968, cuja íntegra, em áudio e transcrição, está disponibilizada no site do Hard Rock [aqui]. Ele comenta, para início de conversa, a carta aberta endereçada a ele por John Hoyland publicada no periódico radical de esquerda The black dwarf (que depois seria respondida por Lennon no mesmo periódico). As carta estão digitalizadas e reproduzidas no site, e o embate central é em torno do uso ou não da violência para promover transformações revolucionárias, com o qual naquele momento Lennon se debatia como fica claro na canção Revolution
Outro material interessante é uma lista de 20 canções "subestimadas" da carreira solo de Lennon, escrita por David Fricke em 2010 [aqui]. 


 

6 de fevereiro de 2014

John Lennon e o tempo das palavras

Acabei de ler a ótima tradução feita pelo Pablo Castro para a incisiva canção Gimme some truth de John Lennon. Crua e direta, como no original, tanto quanto foi possível. Sim, porque a dificuldade reside no fato das escolhas que se pode fazer para traduzir o vocabulário usado pelo compositor, carregado de expressões populares, da língua das ruas e da rebeldia. Expressões que também refletem um corte social e político muito específico, do início dos anos 1970, da contracultura, visível nas referências às drogas e aos termos psicanalíticos, do protesto contra a Guerra do Vietnã e as desculpas esfarrapadas do governo. Fiquei, por isso mesmo, instigado pelo intraduzível Tricky Dicky (algo como ardiloso ricardinho), provavelmente endereçado a Richard Nixon e possivelmente sacado da canção de título homônimo de Leiber e Stoller (dupla pioneira do rock and roll que era apreciada por Lennon e pelos demais Beatles) gravada por Richie Barrett em 1962 e The Searchers em 1963. Lennon coloca Nixon como uma espécie de papa da retórica ensaboada que a letra joga ao chão com o soco no estômago que vocaliza o clamor dos protestos: me dê um pouco de verdade. Não sou um profundo entendedor das sutilezas do trabalho de tradução mas acho que era preferível mesmo ficar sem traduzir. Se não por outros motivos, ao menos por motivar esse pequeno exercício de pesquisa que foi bastante instrutivo.




Me Dê Um Pouco da Verdade. Gimme Some Truth ( Lennon) <original, com cifra>

Estou cansado de ouvir coisas
Vindas de arrumadinhos, míopes, hipócritas de mente estreita
Tudo que quero é a verdade.
Me dê só um pouco da verdade.
Estou farto de ler coisas vindas
De neuróticos, psicóticos, políticos de cabeça-de-porco,
Tudo que quero é a verdade.
Me dê só um pouco da verdade.

Nenhum careta,covarde, filho de Tricky Dicky
Vai me "agradar" me "ensaboando" suavemente
Com um simples maço de esperança
Dinheiro pra droga
Dinheiro pra corda

Nenhum careta,covarde, filho de Tricky Dicky
Vai me "agradar" me "ensaboando" suavemente
Com um simples maço de esperança
Dinheiro pra droga
Dinheiro pra corda

Estou doente de ver as coisas
De chauvinistazinhos da mamãe, condescentes e secretistas.
Tudo que quero é a verdade.
Me dê só um pouco da verdade, agora.

Eu estou farto de ver cenas
De prima-donnas esquizofrênicas, egocêntricas e paranoicas.
Tudo que quero é a verdade,agora
Me dê só um pouco da verdade.

Nenhum careta,covarde, filho de Tricky Dicky
Vai me "agradar" me "ensaboando" suavemente
Com um simples maço de esperança
Dinheiro pra droga
Dinheiro pra corda

Ah,Eu estou doente e cansado de ouvir coisas
De arrumadinhos, míopes, hipócritas de mente estreita
Tudo que quero é a verdade, agora.
Me dê só um pouco da verdade, agora.

Estou farto de ler coisas vindas
De neuróticos, psicóticos, políticos de cabeça-de-porco,
Tudo que quero é a verdade, agora.
Me dê só um pouco da verdade, agora.

Tudo que quero é a verdade, agora.
Me dê só um pouco da verdade, agora.
Tudo que quero é a verdade.
Me dê só um pouco da verdade.
Tudo que quero é a verdade.
Me dê só um pouco da verdade.


As gravações citadas na postagem:





P.S. 2017
Aproveitando o embalo da celebração da data de aniversário de Lennon, acabei encontrando essa significativa gravação pirata em que ele troca ideias com o parceiro McCartney enquanto tocam a canção. Felizmente, quando se trata dos Beatles há muito material assim, sobras de gravação em estúdio que geralmente são descartadas, mas no caso deles foram preservadas e permitem uma verdadeira arqueologia da composição de várias de suas canções, e sobretudo um entendimento de seu método de trabalho em estúdio.

P.S. 2023
Ao perceber que o link anterior estava quebrado, acabei tendo a sorte de encontrar uma versão melhor,
pinçada diretamente do documentário Get Back dirigido por Peter Jackson. 




16 de dezembro de 2012

Eles ainda surpreendem e as pedras continuam rolando

Os precisos comentários de Renato Ruas em seu blog (link Reflexões: E eles ainda surpreendem) "Nesse sábado tive a sorte de passar pelo Multishow e ver que eles estavam transmitindo ao vivo um dos shows da comemoração dos 50 anos dos Rolling Stones (...)" me motivaram a reproduzir o comentário que escrevi outro dia quando soube que os Stones iam abrir os shows [aqui] com I wanna be your man [aqui uma análise da Notes on series por Alan Pollack]. "Para saber a diferença que separa os Beatles dos Stones há muitos meios, mas agora vi um melhor do que todos. E é bom ver que os próprios Stones tem noção disso, abrindo seu show de 50 anos reverenciando os Beatles com a canção que Lennon e McCartney lhes deram de cortesia." Acabei esticando um pouco a postagem porque esse é um tópico que, se de alguma forma bastante desgastado, ao mesmo tempo é a base de um "pequeno mito de origem" da história do rock, pois reza a lenda que a dupla Jagger e Richards nasceu após ambos terem visto a dupla John e Paul concluir a canção em instantes. Encontrei alguns depoimentos dos dois últimos [aqui] que lançam um pouco de luz nessa história, ainda que simultaneamente revelem como as memórias são parciais:
 
It was a throwaway. The only two versions of the song were Ringo and the Rolling Stones. That shows how much importance we put on it: We weren't going to give them anything great, right? (...) I Wanna Be Your Man was a kind of lick Paul had: 'I want to be your lover, baby. I want to be your man.' I think we finished it off for the Stones... yeah, we were taken down to meet the Stones at the club where they were playing in Richmond by Brian and some other guy. They wanted a song and we went to see them to see what kind of stuff they did. Mick and Keith had heard that we had an unfinished song - Paul just had this bit and we needed another verse or something. We sort of played it roughly to them and they said, 'Yeah, OK, that's our style.' So Paul and I just went off in the corner of the room and finished the song off while they were all still there talking. We came back and that's how Mick and Keith got inspired to write, because, 'Jesus, look at that. They just went in the corner and wrote it and came back!' Right in front of their eyes we did it. [grifos meus]
John Lennon
All We Are Saying, David Sheff
, 1980

So they shouted from the taxi and we yelled, 'Hey, hey, give us a lift, give us a lift,' and we bummed a lift off them. So there were the four of us sitting in a taxi and I think Mick said, 'Hey, we're recording. Got any songs?' And we said, 'Aaaah, yes, sure, we got one. How about Ringo's song? You could do it as a single.' (...) We often used to say to people, the words don't really matter, people don't listen to words, it's the sound they listen to. So I Wanna Be Your Man was to try and give Ringo something like Boys; an uptempo song he could sing from the drums. So again it had to be very simple.[grifos meus]
Paul McCartney
Many Years From Now, Barry Miles, 1997

Assim, em que pesem as dúvidas, lacunas, e as eventuais parcialidades ou mesmo invenções que as entrevistas comportam, fato é que a dupla de compositores de Liverpool não considerava muito relevante a canção, de modo que a cederam aos Stones. Para eles I wanna be your man adquiriu outro significado, um peso que agora eles demonstram ao relembrá-la como o ponto a partir do qual as pedras começaram a rolar (foi inclusive sua primeira gravação a figurar nos Top20 britânicos). Segue também um vídeo com uma performance dos Rolling Stones para a mesma canção no início de carreira. O curioso desse vídeo é a reprodução em linhas gerais daquele chavão que era opor a imagem dos Beatles bons moços e Stones ameaças aos bons costumes. Divertidíssimo...

8 de dezembro de 2012

John Lennon hoje agora e sempre

Esses dias à volta com perdas do quilate de Oscar Niemeyer e Dave Brubeck, é inevitável pensar no sentido cultural que guarda o procedimento da homenagem, dentro da seara maior da memória social. A morte, lógico, é assunto inescapável para o historiador, pois está ali como componente indissociável do Tempo, matéria-prima de seu ofício. Nos estudos sobre museologia e patrimônio, parte predominante de minhas atuais pesquisas, muitas discussões giram justamente em torno das formas com que a sociedade intenta, simbólica e materialmente, enfrentar a morte enquanto fenômeno culturalmente percebido. Desse desejo brotam os mausoléus, epitáfios, necrológios, obituários, estátuas e monumentos para imortalizar, tombamentos de casas onde residiram aqueles que devem ser lembrados, por vezes transformadas em museus, memoriais e afins. Certa vez ganhei do pai de um grande amigo que visitara Nova York uma foto do mosaico em pedra portuguesa da calçada do Central Park que é parte de um memorial dedicado a John Lennon, um dos motes dessa postagem de hoje. Assim as pessoas, no intuito de lembrar quem partiu, e neste processo procurar definir coletivamente o que deve compor essa lembrança, modificam o espaço da cidade, escrevem longos textos ou pequenas mensagens, marcam o mundo de forma a denotar esse traço específico da passagem do tempo. . Um ótima análise desse fenômeno está em The past is a foreing country, de David Lowenthal, obra de grande erudição que ando tentando ler em meio à labuta rotineira de final de semestre. Meu projeto de pesquisa Patrimônio urbano e música popular aborda o assunto, ao tratar de lugares como Strawberry Field e Graceland




Dentre as muitas práticas dedicadas a promover a rememoração dos que passaram, as homenagens musicais são das mais poderosas, especialmente quando feitas de modo a transcender o contexto específico do falecimento do homenageado e de alguma forma possibilitar de maneira mais intensa a vinculação entre o passado da perda e o presente do ato de lembrar, estabelecendo um elo de sentido e beleza que se desprende da morte em si, e na passagem do lamento à celebração, permitem atualizar o significado da presença do homenageado no mundo e na vida de quem as ouve. esse modo, homenageio todos esses que deixaram sua marca e perduraram enquanto houver que delas fale ou ouça, através de canções feitas para Lennon.

--\\//--

 Estamos em 2014 e achei por bem atualizar essa postagem. O projeto que mencionei anteriormente caminhou um bocado, já teve parte de seus resultados apresentados em eventos acadêmicos, bolsistas que se envolveram, relatórios parciais, pesquisas em campo. Acabei de receber a aprovação do CNPq para continuá-lo, e interpreto esse apoio como reconhecimento ao trabalho que vem sendo realizado. Em breve trarei mais informações e postagens de alguns dos resultados aqui no blog.

Por fim, achei que uma homenagem a Lennon merecia ser complementada com canções. Me dei conta, numa rápida comparação entre as que foram compostas por seus irmãos de jornada, como Harrison (All those years ago) e McCartney (Here today) expressam visões complementares de seu amigo. All those years ago remete ao Lennon do mundo, num tom de tributo e até acerto de contas do presente com o passado, profundamente honesto como era próprio do George, apontando para a vileza com que Lennon foi por vezes tratado ("While they treated you like a dog"; "And you were the one they backed up to the wall", etc...) e fugindo de uma interpretação rósea da trajetória do companheiro. Here today fala de dentro, da intimidade de parceiros de uma vida, e é para aí que converge o exercício de rememoração de Paul, a partir do mote da constatação da presença/ausência de John. Também aqui há o exercício de uma franqueza, no reconhecimento do que era diferença entre os dois ("You'd probably laugh and say that we were worlds apart"), distância que era superada pelo afeto. 
Mas as duas canções coincidem na forma como apresentam a enunciação, pois nas duas o eu lírico dirigi-se diretamente a Lennon, produzindo um diálogo com o homenageado - ou mais efetivamente, com esse destinatário que é produzido no gesto mesmo da rememoração. Se Harrison insere a voz de Lennon por meio de referências a suas canções (All you need is love, Imagine), McCartney deduz das lembranças frases que poderiam sair de sua boca "If you were here today". Os arranjos das duas gravações, por seu turno, são contrastantes e correspondem ao quadro que propus inicialmente. O de Here today é intimista, centrado no confessional amálgama de voz e violão de Paul, acompanhado delicadamente pelo quarteto de cordas (remissão inevitável a Yesterday). Já All those years ago traz uma arranjo de banda, meio jazzy, até aliviando no clima alguma aspereza que a letra traz, com o detalhe de trazer Ringo na bateria e Paul, junto com Linda e Denny Laine, nos backing vocals. Dois belos tributos a alguém que deixou sua marca no mundo e nas pessoas.




7 de maio de 2012

Entre o pop e o progresso

Enquanto não acho o tempo necessário para elaborar postagens novas, o trabalho de recuperar e eventualmente ajustar algumas postagens antigas vai andando, e remexer em material antigo pode provocar alguma inspiração. Ao ver a imagem da capa do compacto simples de Strawberry Fields Forever/Penny Lane que utilizei para ilustrar outro texto, e já que estou preparando um texto que aborda uma questão relacionada a capas de discos, lembrei que neste caso já tinha algo escrito e publicado (um artigo) por aí. Decidi destacar de lá algum trecho que tratasse das capas do compacto e também do Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise está mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. Um trecho que funciona de aperitivo para o artigo, e também para discussões vindouras...

Em depoimento ao jornal underground Internacional Times (que Paul ajudara a criar), George Harrison dizia que os Beatles não deveriam mais se limitar ao pop, achando inclusive que “(...) a gente se conteve demais em coisas como ‘Strawberry Fields’ (...) acho que provamos que a música eletrônica pode se misturar com a música ‘pop’, e provaremos que música indiana, eletrônica e ‘pop’ podem andar juntas” (HEYLIN, 2007: 138). Ele acrescentaria mais um ingrediente ao caldeirão de sons ao propor unir música de concerto e instrumentos indianos na canção Within you, Without you[1]. Essa atitude tornara-se possível num contexto em que os Beatles, abandonado as excursões, mudaram seus métodos de trabalho, levando canções apenas esboçadas para construí-las no estúdio e improvisando durante horas - deixando os técnicos exaustos e entediados. George Martin declarou que a parte mais difícil do LP foi começar a gravar às sete da noite e trabalhar até as três (HEYLIN, 2007: 100). Seu papel como produtor mudara, do de dar direções para o de concretizar as idéias dos Beatles – por mais mirabolantes que fossem. Mais importante do que ter acesso à tecnologia de gravação era ter alguém que pudesse conduzi-la no rumo desejado. Mas que rumo? Em direção ao passado suburbano ou a última moda de Londres? 
Falando em moda, SAMUEL localiza na Swinging London de meados dos anos 1960 o fenômeno do retro-chique, ou “indústria da nostalgia”, em que a tecnologia recente é aplicada aos produtos de modo a obter uma estética que remete ao antigo (SAMUEL, 1994: 83), influenciando do vestuário às capas de disco. Mesmo sendo uma forma de revival, tem um caráter paródico:

“Ao contrário do restauracionismo e do conservantismo (...) o retro-chique é indiferente ao culto da autenticidade. Ele não se sente obrigado a permanecer fiel ao período (...) borra a distinção entre originais e reciclados (...) abole as diferenças de categorização entre passado e presente, abrindo um trânsito de mão dupla entre eles” (SAMUEL, 1994:112-113)


Há dois pontos de contato com o caso que estamos investigando. Musical: como vimos, os arranjos das duas canções atravessam gêneros e temporalidades diferentes. Visual: é significativo que tenham sido produzidos e lançados filmes promocionais para as duas canções, uma vez que o mesmo autor identifica neste mesmo período o início do predomínio do ‘visual’ sobre o ‘auditivo’ na cultura britânica (SAMUEL, 1994: 337-339). Ironicamente, não há qualquer cena dos Beatles em Liverpool. No filme de Strawberry Fields a cidade sequer aparece, pois a única locação é um morro, em que eles estão junto a um piano de armário sobre o qual está um tear, cujos fios se entendem até um carvalho. No de Penny Lane, externas do local mostrando placas e ônibus estampando o nome do logradouro são intercaladas com cenas dos Beatles atravessando Londres a cavalo, vestindo casacos de caça à raposa, em direção a um parque onde será servida uma aristocrática refeição (DANIELS, 2006: 42). Nos dois a montagem segue o ritmo das canções e consegue traduzir as técnicas usadas nas gravações, especialmente na cena em que Paul se move de trás para frente e “cai para cima” de um galho da árvore. Esteticamente, o primeiro filme é bem mais vanguardista, dando uma pista sobre a diferença na recepção de cada lado do compacto. As seqüências finais, por sua vez, evidenciam no improviso iconoclasta - com um quê de nonsense e sem qualquer agressividade explícita - sua semelhança no confronto entre o convencional e o transgressor: em uma, após derramar tintas no tear, eles derrubam o piano; na outra, no momento em que vão ser servidos, derrubam a mesa.
Transgressão que voltavam contra sua aparência pop. Desde 1966 vinham abandonando os ternos e cortes de cabelo padronizados, e depois que encerraram a última turnê Lennon passou a usar óculos de ‘vovô’ (aros circulares) e todos adotaram roupas psicodélicas e bigodes, que passariam depois a ser vistos nos chamados “heróis da classe trabalhadora”, (SAMUEL, 1994: 97). Lay-out propositalmente datado que aparece na capa do compacto, que ainda traz estampada uma moldura em torno da foto, de modo a imitar um porta-retratos antigo. O visual combinava com os uniformes de regimento eduardiano usados depois na capa de Sgt. Pepper’s. A influência do ambiente contracultural londrino aparece com força nesta legítima criação retro-chique de um artista do circuito de vanguarda, Peter Blake:

“A capa (...) pertence a (...) uma democracia de entretenimento no qual os showmen dos velhos tempos – reunidos – são amontoados com outros recentemente mortos (...) No som, o tambor da banda de metais, a clarineta e as cornetas tomaram o lugar dos amplificadores eletrônicos(...)um réquiem (...) ” (SAMUEL, 1994: 341)

Como a música, a capa é uma verdadeira colagem em arranjo surrealista que reúne na pose datada a banda com a platéia por atrás, aproximando a voga do culto aos artistas de cinema mortos, as referências culturais[2] dos Beatles e seu desejo de mudar a própria imagem. Àquela altura, o conceito do álbum sobre memórias de infância ganhara outro colorido. Paul compôs a canção título e imaginou a tal banda como alter-egos dos Beatles tocando num parque em algum lugar do norte (suas próprias estátuas de cera assistem ao show). O toque teatral foi dado a seguir pela entrada (sem intervalo) em cena de seu líder, Billy Shears, personagem vivido por Ringo na animada canção do norte With a little help from my friends[3], e como seu próprio intérprete entrega, o conceito de espetáculo foi realizado “(...) nas primeiras faixas e depois isso se dispersou pelo álbum” (HEYLIN, 2007: 141). O conceito, em seu estado inicial ou final, de fato é disperso, mas é possível ouvir seu eco, seja nas referências ao music hall [4]– gênero “impuro” e “cômico” (FRITH, 1996: 27; 209) - em When I’m 64[5] (satírica, mas gentil), nas composições que partem de fragmentos do dia-a-dia ou em frases emblemáticas como “Foi a vinte anos atrás, de hoje”; “muitos anos desde agora”; “dar uma volta pela velha escola”; “um período esplêndido está garantido para todos”. Encarando de forma mais abstrata, trata-se de metamorfose: morte e nascimento, réquiem e fanfarra, como explicou um crítico quando o disco saiu, assegurando ainda que as canções do compacto “foram prévias perfeitas” (HEYLIN, 2007:171)
Dialeticamente, se toda essa encenação da mudança mostra os Beatles se afastando de suas personagens de estrelas do pop, era justamente seu êxito até aquele momento que lhes dava respaldo diante da EMI para “ir longe”. Harrison disse ao repórter da revista Life que acompanhava uma noite de gravações:

“Acabamos de descobrir o que podemos fazer como músicos. Quais fronteiras podemos cruzar. Não faz mais tanta diferença se estamos em 1º lugar nas paradas. Tudo bem se as pessoas não gostarem de nós. Só não tentem nos podar” (HEYLIN, 2007: 135)

McCartney faria coro, afirmando que não se abrir para coisas novas poderia significar sucesso e fracasso ao mesmo tempo. Ele disse a Thomas Thompson, de Life: “(...) vamos perder alguns fãs. Nós os perdemos em Liverpool quando trocamos nossas jaquetas de couro por ternos (...) chegamos a um ponto onde não existem barreiras (...)” (HEYLIN, 2007: 135). Mas, oscilante, também demonstrava estar preocupado em evitar “ir longe demais” e distanciar-se dos fãs – o que explica a ousadia de Penny Lane ser dosada por uma melodia cantarolável, com um refrão que ecoa “cantigas de playgroud” (DANIELS, 2006: 41). Era a árdua busca do equilíbrio entre pop e progresso.



[1] Harrison, George. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967.
[2] O encarte da edição em CD traz a lista completa das personalidades reunidas na capa.
[3] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. Esta foi a última faixa nova gravada para o disco, mas é a segunda na ordem final.
[4] Variedade espetáculo teatral que envolvia comédia e música popular. Também é usado como referência apenas ao tipo de música própria dos espetáculos em questão.
[5] Lennon, John & McCartney, Paul. The Beatles. LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. EMI, 1967. A canção, refeita por Paul a parir de uma de suas composições mais antigas, chegou a ser cogitada como lado B para o compacto até dar lugar a Penny Lane.

1 de junho de 2011

44 anos atrás hoje

Escrever sobre o Sgt. Pepper's é quase tão bom quanto ouvi-lo.
"O estúdio torna-se um novo instrumento que permite alterar de diversas formas o som gravado: o corte, a sobreposição, a distorção, a alteração da velocidade da fita, a inserção de outros sons como recurso de citação (e não a citação composicional) aproximam a gravação das técnicas cinematográficas . Neste sentido, George Martin foi sem dúvida o Einsenstein da música popular". (GARCIA, 2000)

12 de março de 2011

Títulos

Confesso que sou um cara muito ligado nessa coisa de títulos. Título de canção, de capítulo, de artigo, de exposição. Acho ótimo isso de botar títulos. Tem hora que tem que sair logo, senão tudo que vem depois fica agarrado, não sai de jeito nenhum. Outras vezes, o bom é deixar pro final, quando tudo já está no jeito, e o título é o arremate, o xeque-mate. Tem hora que é um suspense...será que ele aparece? Será que vai agradar? Que vai pegar? Quando trabalhava no museu sentia esse frio na espinha, porque quando envolve muita gente é mais difícil o título vingar. Aí o negócio era pedir ajuda pra quem sabe, buscar inspiração na fonte inesgotável da música brasileira. Assim saíram "De outras terras, de outro mar" (sobre imigrantes estrangeiros em BH), "Como se fosse sólido..." (sobre a política de patrimônio na cidade) e a última, “Em Volta Dessas Mesas, Uma Cidade - Bares Como Lugares na História de Belo Horizonte”. Agora, a ideia de escrever esse texto hoje começou com um título que sempre me alucinou: Strawberry Fields Forever. De tão bom, foi apropriado por aqui por Gil - Chuckberry Fields Forever - e Caetano - Sugarcane Fields Forever. Segue um pequeno trecho de uma entrevista de John Lennon falando de sua canção, que citei num artigo que está sendo avaliado para publicação:

“(...) É um nome, um ótimo nome (...) estávamos tentando escrever sobre Liverpool e eu simplesmente listei todos os nomes que soavam bem (...) era um lugar perto de casa em que funcionava um lar do Exército da Salvação. (...) tenho visões de Strawberry Fields (...) é qualquer lugar aonde você queira ir”
 COTT, Jonathan. John Lennon – entrevista. Rolling Stone Magazine , 23/11/1968.