Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

25 de maio de 2019

No estúdio com Thiakov - A day in the life

Produzindo os Beatles - A day in the life

Quase que Lennon ficou de fora como compositor do disco Sgt Peppers. Andava dreamy, divagando em sua própria mente, experimentando viagens aprofundadas. Não fosse pela insistência da equipe e sua inspiração potencial, acabaria por deixar o álbum nas mãos do emergente líder McCartney. Talvez por isso mesmo buscou idéias em coisas mundanas e fugazes como jornais, anúncios de tevê, cartazes e desenhos infantis de seu filho. Sagaz como de costume conseguiu arrancar leite dessas pedras brutas que nos bombardeiam todos os dias e passam desapercebidas mas não para um criador.
"Espalhe o microfone em cima do piano, meio baixo, mantendo-o dentro, as maracas, saca? Fada de ameixa, fada de ameixa". Com estas palavras John introduz o que se tornaria a balada mais intensa desse novo álbum. "Dá pra por aquele eco do Elvis?". Emerick, o jovem engenheiro de gravação, afogou Lennon nesse delay de fita.
O primeiro take foi simples, com o quarteto em uma formação bem inusitada: George nos bongôs, Richard nas maracas, John no violão de aço e Paul no piano. Tocaram a incompleta música até o fim que havia, deixando uma longa parte sem vocais, com o roadie Mal Evans contando os compassos em voz alta e com um despertador na mão (que acabaram por vazar nos mics e são ouvidos na versão final).
Dias se passaram até voltarem à gravação, o que era comum depois de Strawberry Fields, e logo que escolheram os melhores takes de voz foram pra sessão de overdub. Sem as peles de resposta dos tambores e com microfones posicionados dentro dos toms, com extrema compressão (aparelho que reduz a dinâmica), Ringo experimentou como nunca e assim, numa evolução da supracitada Strawberry, fez uma construção de bateria baseada em viradas e ataques de prato. A parte que restava incompleta carecia de algo forte e intenso. John sugeriu que fosse um som que começasse pequeno e fosse crescendo até uma explosão. Paul embarcou na onda e evoluiu a ideia para uma orquestra em crescendo. O produtor olhou para o quarteto e disse: miguxos, jamais receberão aprovação da EMI pra alugarem uma full orchestra pra gravar alguns compassos de doideira em uma música. Ringo, como bom enxadrista, deu xeque-mate: alugamos meia orquestra e gravamos duas vezes.
A tumultuada sessão de gravação da orquestra, ou melhor, o happening começou já dando sinais da loucura que viria pela frente. Entram pela porta principal do estúdio 2 do Abbey Road, em seus psychedelic suits, Mick Jagger, Keith Richards, Marianne Faithful e muitos outros convidados para uma suposta festa. Os músicos da orquestra já bem incomodados por terem que usar nariz de palhaço, aguentar o som de balões explodindo (também audíveis no disco) e o cheiro de erva no ar simplesmente não entendiam as instruções do paciente Martin a convencê-los de que não era nada demais...apenas tocar da nota mais grave de seu instrumento até a mais aguda, finalizando em um Mi. Alguns achavam que era realmente uma piada e uns ofendidos acabaram por deixar o estúdio. Depois de muita conversa para acalmá-los, alguns rabiscos na partitura e no take final regidos por um dançante McCartney, contrariados, fizeram um take. Como o orçamento era curto, o produtor mentiu que não ficou bom para que eles tocassem a segunda vez. Bingo. O efeito devastador foi atingido.
A segunda parte veio de uma esquecida canção do Paul que encaixou-se lindamente à primeira parte de John.
Tudo parecia perfeito mas ainda faltava o gran finale, o fim dessa saga. Pra essa sessão foram utilizados os quatro pianos presentes nessa sala mais um harmonium executado por George Martin, todos eles tocando o mesmo e único acorde. No melhor take ouve-se, carregado por um olhar matador de Macca, uma ligeira mexida na cadeira do Ringo, e com um par de fones aprecia-se o famoso "nhec" que encerra esta canção que fecha o álbum mais conceitual dos Beatles até então.
Eis "A day in the life". I'd love to turn you on.

obs 1: sim, quando o Paul canta "found my way upstairs and had a smoke and went into a dream", está falando de maconha

obs 2: sim, "I'd love to turn you on" é sobre maconha

obs 3: sim, "well I just had to laugh", é risada de maconha


Por Thiakov






 A day in the life (Lennon/McCartney)

I read the news today oh boy
About a lucky man who made the grade
And though the news was rather sad
Well I just had to laugh
I saw the photograph.

He blew his mind out in a car
He didn’t notice that the lights had changed
A crowd of people stood and stared
They’d seen his face before
Nobody was really sure
If he was from the House of Lords.

I saw a film today oh boy
The English army had just won the war
A crowd of people turned away
But I just had to look
Having read the book
I’d love to turn you on.

Woke up, fell out of bed,
Dragged a comb across my head
Found my way downstairs and drank a cup,
And looking up I noticed I was late.
Found my coat and grabbed my hat
Made the bus in seconds flat
Found my way upstairs and had a smoke,
Somebody spoke and I went into a dream.

I read the news today oh boy
Four thousand holes in Blackburn, Lancashire
And though the holes were rather small
They had to count them all
Now they know how many holes it takes to fill the Albert Hall.
I’d love to turn you on
 

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