|
Produzindo os Beatles - Strawberry fields forever
O refrão vinha na ordem natural, depois da estrofe como mandava o figurino, pois ainda não tinha sido alterado pelo produtor para introduzir a letra da canção. Como eu, ele deve ter gostado muito dessa música e querido ouvir de prontidão as palavras-chave daquela que se chamava "Strawberry fields forever".
Falava sobre o antigo orfanato nas imediações do bairro da tia do Lennon, onde ele ia vez ou outra desfrutar um fim de tarde quiçá em companhia de alguém. Falava de um jeito desconexo eu acho que eu sei quero dizer um sim desconcordo nada tão mal sempre sei algumas vezes penso que sou eu deixa eu te levar que eu estou indo aos campos de morango nada é real. Fala de um jeito doidão mas com muito amor pela saudade, uma especialidade do compositor em questão.
O primeiro acorde não é a tônica, o tom, mas o mais distante que é a dominante, o irresoluto e problemático acorde, seguido pelo sexto grau, irmão do tom, o quarto grau (agora sim trazendo de vez a cara azul do lá maior) and then...and then vem o refrão. Gigantemente enigmático, sem falar das baboseiras sentimentalóides dos ié-ié-iés, chamando você, ouvinte, a passear sem volta pelas ondas lisérgicas dessa paisagem desconhecida. O primeiro take era realmente de uma balada pouco diferente das do Revolver e anteriores mas algo dizia que ela não se resolveria aí. Um sampleador bizarro, conhecido por mellotron - que era composto de fitas k7 com instrumentos gravados em loopings - forjou as notas introdutórias. E assim, com uma guitarra desconstuída em arpejos, uma bateria certeiramente vacilante, sem usar o chimbal pra marcar os tempos, fazendo quase que somente viradas e um baixo cabeção só com as notas fundamentais dos acordes, começa "strawberry fields" - que viria a se tornar uma das canções mais arrojadas jamais feitas pelo mundo pop até então.
Ao fim de algumas tentativas John decide que está insatisfeito e como sempre, sem saber como dizer isso, recorre a imagens e figuras mentais pra comunicar ao produtor que desejava mais ação, mais energia, mais massa sonora, mais tudo! George deve ter se deparado com um ou dois cigarros antes de chamar para a próxima sessão um naipe de metais, cellos, e regravar num tom acima do primeiro, mais rápido que a primeira tocada e cheio de sons energizantes de metais. Todos tocaram euforicamente e um final apocalíptico se deu. I buried Paul. Paul estava morto, mas isso não atrapalhou a nova canção e não vem ao caso. John Lennon, já bem sem jeito, retorna ao seu estado introspectivo e prenuncia um novo atestado de falência. "Sorry Martin, mas ainda não estou satisfeito com a segunda versão. Na verdade gostei do início da primeira e a segunda parte desta mais rápida. Dá pra utilizar as duas?". E assim se encerrou mais um dia de trabalho. Os campos de morango pareciam ser verdadeiramente para sempre. Nenhuma música antes havia tomado tanto tempo no estúdio.
Armado com gilletes e fitas adesivas, como um cirurgião cardíaco, George Martin cortou e picotou e colou e descolou num passe de mestre, daqueles do Ronaldinho Gaúcho nos tempos do galo, e juntou na fita as duas versões usando para as passagens uma harpa indiana. Nem se percebe a mudança de uma tomada para a outra, ou somente ouvidos treinados conseguem percebê-la.
Voilá!
Nada melhor que o primeiro fracasso dos beatles no número um das paradas há anos. Com vocês, "Strawberry fields forever":
obs 1: let me take you down cause i'm going... neste momento o pitch do mellotron, junto com a guitarra slide fazem um escorregador pra baixo, taking you down
obs 4: no meio da música ouve-se um chimbal ao contrário com umas peças de bateria ao fundo.
Notas do editor:
1. Publiquei em 2011 o artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV, tratando basicamente desta canção e sua "irmã gêmea" de single Penny Lane. O resumo, acompanhado de um trecho do trabalho, está nessa postagem anterior [aqui]. Destaquei, em outra ocasião, mais um trecho do artigo, tratando das capas do compacto e também do álbum Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise estava mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. O que é mais interessante no artigo, do ponto de vista metodológico, é que utilizei muitos registros de estúdio anteriores à versão final, que conhecia do tempo em que a circulação desse material ocorria através dos chamados "discos piratas", mas quando da escrita já estava amplamente disponível na internet.
"Eu tenho uma", disse Lennon ao ouvir o afável produtor George Martin evocar o questionamento tradicional ao início das sessões. Paul ainda balbuciou algo como "eu também" mas o zerinho na fila já tinha se autoproclamado. "É uma balada, fala sobre minha adolescência".
O refrão vinha na ordem natural, depois da estrofe como mandava o figurino, pois ainda não tinha sido alterado pelo produtor para introduzir a letra da canção. Como eu, ele deve ter gostado muito dessa música e querido ouvir de prontidão as palavras-chave daquela que se chamava "Strawberry fields forever".
Falava sobre o antigo orfanato nas imediações do bairro da tia do Lennon, onde ele ia vez ou outra desfrutar um fim de tarde quiçá em companhia de alguém. Falava de um jeito desconexo eu acho que eu sei quero dizer um sim desconcordo nada tão mal sempre sei algumas vezes penso que sou eu deixa eu te levar que eu estou indo aos campos de morango nada é real. Fala de um jeito doidão mas com muito amor pela saudade, uma especialidade do compositor em questão.
O primeiro acorde não é a tônica, o tom, mas o mais distante que é a dominante, o irresoluto e problemático acorde, seguido pelo sexto grau, irmão do tom, o quarto grau (agora sim trazendo de vez a cara azul do lá maior) and then...and then vem o refrão. Gigantemente enigmático, sem falar das baboseiras sentimentalóides dos ié-ié-iés, chamando você, ouvinte, a passear sem volta pelas ondas lisérgicas dessa paisagem desconhecida. O primeiro take era realmente de uma balada pouco diferente das do Revolver e anteriores mas algo dizia que ela não se resolveria aí. Um sampleador bizarro, conhecido por mellotron - que era composto de fitas k7 com instrumentos gravados em loopings - forjou as notas introdutórias. E assim, com uma guitarra desconstuída em arpejos, uma bateria certeiramente vacilante, sem usar o chimbal pra marcar os tempos, fazendo quase que somente viradas e um baixo cabeção só com as notas fundamentais dos acordes, começa "strawberry fields" - que viria a se tornar uma das canções mais arrojadas jamais feitas pelo mundo pop até então.
Ao fim de algumas tentativas John decide que está insatisfeito e como sempre, sem saber como dizer isso, recorre a imagens e figuras mentais pra comunicar ao produtor que desejava mais ação, mais energia, mais massa sonora, mais tudo! George deve ter se deparado com um ou dois cigarros antes de chamar para a próxima sessão um naipe de metais, cellos, e regravar num tom acima do primeiro, mais rápido que a primeira tocada e cheio de sons energizantes de metais. Todos tocaram euforicamente e um final apocalíptico se deu. I buried Paul. Paul estava morto, mas isso não atrapalhou a nova canção e não vem ao caso. John Lennon, já bem sem jeito, retorna ao seu estado introspectivo e prenuncia um novo atestado de falência. "Sorry Martin, mas ainda não estou satisfeito com a segunda versão. Na verdade gostei do início da primeira e a segunda parte desta mais rápida. Dá pra utilizar as duas?". E assim se encerrou mais um dia de trabalho. Os campos de morango pareciam ser verdadeiramente para sempre. Nenhuma música antes havia tomado tanto tempo no estúdio.
Armado com gilletes e fitas adesivas, como um cirurgião cardíaco, George Martin cortou e picotou e colou e descolou num passe de mestre, daqueles do Ronaldinho Gaúcho nos tempos do galo, e juntou na fita as duas versões usando para as passagens uma harpa indiana. Nem se percebe a mudança de uma tomada para a outra, ou somente ouvidos treinados conseguem percebê-la.
Voilá!
Nada melhor que o primeiro fracasso dos beatles no número um das paradas há anos. Com vocês, "Strawberry fields forever":
obs 1: let me take you down cause i'm going... neste momento o pitch do mellotron, junto com a guitarra slide fazem um escorregador pra baixo, taking you down
obs 2: let me take you down cause i'm going... vai do acorde de Lá maior pra Mi menor, cadência advinda do modo mixolídio, com uma cor muito peculiar de empréstimo modal, uma vez q a tônica não tem a sétima menor e assim boiamos rapidamente em dois modos, sem falar no terceiro acorde que é distante apesar de ser somente o dominante do segundo grau. Ou seja, uma boiada atrás da outra. Quando ele se alterna com o quarto grau, Lennon deixa claro que não deseja um chão tonal pra se brincar.
obs 3: fica fácil perceber a mudança de take (do lento pro rápido) pois apenas no primeiro há o baixo do Paul. E são dois, um de cada lado(fucking stereo). Imagino q o macca tenha deixado pra fazer o baixo da segunda depois, como de costume à altura e gostado sem grave ou tido preguiça pra fazer depois do corte final. Não há mais guitarra também, nem mellotron. O que toca o barco são uns bumbos graves tocados com a mão, maracas e pandeiro.
obs 4: no meio da música ouve-se um chimbal ao contrário com umas peças de bateria ao fundo.
Por Thiakov
Notas do editor:
1. Publiquei em 2011 o artigo "Em meus olhos e ouvidos: música popular, deslocamento no espaço urbano e produção de sentidos em lugares dos Beatles" na revista Estudos Históricos da FGV, tratando basicamente desta canção e sua "irmã gêmea" de single Penny Lane. O resumo, acompanhado de um trecho do trabalho, está nessa postagem anterior [aqui]. Destaquei, em outra ocasião, mais um trecho do artigo, tratando das capas do compacto e também do álbum Sgt Pepper's, mas acabei descobrindo que a análise estava mesclada com outros temas igualmente relevantes, relacionando o estudo iconográfico à transgressão musical dos Beatles naquele momento de suas carreiras. O que é mais interessante no artigo, do ponto de vista metodológico, é que utilizei muitos registros de estúdio anteriores à versão final, que conhecia do tempo em que a circulação desse material ocorria através dos chamados "discos piratas", mas quando da escrita já estava amplamente disponível na internet.
2. Em outra atividade de pesquisa, estudei as apropriações in loco e via internet de lugares de Liverpool associados aos Beatles. Parte deste trabalho, já publicada em eventos, pode ser encontrada na minha página do portal Academia [aqui]. Estive em Liverpool em 2015 - vale dizer, com apoio do CNPq num momento em que ainda havia valorização da pesquisa acadêmica no Brasil, mas já iniciando a fase de cortes - e por dois dias cumpri uma agenda apertada que envolveu visitas a museus e trabalhos de campo, como os que ficaram registrados na página de facebook dedicada ao projeto [aqui] , que posteriormente sincronizei como página deste mesmo blog.
Nenhum comentário:
Postar um comentário