Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

2 de dezembro de 2019

Todos os malucos no mesmo galho

Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
  
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade comunista.

Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.

Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.

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