Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
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4 de dezembro de 2016

O "gesto" do arranjador na música popular

O arranjo, elemento fundamental em qualquer gravação de música popular, em muitos trabalhos de historiadores acaba ficando em segundo ou terceiro plano, até pela dificuldade de dominar ferramentas que permitam uma análise pertinente. Aquelas propostas pela musicologia tradicional, por exemplo, podem ser difíceis de dominar, além de ser relativamente "estranhas" aos procedimentos próprios da música popular, aos quais muitas vezes não são adaptáveis. O avanço e a difusão de estudos próprios para essa linguagem é portanto mais que bem vindo. É imenso o benefício de contarmos hoje, nas pós-graduações em Música e também outras áreas afins que adotam a música popular como objeto de pesquisa, com cada vez mais estudiosos que tem a formação e a experiência de criação como músicos populares, o que vai consolidando um campo de pesquisa bastante relevante, especialmente entre nós, brasileiros, dada a condição especialíssima que ocupa a música popular em nossa formação social e história cultural.






Acabei de ter contato com um excelente trabalho do amigo Rafael Martini, compositor, arranjador, pianista, multi-instrumentista, músico de duas mãos cheias com recheado e premiado currículo, e que vai também trilhando muito bem o caminho acadêmico. O texto [completo, aqui] - apresentado no contexto do evento "Nas nuvens" promovido pelos programas de Pós-Graduação em Artes da UEMG e em Música da UFMG [para saber mais, aqui] - é elaborado e inteligível. O tema é de grande importância. A apresentação combina clareza, concisão, encadeamento lógico e pertinência. Quem tem uma familiaridade maior com a música e formação na área, certamente fará grande proveito, mas igualmente que está mais pra apreciador, porque está muito bem encadeado e didático, no melhor sentido que o termo pode ter.

Separei um trecho que achei bem significativo:



Observando o problema da tipificação da atividade de arranjo disposta, nessas pesquisas, frente a frente aos seus procedimentos inerentes, podemos diagnosticar seu posicionamento múltiplo, e por isso de difícil delineamento. O fato de, no universo da música popular, o arranjo ser uma “atividade-meio” (ARAGÃO, 2001), que geralmente é situado entre as etapas de composição e performance, faz com que ele possua interfaces, contamine e seja contaminado pelos procedimentos destas duas pontas da cadeia produtiva. Ao reformular, elaborar e adicionar elementos a uma composição popular com fins de prescrever (SEEGER)[1] uma performance da mesma, o arranjo se consolida como uma ponte entre as potencialidades das composições e as possibilidades da performance em direção à produção de sentido.





[1] Para noções de prescrição e descrição na notação e transcrição musical ver SEEGER, Charles: Prescriptive and Descriptive Music-Writing, in The Muscial Quartely, Vol. 44, Nº2 (Apr. 1958) pp. 184-195.

Faço votos para que muitos colegas pesquisadores aproveitem esse tipo de trabalho e possam ir aprofundando as análises sobre música popular contemplando cada vez mais o arranjo como parte de suas investigações.

Agradeço ao Rafa por ter compartilhado e parabenizo os organizadores do evento, que já está em sua segunda edição.
 


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O resumo

O “gesto” do arranjador na música popular


Rafael Andrade Martini[1]
Orientador: Prof. Dr. Mauro Rodrigues

Resumo:Contextualização da atividade do arranjo no universo da música popular e breve análise comparada de algumas definições encontradas na pesquisa musicológica. Amparado por discussões como da conceituação da instância do “original” das obras em música popular, propõe-se uma reflexão sobre a valoração do arranjo dentro da cadeia produtiva da música popular, com especial atenção para sua situação como atividade-meio, ponte entre composição e performance, campo de “inter-contaminação” e integração entre as duas.


Palavras-chave:Arranjo musical. Música popular. Oralidade e escrita. Original em música popular

The arranger “gesture” in popular music

Abstract:Contextualization of the activity of arrangement in the world of popular music and brief comparative analysis of some definitions found in musicological research. With basisin discussions as of the regarded onhow the instance of the "original" works in popular music, it proposes a reflection on the valuation of the arrangement within the production chain of popular music, with special attention to its situation as a activity-way bridge between composition and performance, field of "cross-contamination" and integration between the two.

Keywords:Musical arrangement. Popular Music. Oral and writing. Original in popular music



[1] Mestrando, Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: rafaelmartinioficial@gmail.com
 



8 de dezembro de 2014

As derramadas lágrimas de Guinga

A noite de hoje está guardada e há de ser glosada nos compêndios da música popular brasileira. Histórias serão contadas sobre os antológicos shows de Zé Miguel Wisnik e Guinga na Mostra Cantautores, digna e pertinentemente coadjuvados por Rafael Martini e Pedro Carneiro, respectivamente. Eu mesmo pretendo ter várias pra contar. Mas até lá hão de surgir instantâneos oportunos e singelos, argutos e espontâneos. Sinto uma profunda necessidade de compartilhar com os leitores do blog este escrito pelo meu parceiro Pablo Castro :

 
Embebido da experiência intensa e profunda de ter podido estar nessa noite de gala, na estreia da quarta edição da Mostra Cantautores [confira site com programação completa] , em que se apresentaram dois luminares da canção brasileira, dois mestres absolutos , da mesma geração, e em certa medida opostos, em certa medida complementares, José Miguel Wisnik com sua dissecação graciosa da canção e das canções, as suas, loas afiadas como pérolas aos poucos, e as nossas, aquelas entranhadas no inconsciente coletivo do que somos;
Guinga, com seu charme carioca, a um mesmo tempo humilde e malicioso, contando anedotas e destilando outras obras primas absolutas, ora com Aldir, ora com Paulo César Pinheiro. O encontro das duas personalidades fundamentais do desenvolvimento dessa arte nas últimas décadas, talvez ainda mais que os baluartes esplêndidos da década de 1960, se dá num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, ou talvez no ponto exato do centro da Via Dutra, tão representativos são dos ethos paulista e carioca da canção nacional ... e se inscrevem na nossa memória.
A apresentação do arrojado e magnífico Rafael Martini, articulando com primor uma música expandida para além da letra, e para dentro dela, conjugada com a abertura de Pedro Carneiro, um cronista que casa Guinga com Rumo, ilustram, sem esforços, o nível das aventuras que a canção brasileira ainda reserva para os que se dignam a cultivá-la, a ouvi-la, e a guardá-la dentro de si, refutando miseravelmente a tese do fim da canção.
A canção popular é a verdadeira epopéia da cultura tupiniquim, e quem não faz idéia de por onde ela passa, está perdendo uma das melhores sensações de pertencer a esse lugar chamado Brasil.
Que essa noite tenha sido um dia 8 de dezembro me parece muito significativo, em que pese a influência de John e a onipresença luminosa de Tom.


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Guinga derramou sua canção e derramou lágrimas, fez chorar de chorar e chorar de rir. Para dar um gostinho de sal e doce do que foi a noite: essa história da bigamia, canção necessária, desnecessária, etc., foi um dos pontos altos da noite. Acabei de ver a Salmaso contanto a história também, noutro dia, noutro lugar. 


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Mais cedo, pensando no show de Guinga na Mostra Cantautores, encontrei essa maravilha de texto do Túlio Villaça [Guinga e a última canção do beco aqui]. E outro dia assisti um pedaço (tá difícil ver coisas inteiras) do show O fim da canção (Wisnik + Nestroviski + Tatit) que também me botou pra pensar nessas coisas. Há de merecer mais reflexão. Não consigo deixar de pensar que sair do beco implica refazer rotas também, não com pés nostálgicos, mas por ser possível retomar caminhos que eventualmente não foram percorridos até o fim. Se ali na frente houver outro beco, que haja. Do que for decantado no caminho, ficará o encanto. Sim, temos uma cena pujante. Como diz o Pablo, Eldorado subterrâneo da canção. A cobertura da imprensa tem que crescer, ampliar, multiplicar. De pouco adianta divulgar o evento e depois esquecer de novo desse manancial que flui forte já há tempos. É preciso construir público, abrir espaço nas rádios, nas tvs, nos palcos. E é louvável, mais que louvável, o trabalho da moçada que toca desde sempre a preciosa mostra Cantautores! Longa vida!

9 de julho de 2012

Lançamentos no Horizonte Belo


Com a devida autorização do autor,  reproduzo* um texto do meu parceiro de música e ideias Pablo Castro que é um verdadeiro relato/retrato do cenário musical na capital das Alterosas, feito numa semana de vários lançamentos de relevo. Fica o convite para quem tiver comparecido a um ou mais desses eventos deixar impressões/apreciações.
"Essa semana tive o prazer de comparecer ao lançamento do disco Zelig do Flávio Henrique, [mais sobre o disco] obra eclética e ousada que rompe com alguns dogmas do que se pode chamar de MPB elitizada, como o próprio autor observou, abraçando jovens das gerações posteriores e atirando pérolas para muitos lados. Legal perceber a inquietude do compositor mais tarimbado da geração da década de 90 dessas alterosas musicais.



Ontem [5/7] não pude comparecer ao lançamento do primeiro trabalho fonográfico de Gustavo Amaral [Só o Amor Constrói], companheiro Cantautor que, pra mim, ao lado de Luiz Gabriel Lopes, é o cancionista mais natural da geração pós -Reciclo, lidando criativamente com os múltiplos arquétipos da canção brasileira ; é o tipo de compositor que não tem medo de refrão, o que o aproxima deste que vos fala.[para conferir, aqui]



Hoje [6/7] tem o lançamento do disco Radar [para detectar e ouvir as faixas] de Thiakov, que vejo como irmão mais novo; tocamos juntos na Free as a Beatle, e ele participu da famigerada Banda dos Descontentes e contribuiu muito com o disco oculto [algumas pistas do disco] que ainda se lançará. Um dos músicos mais talentosos, de longe, que já conheci, capaz de tocar com destreza centenas de instrumentos, e assustadoramente fértil em idéias e soluções musicais, Thiakov vai mais pela tangente, enquanto compositor; sentem-se ecos das experiências musicais desconstrutivistas, particularmente Os Mutantes e a célebre ( porém nada unânime) banda inglesa Radiohead. Afeito a experiências lisérgico-musicais, Thiakov promete uma interessante audição no espaço 104 , hoje a partir das 10 da noite.


E amanhã [7/7] quero comparecer ao lançamento do primeiro disco solo do grande Rafael Martini [Motivo, muito bom para ouvir aqui], hoje um dos, se não o principal arranjador dessa nossa seara autoral em BH, músico completo : toca piano, violão, acordion , canta muito bem, e arquiteta seus arranjos com grande maestria e primor, polirritmicamente nos levando a a levitar , com procedimentos riquíssimos e que juntam ecos de Gismonti e Radiohead, Hermeto e Guinga, Moacir Santos e Grizly Bear. Sou-lhe grato até hoje pelo arranjo de cordas de uma canção do meu disco, O Sétimo Selo, com o qual elevou essa música a alturas que o próprio compositor dificilmente suspeitaria [para ouvir em estado de elevação, aqui].


Isso tudo pra dizer que a produção musical de BH não tem paralelo com o resto do Brasil hoje: somos unidos pelas diferenças e , ainda assim, trabalhamos juntos e enriquecemos o acervo fonográfico mineiro, nem que seja para que um dia isso seja redescoberto, já que nem na Inconfidência essa produção encontra espaço aberto e meritocrático. Mas estamos no caminho certo, a música que se faz aqui não brota de qualquer montanha !" Pablo Castro

*Pequenos acréscimos deste editor, entre [ ]