Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

31 de julho de 2014

Na estante no fim das férias




Nestas férias que se encerraram pra mim ontem andei lendo alguma coisa, não tanto quanto gostaria. Mas o bastante para dar uma relaxada e ao mesmo tempo apreciar por ângulos distintos um pouco da história da música popular. Curiosamente, um ponto em comum dessas leituras foi a possibilidade de realizá-las de forma simultânea e não-linear. É bom dar essa modificada na experiência de leitura, até porque muitas vezes ao longo do semestre a conversão do livro em ferramenta de trabalho às vezes deixa pouco espaço para investidas mais lúdicas no ato de ler. Foi assim que me lancei sobre três livros que retém justamente essa propriedade, ao menos para mim, de serem degustados "fora da ordem", em pequenos nacos ou grandes pedaços, em breves pausas para o "café" ou longos "banquetes". O primeiro é Para seguir minha jornada, de Regina Zappa (editora Nova Fronteira), jornalista já escolada em esquadrinhar a vida e a carreira de Chico Buarque. Na verdade nesse sentido o livro não trás novidade para quem já leu uma ou mais biografias canônicas - inclusive da mesma autora - digamos assim, desse caro amigo Francisco. O diferencial é a parte gráfica, desde a composição às reproduções de fotografias e documentos, explorando bem o farto material digitalizado recentemente pelo Instituto Tom Jobim. Isso torna o livro bom de folhear, e às vezes me peguei lendo as reproduções das matérias de revistas, entrevistas, quase como se estivesse no próprio arquivo, algumas vezes até saltando as partes do texto que eram redundantes em relação ao material. Um livro para ser "lambido" com os olhos. Seguindo a linha biográfica, mas para ser exato, autobiográfica, adentro o indispensável Antologia (Cosac Naify), histórica e bem acabada publicação que faz parte do projeto que cuidou de dar voz ao próprios Beatles (devidamente acompanhados pelas rememorações de pessoas próximas como George Martin, Derek Taylor e Neil Aspinal). Mesmo para um beatlemaníaco incurável e mais que familiarizado com todas aquelas histórias, exaustivamente assistidas e lidas por aí na vida, acaba sendo diferente ter e manter essa preciosidade ao alcance dos olhos a qualquer momento. Além de ser farta e belamente ilustrado com fotos e material de arquivo, o grande trunfo do livro são os depoimentos dos Beatles (os de Lennon foram retirados de diferentes fontes e os dos outros 3 recolhidos durante o projeto), não apenas pela ênfase perspectiva deles, mas porque são arranjados de forma que podemos lê-los como variações sobre um mesmo episódio, revelando a particularidade de cada um mas também os pontos comuns, permitindo que o leitor obtenha um grande painel sobre os 4 inseridos naqueles anos incríveis e conturbados. E por fim 1973: o ano que reinventou a MPB (Sonora editora), competentemente organizado por Célio Albuquerque, radiografia de múltiplas vertentes para uma coleção respeitável do que de melhor se fez em disco na música popular brasileira naquele ano. O leque é grande. Vou lendo ainda, começando num disco que me dá na telha, correndo pra ver aqueles pelos quais tenho apreço particular, mas também me deparando com os que não conhecia ou tinha pouca noção. Os enfoques diversos da profusão de autores convidados, entre músicos, críticos, jornalistas, produtores, estudiosos e amantes (alguns respondem por várias dessas categorias), dão o tom do livro, o que permite ao leitor ganhar sensível intimidade com a obra escrutinada em cada texto. De quebra, um quadro abrangente do cenário musical e também do país no ano em questão emerge aos poucos, em camadas de tinta e pinceladas de diferentes estilos. Isso dá ao livro uma coerência que não é possível ter em coletâneas / compilações de listas e análises de discos tradicionais, que costumam abarcar recortes temporais livres e amplos demais. Essa qualidade torna mais clara a importância do patrimônio cultural representado por nossa música popular, ao mesmo tempo que dá a medida de como funcionam os mecanismos da memória e os jogos da consagração cultural, deixando as escolhas de então em contraste com a posteridade e os caminhos percorridos pelas obras após terem soado no mundo. Cada texto traz ao final uma completa ficha técnica do disco, agregando mais informação ao conteúdo que já é bom. A lamentar, provavelmente por questão de custos, que as artes das capas não tenha recebido maior destaque ou impressão colorida. Um pequeno reparo, o único até agora em relação a créditos, é que a autoria correta de Feira Moderna (canção mencionada en passant no texto que aborda Matança do porco do Som Imaginário) inclui Lô Borges, além dos ali creditados Beto Guedes e Fernando Brant.




21 de julho de 2014

Na estante: um penca de títulos em inglês sobre música popular

Quando comecei esse blog pensava nas utilidades acadêmicas que poderia ter. De início acabei concentrando esse lado na divulgação de textos de minha própria autoria, e aqui e ali, divulguei eventos, periódicos, um ou outro curso e trabalhos relacionados a disciplinas que lecionei. Em meio a uma ou duas reflexões sobre pesquisa, apareceram por aqui referências a fontes de pesquisa, projetos de digitalização de documentação ou acervos em suas instituições de guarda, que eventualmente podem auxiliar outros investigadores. Criei depois a coluna "Na estante", com resenhas e comentários a respeito de leituras que ia fazendo, mas não consigo mantê-la na regularidade que gostaria. Enfim, vou levando o blog no meu tempo livre e uma das ideias que já tinha era publicar listas de referências bibliográficas. Hoje acabou aparecendo essa pra mim no facebook e pensei que seria uma boa compartilhá-la aqui, mesmo estando toda em inglês [completa, aqui]. Há uma grande variedade de títulos, com diferentes objetos, de tecnologias a gêneros musicais, recortes temporais, delimitações espaciais, questões de gênero, étnicas, sociais, culturais, que, numa primeira e geral apreciação, expressão bem a perspectiva plural que é marca dos estudos culturais tão forte na literatura anglo-saxônica, com evidente influência nos estudos sobre música popular. Vale uma sapeada!

P.S. O repositório acadêmico BiblioVault merece uma conferida por pesquisadores que estudam outros assuntos também.



17 de julho de 2014

Poucas mulheres foram modernas como a Nina Simone

Acabo de ler a entrevista de Lisa Simone Kelly, filha da Nina Simone, publicada no jornal britânico Dailymail [completa, aqui]. Na página oficial de Nina no facebook foi publicado um texto, que, em síntese, coloca bons pingos nos "i"s ao avaliar o relato de Lisa, em essência um depoimento franco que não se propõe a encobrir ou glorificar, e sim dar conta de quem, na perspectiva da filha, foi a mãe, em sua condição humana. 

Lisa "Simone Kelly" is not dragging her mother's name "through the mud," as some people have been saying about this interview. Anyone who knows a lick about Nina Simone already knew these things about her. She could be difficult at times, downright abusive at others. Those closest to her for many years have all spoken out about her volatile nature. Hell, the woman was found guilty of firing a gun to frighten some neighbor boys she thought were being too rambunctious. Nina's short temper is not news, nor is it shocking or surprising to anyone who is familiar with her life and career. While Lisa's words might be jarring, they are her truth and one can only imagine what it was (and is) like being the daughter of Nina Simone, good or bad. Knowing Lisa personally, I can say without any doubt in my mind that she is not consumed with bitterness or hate for her mother. Quite the opposite. She has spent years trying to work through her conflicted feelings so that she may heal and be a better, stronger mother for her own daughter. Lisa spent the better part of ten years fighting for her mother's legacy and to keep her estate intact and on the right path. She neglected her own career in doing so and I was able to see how the politics and legal BS of the music industry wore her down -- so one can only imagine what it did for Nina, who herself was vocal about how the music industry can so easily exploit, abuse, and practically rob people -- especially a strong, talented, black woman. There is a lot of tragicness in the Nina Simone story and in the relationship between Lisa and her mother, but it isn't wholly defined by tragicness either. You are reading the words of a woman who is struggling to heal, understand, and remember her mother in an honest way that does not glorify her because of her fame and talent. Nina would be proud of her daughter. - Aaron Overfield

Lendo isso me lembrei de uma passagem de Aventuras no marxismo de Marshall Berman, quando ouviu no metrô de Nova York uma mãe negra conversando com sua jovem filha sobre os percalços da vida, e encerrando com a frase mais ou menos assim "podemos fazer isso dar certo, nós somos modernas". Poucas mulheres foram modernas como a Nina Simone. O relato duro e tocante de sua filha faz jus a isso.

Deixo vocês com a belíssima apresentação dessa grande artista no Festival de Montreux:
 



P.S. 2018 
Link para o trailer do excelente documentário produzido pelo Netflix  What Happened, Miss Simone? [aqui]

2 de julho de 2014

Em terra de Macalé

Por meio de um instigante relato do amigo cantautor ativíssimo na cena belorizontina Luiz Gabriel Lopes fiquei sabendo da exposição Macalândia na sede do Itaú Cultural, em São Paulo. Na impossibilidade de conferi-la in loco e na iminência de seu encerramento, recolhi aqui algum material para dar uma amostra e quem sabe motivar alguns leitores que são/estão na terra da garoa a conferi-la.
Do site:
"Por meio da série Ocupação, o Itaú Cultural mergulha na vida, na obra e no processo criativo de artistas contemporâneos ligados a diversas áreas de expressão, homenageando e destacando a importância de suas trajetórias. E é no universo – lírico, lúdico, épico, político – do músico Jards Macalé que o programa faz o seu 18º mergulho. Além de ocupar a sede do instituto com uma exposição sobre o instrumentista, compositor e intérprete carioca, o projeto se estende para a internet (...)" [confira, aqui]

 
Do catálogo: Versão digital [confira, aqui]

Um breve relato: no site Follow the Collors, aqui


8 de maio de 2014

A marca de Jair

Jair Rodrigues, sem dúvida um ícone de um momento destacado da história da Música Popular Brasileira, a chamada Era dos Festivais. O que fez depois a mim soa como eco daquela explosão, daquele estouro. Foi, mas deixou ali marca inconfundível que para mim traduz-se melhor em sua forte presença de palco. 
O registro histórico, nas imagens da TV Record, guarda ainda uma curiosidade que vem a calhar com a aproximação do dia das mães. A divisão do prêmio maior entre "Disparada" (canção de Vandré e Théo de Barros interpretada por Jair, que também venceu como "melhor intérprete") e "A banda" (por Chico Buarque, que a interpretou na companhia de Nara Leão) é anunciada e em seguida as mães de Jair e Chico são convidadas ao palco. Fica então mais esta homenagem:

"Prepare o seu coração..."