Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

5 de abril de 2012

Uma nota para Santuza Cambraia Naves

A nota triste de ontem foi o falecimento de Santuza Cambraia Naves, pesquisadora pioneira e importante referência nos estudos sobre música popular brasileira. Para não ficar o "Triste som do silêncio" (RHBN), pensei nessa pequena nota de homenagem, certo de que muitos acordes ainda se farão no diálogo entre as pesquisas que virão e a obra dela, trilha que atravessa  palavras/sonoridades-chave para entender a canção e o Brasil. Não farei balanço exaustivo, que outros certamente poderão fazer melhor, mas senti tocar essa "notinha", aqui do lugar de quem pode notar a contribuição intelectual e o alcance do trabalho de Santuza. Faço apenas esse registro pessoal, sem maiores pretenções, modesto tributo. Foi durante o mestrado o primeiro contato, lendo O violão azul : modernismo e música popular (fruto da Tese dela), que posso dizer que ainda é o que mais "soa" para mim. Na dissertação as marcas desse contato ficaram em notas e passagens como a que contrasta tropicalismo e canção de protesto utilizando o conceito "estética do excesso", que me induziu a pensar numa "estética da escassez". A nota credita:
A expressão “estética do excesso” é usada por NAVES para ressaltar a capacidade inclusiva da cultura brasileira, que ela destaca no modernismo de 22 e no movimento tropicalista. NAVES, Santuza Cambraia. op. cit., p. 219.
Vinha (e continuo) refletindo muito na encruzilhada entre ruptura e tradição, procedimentos de mistura, hibridação, e lá estava a Santuza discutindo o contraste entre engenheiro e bricoleur, contenção e excesso (vale ler esse artigo), que me fez, junto com outras coisas, pensar um bocado, me sentir provocado. Daí saiu, muito apoiado no Garcia Canclini, a ideia de que a crítica poderia ter instalado um "paradigma antropofágico" na cultura brasileira, descartando outras formas de hibridação (como eu propunha tratar o caso do Clube da Esquina). Ali foi só uma especulação (que me rendeu bons comentários da banca rsrsrs), mas que ilustra bem como é valioso e estimulante para um pesquisador iniciante debater ideias de um trabalho tão consistente. Acabou que por essa picada aberta só pude enveredar no doutorado, aprofundando mais o diálogo com a antropologia, mas confesso que não vejo nem de longe como assunto encerrado. Muita reflexão e pesquisa ainda a ser feita, por muita gente, e com certeza a contribuição de Santuza vai se fazer presente. Porque além de livros e artigos relevantes tratando de compositores como Caetano Veloso ou Noel Rosa, produziu trabalhos que são boas introduções e serão indispensáveis fontes de consulta, como Da bossa nova à Tropicália, e A MPB em discussão — entrevistas (organizadora junto com Frederico Coelho e Tatiana Bacal), livro que me permitiu notar algo de inusitado em relação a entrevistas de músicos populares, que era o modo como se repetiam as respostas quase que ipsis literis num lapso de 30, 40 anos (pois eu trabalhava com as entrevistas do Pasquim, por exemplo). Usei isso no capítulo que trabalhava com os relatos biográficos sobre a formação dos músicos populares, usando esses elementos recorrentes como eixos para a análise. Por isso essa notinha só, que soe: obrigado Santuza Cambraia Naves.

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